quarta-feira, 31 de março de 2021

"Crepuscular" - Soneto de Raul de Leoni


Gabriele Münter, Breakfast of the Birds, 1934, óleo sobre madeira, 45,7 x 55,2 cm
National Museum of Women in the Arts, Washington, D.C.
 

Crepuscular

 
Poente no meu jardim... O olhar profundo
Alongo sobre as árvores vazias,
Essas em cujo espírito infecundo
Soluçam silenciosas agonias.

Assim estéreis, mansas e sombrias,
Sugerem à emoção em que as circundo
Todas as dolorosas utopias
De todos os filósofos do mundo.

Sugerem... Seus destinos são vizinhos:
Ambas, não dando frutos, abrem ninhos
Ao viandante exânime que as olhe.

Ninhos, onde vencida de fadiga,
A alma ingénua dos pássaros se abriga
E a tristeza dos homens se recolhe...


Raul de Leoni
in Luz Mediterrânea
 
 
 Raul de Leoni

Poeta brasileiro, Raul de Leoni Ramos, nascido a 30 de outubro de 1895, em Petrópolis, no Rio de Janeiro, e falecido a 21 de novembro de 1926, em Itaipava, também no Rio de Janeiro, movimentou-se entre as áreas do neoparnasianismo e, principalmente, do simbolismo.

Em 1916, concluiu o bacharelato em Ciências Jurídicas e Sociais na Faculdade Livre de Direito do Rio de Janeiro. Entretanto, já era colaborador, desde 1914, das revistas Fon-Fon! e Para Todos, e, mais tarde, colaborou no Jornal do Brasil, Jornal do Commercio, O Jornal e O Dia.
 
Raul de Leoni trabalhou também no corpo diplomático brasileiro e, em 1918, esteve destacado em Montevideu, no Uruguai, depois de ter recusado colocação idêntica no Vaticano. Antes, nesse mesmo ano, tinha sido nomeado secretário da Legação do Brasil em Cuba, mas nunca chegou a tomar posse do cargo. Permaneceu apenas três meses em Montevideu e quando regressou foi eleito deputado à Assembleia Fluminense.

Em 1919, lançou o seu primeiro livro de poesia, Ode a Um Poeta Morto, uma homenagem a Olavo Bilac, que foi sucedido, três anos mais tarde, por Luz Mediterrânea.

Raul de Leoni nunca se associou abertamente a nenhuma escola literária, o que levou a que acabasse por ter uma carreira poética algo discreta em vida, apesar do seu talento ser reconhecido. Em finais do século XX, a sua obra, apesar de pequena, era alvo de aprofundados estudos e cativava inúmeros leitores.

O poeta destacou-se ainda como desportista tendo ganho diversas provas de natação e remo em representação do clube Icaraí.

Doente dos pulmões, Raul de Leoni isolou-se em 1923 dos amigos e família, deixou o trabalho de inspetor numa companhia de seguros e foi viver para Itaipava, onde acabou por morrer.
Raul de Leoni faleceu a 21 de novembro de 1926 e apenas cerca de 35 anos mais tarde foi editada uma antologia de poemas seus, intitulada Trechos Escolhidos. (daqui)

Gabriele Münter, Self-Portrait, 1909


Passado

 
Esse olhar ferido,
tão contra a flor que ele encontra
no livro já lido!

(Haicai / Haikai) 


terça-feira, 30 de março de 2021

"Tu? Eu?" - Poema de Carlos Drummond de Andrade

 
Max Pechstein, Self-portrait with death, 1920


 
Tu? Eu?


Não morres satisfeito.
A vida te viveu
sem que vivesses nela.
E não te convenceu
nem deu motivo
para haver o ser vivo.

A vida te venceu
em luta desigual.
Era todo o passado
presente presidente
na polpa do futuro
acuando-te no beco.
Se morres derrotado,
não morres conformado.

Nem morres informado
dos termos da sentença
de tua morte, lida
antes de redigida.
Deram-te um defensor
cego surdo estrangeiro
que ora metia medo
ora extorquia amor.

Nem sabes se és culpado
de não ter culpa. Sabes
que morres todo o tempo
no ensaiar errado
que vai a cada instante
desensinando a morte
quanto mais a soletras,
sem que nascido, mores
onde, vivendo, morres.

Não morres satisfeito
de trocar tua morte
por outra mais perfeita.
Não aceitas teu fim
como aceitaste os muitos
fins em volta de ti.

Testemunhaste a morte
no privilégio de ouro
de a sentires em vida
através de um aquário.
Eras tu que morrias
nesse, naquela; e vias
teu ser evaporado
fugir à perceção.
Estranho vivo, ausente
na suposta consciência
de imperador cativo.

