-falantes, palavras caras. De uma vez, apareceu a
prima Maria Lucília a dizer já não sei porquê:
– Fiquei muito confrangida.
Passámos a chamar-lhe “a confrangida”.
Sempre que aparecia alguém na televisão a
declamar poesia ou a falar de poesia, desligáva-
mos a televisão.
"O caráter de um homem é formado pelas pessoas que escolheu para conviver."
"A felicidade é um problema individual. Aqui, nenhum conselho é válido.
Cada um deve procurar, por si, tornar-se feliz."
(Sigmund Freud)
"Não desejo suscitar convicções, o que desejo é estimular o pensamento e derrubar preconceitos."
(Sigmund Freud)
Neto do criador da psicanálise, libertino - há quem afirme que foi pai
cerca de 40 vezes -, pintor de celebridades, Lucian Michael Freud, morreu no dia 20 Julho de 2011, em Londres, aos 88 anos. Conhecido sobretudo pelos seus
retratos, foi também um exímio executante de naturezas-mortas e gostava
que as obras por si criadas fossem sentidas como carne - daí a contínua
necessidade de representar a nudez humana, revelando-a nos seus
extremos: do corpo magro de Kate Moss à gordura disforme de Sue Tilley, a
gerente de um centro de emprego que posou para ele durante quatro anos,
no início da década de 1990. Contudo, a sua obra mais discutida terá
sido a imagem de Isabel II, encomendada pela monarca britânica no início
deste século.
A decisão de convidar Lucian Freud para pintar o
retrato da rainha Isabel II começou a ganhar consistência depois de o artista ter
realizado, entre 1999 e 2000, a imagem do ex-secretário privado da
monarca, Lorde Robert Fellowes, uma obra de pequenas dimensões (25,6 x
22,4 cm). Este é também o tamanho aproximado do trabalho onde está
figurado o rosto da monarca, um óleo sobre tela com 23,5 x 15,2 cm,
criado entre Maio de 2000 e Dezembro de 2001, em sessões que tiveram
lugar no Friary Court Studio, situado no Palácio de St. James, em
Londres, lugar onde habitualmente se conserva a Real Colecção de
Pintura.
O facto de a retratada ser uma personalidade fora do círculo de amizades do artista fez com que Freud não só comparasse a tarefa a uma expedição polar - a maioria das suas obras eram realizadas no seu estúdio -, mas também adivinhasse a dificuldade do desafio, sobretudo nas questões relacionadas com a tentativa de captar a vida interior de uma figura pública. A escolha de uma tela de pequenas dimensões e a vontade de retratar a rainha enquanto esta usava o célebre Diadema de Diamantes - uma jóia criada em 1820 para a coroação do rei Jorge IV, visível também nas notas e selos onde é representada Isabel II -, podem sugerir uma tentativa do artista em sublinhar as ambiguidades de um poder que decide encomendar uma imagem de si próprio.
Pintado no estilo de Freud, que usava muitas vezes a técnica do impasto para dar espessura às cores, deixando visíveis os movimentos do pincel sobre a tela, o retrato de Isabel II revela um rosto severo, pétreo, de formas envelhecidas, sobressaindo ainda a sua carnalidade. A ambiguidade da representação pode ser detectada quer na escolha da dimensão do trabalho - a rainha é colocada ao mesmo nível de Lord Fellowes, ou da neta do artista, Frances Costelloe, modelo de vários trabalhos, como um grande plano do rosto, executado em 2002, com 30,5 x 20,3 cm -, quer na escolha daquela jóia, composta por 1333 diamantes, criada pela casa Rundell, Bridge & Rundell para ser usada por um homem, George IV, nas cerimónias da sua coroação, e hoje em dia envergada pela monarca na abertura anual do Parlamento britânico, o lugar mais relevante da democracia inglesa.
Quando revelado, em Dezembro de 2001, o retrato de Isabel II provocou diferentes tipos de reacções: Charles Saumarez-Smith, então director do National Portrait Gallery, em Londres, descreveu a pintura como "provocante e psicologicamente penetrante", enquanto Richard Cork, crítico de arte do The Times, adjectivou a imagem criada por Freud como "dolorosa, corajosa, honesta, estóica e, acima de tudo, transparente". No mesmo jornal, a opinião de Richard Morrison era distinta, apontando a particularidade de o queixo ostentar "aquilo que só pode ser descrito como uma barba por fazer". O pescoço, diz ainda Morrison, "não envergonharia um avançado do râguebi". Finalmente, Adrian Searle, do The Guardian, considerou a obra do artista como a melhor representação pictórica de um monarca britânico nos últimos 150 anos: "Retratar significa penetrar na pele." E continua: "Ambos, modelo e pintor, viram demasiado e sentem-se, com facilidade, estoicamente entediados. Eles conhecem os limites que os enquadram. Esta é uma pintura da experiência."
