segunda-feira, 5 de abril de 2021

"À Memória de Minha Mãe" - Poema de Egito Gonçalves


William-Adolphe Bouguereau (1825-1905), Rest (Mother and Children), 1879, 
óleo sobre tela, 107 x 164 cm,  Cleveland Museum of Art, Cleveland, OH, USA


À Memória de Minha Mãe


Mãe! Morreste!
Agora é tão tarde para te dizer as palavras necessárias.
O relógio bateu duas e meia. É noite escura
E a dor galopa surdamente no meu peito.
Teu corpo jaz ainda morno, já sem interesse para ti.
Por tua causa, amanhã, movimentar-se-ão pessoas
Diversas
Que não te conheceram.
Serão preenchidos papéis: requerimentos, boletins;
Pás ou picaretas (nem eu sei) ferirão a terra
E sobre ela erguerão, depois, um número qualquer
Que será de futuro o teu bilhete de identidade.
Agora, porém, tudo ainda é quieto.
Só um galo canta, feliz, na sua inconsciência de ser vivo.
As lágrimas rompem-me incontroláveis e inúteis.
É tarde!
Já só existem saudades e fotografias.
As palavras que eu amaria ter-te dito
Sobem-me ao silêncio dos lábios cerrados.
Lá fora a chuva molha a madrugada
Enquanto os familiares se olham
Com o rosto congestionado de lágrimas
E sono interrompido,
Adorando-te em silêncio,
Mais que nunca,
– Esmagados pelo prestígio da morte.
 

 in 'Antologia Poética'
 
 
Egito Gonçalves
 
Egito Gonçalves (Matosinhos, 8 de abril de 1920 — Porto, 28 de janeiro de 2001)  exerceu várias atividades profissionais, desde funções comerciais, a tradutor e jornalista. Figura reconhecida nos meios poéticos da década de 50, Egito Gonçalves esteve ligado a publicações onde se revelaram e afirmaram alguns dos maiores poetas da época contemporânea: fundou e dirigiu, no Porto, A Serpente; participou na direção do último número da revista Árvore; foi codiretor e um dos principais responsáveis de Notícias do Bloqueio; dinamizador da coleção "Germinal"; um dos fundadores do Teatro Experimental do Porto; correspondente em Portugal do "Centre International d'Études Poétiques". 
 
Conhecida pelo seu cunho combativo e intencionalidade social, a poesia de Egito Gonçalves encontra muitas vezes no diálogo e apelo a um interlocutor não nomeado a situação comunicativa privilegiada para aludir de forma irónica ou diferida a contextos históricos, encontrando nessa mediação o distanciamento preciso para que a sua voz não ceda à expressão sentimental de um lirismo motivado por situações trágicas. Esse discurso dirigido a um tu, mensageiro do bloqueio e da resistência ("Vai pois e noticia com um archote / aos que encontrares de fora das muralhas / o mundo em que nos vemos, poesia / massacrada e medos à ilharga" ("Notícias do Bloqueio" in A Viagem com o teu Rosto), ou companheira cujos "ombros nus são a evasão possível" ("Localização", in A Evasão Possível), evolui também, sem rejeitar uma imagética de teor surrealista, para o discurso de um nós, que conhece uma situação coletiva de mordaça e paz absurda ("Morremos pouco a pouco neste vácuo / que a solidão nos serve como leito", in Os Arquivos do Silêncio), mas que não recua, esperando o momento em que lhe será restituída a dignidade: "Este cemitério é vasto e sem muros. / Aí nos situamos; e entre nós / há esta só diferença: nós podemos / fazer ainda a vida acontecer." ("Colóquio com um Fuzilado", in Os Arquivos do Silêncio). (Daqui)

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