sexta-feira, 29 de março de 2013

"Quando eu for pequeno" - Poema de José Jorge Letria


Cats readers / Gatos lectores, Ilustraciones de Valentin Rekunenko



Quando eu for pequeno


Quando eu for pequeno, mãe, 
quero ouvir de novo a tua voz 
na campânula de som dos meus dias 
inquietos, apressados, fustigados pelo medo. 
Subirás comigo as ruas íngremes 
com a certeza dócil de que só o empedrado 
e o cansaço da subida 
me entregarão ao sossego do sono. 

Quando eu for pequeno, mãe, 
os teus olhos voltarão a ver 
nem que seja o fio do destino 
desenhado por uma estrela cadente 
no cetim azul das tardes 
sobre a baía dos veleiros imaginados. 

Quando eu for pequeno, mãe, 
nenhum de nós falará da morte, 
a não ser para confirmarmos 
que ela só vem quando a chamamos 
e que os animais fazem um círculo 
para sabermos de antemão que vai chegar. 

Quando eu for pequeno, mãe, 
trarei as papoilas e os búzios 
para a tua mesa de tricotar encontros, 
e então ficaremos debaixo de um alpendre 
a ouvir uma banda a tocar 
enquanto o pai ao longe nos acena, 
lenço branco na mão com as iniciais bordadas, 
anunciando que vai voltar porque eu sou pequeno 
e a orfandade até nos olhos deixa marcas. 


José Jorge Letria, in "O Livro Branco da Melancolia"


 
José Jorge Letria
Portugal
n. 1951
Jornalista/Político/Poeta/Escritor


Ilustração de Valentin Rekunenko 



"O processo de criação não é transparente. Em determinados momentos qualquer coisa em mim - um ritmo, um marulhar de sílabas, imagens - me leva a procurar o papel. De que parte de mim isto vem não sei, é uma necessidade do espírito que subitamente procura tomar expressão." 

Eugénio de Andrade

 
Eugénio de Andrade
Portugal
1923 // 2005
Poeta

"É possível que só as árvores tenham raízes, mas o poeta sempre se alimentou de utopias. Deixe-me pois pensar que o homem ainda tem possibilidades de se tornar humano."

Eugénio de Andrade

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