A relação entre modelo e pintor,
tema de tantos artistas, é também central na obra de Lucian Freud. Desde
cedo que o retrato foi o seu assunto de eleição: "De forma a
abalar-nos, a pintura nunca deve apenas lembrar-nos da vida, mas deve
adquirir a sua própria vida", dizia o artista. As obras em que figura
corpos e rostos humanos foram sendo realizadas com a colaboração
daqueles que lhe eram próximos, nomeadamente família e amigos, porque as
sessões de trabalho eram longas e a conclusão de uma obra podia demorar
mais de um ano: em Girl with a White Dog (1950-1951), última de
uma série de obras em que Freud representa a sua primeira mulher - Kitty
Garman, filha do escultor modernista Jacob Epstein e da sua amante
Kathleen Garman, conhecida pela sua beleza e modo de vida liberal -,
observa-se a modelo em robe, sentada num sofá, com o seio direito à
mostra, e com um bull terrier branco deitado na perna - o cão
tinha sido uma prenda de casamento. Esta poderosa imagem acerca da
fidelidade - a mão direita de Kitty está pousada sobre o coração e na
mão esquerda é visível uma aliança - é assombrada pelo olhar da
retratada, no qual se percebe uma infinita solidão.
Se, nessa época, o estilo do pintor se poderia definir facilmente
como realista - a sua primeira exposição individual aconteceu na
londrina Alex Reid and Lefèvre Gallery, em 1944 -, figurativo ou mesmo
naturalista, o encontro com Francis Bacon, que conheceu em 1945 através
de um outro artista, Graham Sutherland, fez com que essa tentativa de
representar o mundo segundo "regras empíricas e seculares" se
transformasse numa obsessão enérgica em traduzi-lo em obras onde é
objectivado através da materialização de diferentes manifestações
carnais: os corpos e rostos parecem revelar o processo de decomposição a
que são sujeitos pela passagem do tempo. Como nota o filósofo francês Maurice Merleau-Ponty: "É que a espessura da carne entre o vidente e a
coisa é constitutiva da sua visibilidade para ela, como da sua
corporeidade para ele; não é um obstáculo entre ambos, mas o meio de
comunicarem entre si."
A amizade entre Francis Bacon e Lucian Freud, os nomes mais relevantes da pintura britânica do pós-II Guerra Mundial, foi duradoura - a relação entre ambos apenas esfriou no fim da década de 1970, após uma discussão. O percurso de ambos foi feito muitas vezes em comum: quando se encontraram, na casa de campo de Sutherland, Bacon tinha 36 anos, Freud 22, e a partir de então os encontros tornaram-se quase diários - os artistas frequentavam o mesmo drinking club, o heterodoxo Colony Room, no Soho, em Londres. O convívio intenso - podem encontrar-se semelhanças na intensidade da ligação entre Gauguin e Van Gogh - resultou em obras nas quais os pintores se representavam um ao outro. Bacon chamou Freud ao seu atelier em 1951 com o objectivo de realizar um retrato do amigo; o procedimento pouco habitual por parte do anfitrião, que habitualmente realizava os seus trabalhos a partir de fotografias, foi entendido pelo modelo quando este regressou ao estúdio e descobriu a imagem de um dos seus autores favoritos, Franz Kafka, como fonte para a criação da sua figura.
Freud realizou dois retratos de Bacon, um em 1952, comprado pela Tate Britain e roubado em 1988, durante uma exposição em Berlim, outro em 1956, propriedade de um coleccionador privado. O primeiro, marcado pela proximidade ao desenho, demorou três meses a ser terminado: sentaram-se ambos de joelhos, com Bacon a olhar para o chão, uma pose já experimentada um ano antes num trabalho sobre papel, sendo esta também a postura adoptada para a realização da segunda pintura. O modelo, apesar de mostrar sinais de impaciência e de ter resmungado, ficou na sua posição de forma consistente. Na obra mais tardia, que ficou incompleta, o rosto de Bacon parece fatigado, uma sensação potenciada pelo uso de tons verdes e amarelos, sendo também notórias as marcas das pinceladas, uma forma de dar movimento à representação - diz-se que este retrato ficou inacabado não só pelo facto de o modelo se ter cansado de posar, mas também por ter decidido viajar com o seu amante, Peter Lacy, para Tânger.
