sexta-feira, 2 de abril de 2021

"Áureos tempos" e "Metamorfose" - Poemas de Astrid Cabral


 
Boris Kustodiev, Japanese Doll, 1908, crayon sobre papel, 
Tretyakov Gallery, Moscou, Russia


Áureos tempos 

 
Áureos tempos aqueles
quando na manhãzinha goiaba
colhíamos no cerrado gabirobas
ainda vestidas de orvalho.
Pés e patas competiam no capim
pródigo de carrapichos.
Gestos elásticos ultra-rápidos
assustávamos insetos e aves.
Um séquito de suaves súbditos
nos seguia em semi-adoração
nós, os príncipes daquele feudo.
Depois, o asfalto rasgou o campo.
Cogumelos de concreto brotaram.
Cresceram as crianças e a cidade.
Anãs ficaram as árvores aos pés
de edifícios colossais. Sumiram
pássaros gabirobas araçás.
Fim de passeios e piqueniques.
Só ficou a fome funda das frutas
no vão sem remissão das bocas.
em "Rasos d'água", 2003


Boris Kustodiev, Self-Portrait near the Window, 1899
 

Metamorfose  
 
 
Ainda nos chamam
pelos mesmos nomes.
Acaso seremos os mesmos
ou é a cegueira alheia?
Éramos formosos
afortunados donos
de sesmarias de sonhos.
Tínhamos frescor de frondes
ímpetos de fontes e fogos
destemor de duelos, dúvidas
que não machucavam quase.
Éramos potros selvagens
farejando precipícios
pelas pastagens do mundo.

No curral ainda nos sobra
a noção do tesouro perdido
e essa ração de memória
é a esmola que nos cabe. 
 
em "Rasos d'água", 2003
 


Astrid Cabral
 
Astrid Cabral Félix de Sousa (poeta, contista, tradutora e professora), nasceu no dia 25 de setembro de 1936, em Manaus-AM, onde fez os primeiros estudos e integrou o movimento renovador Clube da Madrugada. Adolescente ainda transferiu-se para o Rio de Janeiro, diplomando-se em Letras Neolatinas na atual UFRJ, e mais tarde como professora de inglês pelo IBEU. Lecionou língua e literatura no ensino médio e na Universidade de Brasília, onde integrou a primeira turma de docentes saindo em 1965 em consequência do golpe militar. Em 1968 ingressou por concurso no Itamaraty, tendo servido como Oficial de Chancelaria em Brasília, Beirute, Rio e Chicago. Com a amnistia, em 1988 foi reintegrada à UnB. Ao longo de sua vida profissional desempenhou os mais variados trabalhos, fora e dentro da área cultural. Detentora de importantes prémios, participa de numerosas antologias no Brasil e no exterior. Colabora com assiduidade em jornais e revistas especializadas. Viúva do poeta Afonso Félix de Sousa, é mãe de cinco filhos.
Em 1979 publicou “Ponto de Cruz” com grande recepção crítica. A partir de então, vem construindo uma sólida obra poética, onde uma lírica precisa e versos cuidadosamente dosados investigam ora a interioridade, ora as imprevisibilidades do mundo, ora os pequenos sustos de existir. A inexorabilidade da morte e a celeridade da vida também estão presentes. (Daqui)


Boris Kustodiev, Lilacs, 1906


Acorda! O céu iluminou-se!
Vamos novamente para a rua
amiga borboleta.
 
(Haicai / Haikai / Haiku)
 
 

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