Almada Negreiros, "Autorretrato num grupo", 1925
Reconhecimento à loucura
Já alguém sentiu a loucura
vestir de repente o nosso corpo?
Já.
E tomar a forma dos objetos?
Sim.
E acender relâmpagos no pensamento?
Também.
E às vezes parecer ser o fim?
Exatamente.
Como o cavalo do soneto do Ângelo de Lima?
Tal e qual.
E depois mostrar-nos o que há de vir
muito melhor do que está?
E dar-nos a cheirar uma cor
que nos faz seguir viagem
sem paragem nem resignação?
E sentirmo-nos empurrados pelos rins
na aula de descer abismos
e fazer dos abismos descidas de recreio
e covas de encher novidade?
E de uns fazer gigantes
e de outros alienados?
E fazer frente ao impossível
atrevidamente e ganhar-lhe, e ganhar-lhe
a ponto do impossível ficar possível?
E quando tudo parece perfeito
poder-se ir ainda mais além?
E isto de desencantar vidas
aos que julgam que a vida é só uma?
E isto de haver sempre ainda mais uma maneira para tudo?
Tu só loucura és capaz de transformar
o mundo tantas vezes quantas sejam as necessárias para olhos individuais
Só tu és capaz de fazer que tenham razão
tantas razões que hão de viver juntas
Tudo, exceto tu, é rotina peganhenta.
Só tu tens asas para dar
a quem tas vier buscar.
Almada Negreiros
José de Almada Negreiros, O cochilo, 1939
Artista e escritor polifacetado, José de Almada-Negreiros nasceu a 7 de abril de 1893, em S. Tomé e Príncipe, e morreu a 15 de junho de 1970, em Lisboa.
"Pela sua obra plástica, que o classifica entre os primeiros valores da pintura moderna; pela sua obra literária, que vibra de uma igual e poderosa originalidade; pela sua ação pessoal através de artigos e conferências - Almada-Negreiros, pintor, desenhador, vitralista, poeta, romancista, ensaísta, crítico de arte, conferencista, dramaturgo, foi, pode dizer-se que desde 1910, uma das mais notáveis figuras da cultura portuguesa e uma das que mais decisivamente contribuíram para a criação, prestígio e triunfo de uma mentalidade moderna entre nós". Assim apresenta Jorge de Sena, no primeiro volume das Líricas Portuguesas, o homem que, com Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro, mais marcou plástica e literariamente a evolução da cultura contemporânea portuguesa.
Órfão desde tenra idade, viajou para Lisboa com sete anos para casa de uma tia materna. Frequentou os estudos primários e liceais em Lisboa, no Colégio Jesuítico de Campolide, Liceu de Coimbra e Escola Nacional de Lisboa. Entre 1919 e 1920, seguiu estudos de pintura em Paris, aí trabalhando como bailarino de cabaré e empregado numa fábrica de velas, redigindo na capital francesa muitos dos textos e grafismos que viriam a ser célebres, como o "autorretrato". Viveu entre 1927 e 1932 em Espanha, onde realizou várias encomendas para particulares e públicos. Embora já tivesse colaborado com textos e grafismos em algumas publicações, como Portugal Artístico ou Ilustração Portuguesa, e tivesse participado com êxito no 1.º Salão do Grupo dos Humoristas Portugueses, é a sua colaboração no número 1 de Orpheu, em 1915, onde publica o texto ainda incompletamente revelador Frizos (A Cena do Ódio, destinada a Orpheu 3, só viria a ser publicada em Contemporânea), que lhe dará a base de lançamento para uma postura iconoclasta (o Manifesto Anti-Dantas, apresentado no mesmo ano, é modelar neste ataque generalizado a uma intelectualidade convencional, burguesa e passadista), tornando-se um dos principais representantes da vertente vanguardista do movimento modernista. Em 1917, participa no projeto Portugal Futurista, publicando nesse órgão do "Comité Futurista de Lisboa", que co-fundara, no mesmo ano, com Santa-Rita, o Ultimatum Futurista às Gerações Portuguesas do Século XX, texto que já tinha sido objeto de performance pública, e os os textos simultaneístas Mima Fatáxa e Saltimbancos. Desenvolve paralelamente uma intensa atividade artística, tendo colaborado, com grafismos e com criação literária, em várias publicações, como Diário de Lisboa, Athena, Presença, Revista Portuguesa, Cadernos de Poesia, Panorama, Atlântico, Seara Nova e tendo fundado outras, como os "Cadernos de Almada-Negreiros", SW, onde, em 1935, no primeiro número, tenta equacionar, com o máximo de clareza, as relações entre civilização e cultura, entre arte e política, entre indivíduo e coletividade, aí vindo também a publicar um dos seus vários textos dramáticos, SOS, que, com Deseja-se Mulher, deveria integrar o projeto, originalmente escrito em castelhano, Tragédia da Unidade.