"Gostava que os meus retratos fossem das pessoas, não
parecidos com elas", afirmou Freud um dia. E prosseguiu: "Não ter o
olhar do modelo, sê-lo. Não quero apenas obter uma semelhança, como uma
imitação, mas retratá-lo, como um actor. Naquilo que me diz respeito, a
pintura é a pessoa. Quero que funcione para mim tal como a carne o faz."
Talvez por esta razão, um crítico alcunhou o artista de "Ingres do
existencialismo". Em 1987, numa entrevista conduzida pelo crítico de
arte Robert Hughes, Freud revela ter a esperança de que, se estivesse
suficientemente concentrado durante o processo de realização de uma
obra, "a intensidade do escrutínio daria por si só força vital às
pinturas."
Lucian Freud, Bella and Esther, 1988
A veemência das relações entre Freud e os seus modelos tornou-se mítica, tendo o artista sempre preferido trabalhar com pessoas das suas relações pessoais. "Cada vez que posava para ele, jurava que não voltava a fazê-lo, mas voltava com a palavra atrás porque era uma forma de manter uma relação com o meu pai", afirmou um dia a filha Bella Freud. Uma outra das suas descendentes, a escritora Esther Freud, conheceu o pai aos 16 anos, quando posou para um dos seus trabalhos - a sua mãe e ele tinham-se separarado quando cerca de três anos após o seu nascimento. O facto de terem posado nuas para o pai não chega a ser sequer um problema, pois era clara a distinção entre o progenitor e o artista: "Tirava simplesmente a roupa e sentava-me no sofá quando ele pedia", diz Esther. E acrescenta: "Nunca me ocorreu sentir-me envergonhada."
Os momentos de pose eram compensados por refeições onde se comia galinhola e se bebia champanhe. Enquanto pintava, Freud gostava também de trautear canções de Cole Porter, recitar sonetos de Shakespeare e poemas de Rudyard Kipling ou de Hilaire Belloc, que sabia de cor. Entre os seus modelos, que iam da mãe a Kate Moss, passando por Jerry Hall e Frank Auerbach, contava-se ainda Sue Tilley, a gerente de um centro de emprego que posou para o pintor durante quatro anos, no início da década de 1990. Um desses retratos, Benefits Supervisor Sleeping (1995), tornou-se no quadro mais caro de um artista vivo quando foi adquirido, em 1998, por Roman Abramovich, durante um leilão organizado pela Christie"s, em Nova Iorque - o magnata russo pagou 33,6 milhões de dólares por esta obra em que se vê Tilley, então com 127 quilos, nua, a dormir num sofá - este móvel é omnipresente no trabalho de Freud, tal como o constante registo de momentos de repouso -, numa evocação quer de Rubens - neste caso, pela preferência dada a corpos pesados, volumosos -, quer de Velázquez, Ticiano e Goya, que representaram o feminino em situações semelhantes à pintada pelo autor inglês.
Tilley, em tempos caixa do lendário Taboo, clube nocturno londrino, tinha sessões de trabalho com Freud todos os sábados, domingos e tempos livres: eram momentos "fantásticos" e o artista a pessoa mais divertida que tinha conhecido. Nota o modelo: "Tinham-se imensas conversas, ouviam-se inúmeras histórias, e ia-se a restaurantes simpáticos, onde se acabava por conhecer todas as outras pessoas pintadas por ele. Isto era, realmente, aquilo que gostava mais de fazer."
Neto de Sigmund Freud, pioneiro da psicanálise, Lucian Freud, nasceu em Berlim, a 8 de Dezembro de 1922, filho de Ernst Ludwig Freud, arquitecto, e de Lucie Freud. Em 1933, viajou com os pais, ambos judeus, para a Grã-Bretanha, devido à ascensão de Hitler ao poder, na Alemanha. Tornou-se cidadão inglês em 1939. (Daqui)
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