Uma análise da obra de Almada-Negreiros não pode deixar de considerar a complementaridade que nela assumem as várias formas de expressão artística, nem de verificar que, independentemente do suporte escolhido (argumento e coreografia de bailados, exposições, happening, produções publicitárias, cinema, jornais manuscritos, telas, frescos, mosaicos, vitrais, painéis de azulejos, palestras radiofónicas, cenários e figurinos, cartões de tapeçaria, etc.), toda a realização artística de Almada se distingue por certos traços comuns, não necessariamente antitéticos, como a graciosidade e a irreverência, a ingenuidade e a inteligência, o populismo e o esteticismo, a abstração e o concreto.
Na tentativa de encontrar a arte poética subjacente à sua atividade exclusivamente literária, Celina Silva considera que a "performance constitui o universal maior de toda a produção" de Almada-Negreiros: "evidenciando-se no literário através da adoção de uma conceção do verbal que é encarada enquanto ação", essa performance verbal que "tanto é típica da postura vanguardista quanto se revela reinstauração do verbal nos seus primórdios [...] implica um exercício da palavra-ação radicada numa postura geradora de uma ficção do eu", ao mesmo tempo que "A espontaneidade e o cunho comunicativo radicam numa ambição totalizante, eivada de otimismo e euforia, que, pela abrangência de que se reveste, aponta para um projeto de alargada receção, embora projetado por uma elite" (cf. SILVA, Celina - A Busca de Uma Poética da Ingenuidade ou a (Re)Invenção da Utopia (Reflexão Sistematizante acerca da Produção Literária de José de Almada-Negreiros, Porto, Faculdade de Letras, 1992, pp. XIII, XIV). A "poética da ingenuidade" explanada por Celina Silva, anulando qualquer descontinuidade entre a forma linguística do poema, do drama, do texto de intervenção, e a expressão do ensaio, da teoria poética ou filosófica, encontraria numa "sofistificação da simplicidade" (cf. Sena, Jorge de in Obras Completas de Almada Negreiros, vol. I, Lisboa, INCM, 1985, p. 17) o equilíbrio entre poesia e conhecimento, num autor para quem "A Poesia "conhece" e não "sabe" (Prefácio ao Livro de Qualquer Poeta).
Almada-Negreiros. In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2012. [Consult. 2012-07-08].
Almada Negreiros, "Estudo Cénico - Arlequim", 1929
"Eu - sou um leitor. Sei o que sou: leio o que os outros escrevem. Faço-o até compulsivamente. É a minha rotina de há muitos anos. Sou um leitor num mundo de escritores, e isso faz-me sentir muito sozinho.[...]
Só mais uma palavra. Não escreva a responder. [...] Apareça, apenas. Eu saberei reconhece-lo/a, e você também me reconhecerá com facilidade. Seremos os únicos – na praça, no jardim, na rua, no café, onde quer que nos encontremos – sentados pacatamente, com um sorriso nos lábios e um livro, aberto, na mão."
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