Foste morrendo só
como sobremorrente
no lodoso telhado
(era prémio, castigo?)
de onde a vista captava
o que era abraço e não
durava ou se perdia
em guerra de extermínio,
horror de lado a lado.

E tudo foi a caça
veloz fugindo ao tiro
e o tiro se perdendo
em outra caça ou planta
ou barro, arame, gruta.
E a procura do tiro
e do atirador
(nem sequer tinha mãos),
a procura, a procura
da razão da procura.

Não morres satisfeito,
morres desinformado.
in A falta que ama, 1968
 
[Publicado em 1968, A falta que ama aprofunda questões que sempre marcaram a obra poética de Carlos Drummond de Andrade: afetos, memória e observações sobre a realidade brasileira.]
 
 
Max Pechstein, Under the Trees (Akte im Freien), 1911, oil on canvas, 
73.6 x 99 cm (29 x 39 in), Detroit Institute of Arts


É meu conforto
Da vida só me tiram
Morto.
 
(Haicai / Haikai)
 
 

"Soneto da Neve" - Poema de Lêdo Ivo


 
Claude Monet (French, 1840 - 1926), Snow Effect at Argenteuil, c. 1875
Nelson-Atkins Museum of Art


Soneto da Neve


Quando te amo, penso sempre na neve,
em uma neve branca como o esperma.
Penso sempre na neve quando te possuo,
ver a neve que cai entre as bétulas.

Em minha meninice sempre desejei
ver a neve cair, atravessar a branca
escuridão da neve que, entre o dia e a noite,
devolve ao mundo negro um branco seminal.

Eu sempre desejei que o mundo fosse a alvura
da neve, da brancura virginal
do alvo lençol imune a qualquer mácula.

E a neve cai em mim e cai na desolada
noite escura da alma, a neve do silêncio,
a imaculada e frígida alvura do nada.

Lêdo Ivo,
do livro "Plenilúnio", 2004

 


Claude Monet, The Magpie, 1868–1869, Musée d'Orsay, Paris


Manhã de neve.
Até mesmo os cavalos
Ficamos olhando.
(Haicai / Haikai / Haiku) 
 

Portrait of Bashō by Hokusai, late 18th century
 
 
Poeta japonês, Basho, pseudónimo de Matsuo Munefusa, é considerado um mestre da forma poética haiku
Nasceu em 1644, numa família de samurais em Ueno, na província de Iga, a sudeste de Kyoto, e faleceu em 1694, durante uma estadia em Osaka. Durante algum tempo serviu Todo Yoshitada que o teria iniciado na arte da poesia. O primeiro poema conhecido de Basho data de 1662. Em 1664, alguns dos seus poemas foram publicados numa antologia de poesia em Kyoto. Nesta época adotou o nome samurai Munefusa. Contudo, dois anos depois, na sequência da morte de Yoshitada, Basho deixou a terra natal e viveu muito provavelmente em Kyoto durante alguns anos. Procurou aprofundar a sua instrução junto de professores de filosofia, caligrafia e poesia chinesa clássica. Entretanto o seu trabalho aparecia em várias antologias e começava a ser conhecido no mundo literário de Edo (atual Tóquio). 
 
Em 1672 mudou-se para a capital. Aparentemente só se decidiu a enveredar profissionalmente pela carreira das letras alguns anos depois. O pseudónimo Basho surgiu do nome da bananeira (basho) que cobria com a sua sombra a pequena casa construída pelos alunos numa zona rural de Edo. Apesar da fama que entretanto alcançara, dos muitos amigos, discípulos e patronos, em alguns dos seus poemas transparecia a solidão e melancolia que o conduziria à procura de uma via espiritual através da prática da meditação Zen sob a orientação de Butcho, um mestre Zen.

Basho empreendeu várias viagens que o inspiraram profundamente. Escreveu vários diários de viagem onde combinou o relato detalhado das suas perceções com poesia e teoria de arte. No final do primeiro diário, Nozarashi Kiko, deixa já transparecer uma maior serenidade. Em 1689, Basho iniciou a famosa viagem de Oku-no-hosomichi (na edição inglesa, "The Narrow Road to the Far North"). A prosa poética contida neste relato é considerada sem paralelo na literatura mundial. Esta obra evidencia o conceito de sabi, de identificação do homem com a natureza. Durante esta viagem começou a pensar a poesia em termos mais filosóficos, preocupando-se com a relação entre temporal e eterno. A partir do outono de 1689, e durante dois anos, fez curtas viagens na região de Kyoto. Nessa época trabalhou numa antologia, Sarumino ("o Impermeável do Macaco") em que expressava os princípios estéticos que adotara.

Basho é reverenciado sobretudo por ter dado ao haiku uma dimensão espiritual, impregnada do espírito Zen, aproximando este género de kado (a via da poesia) enquanto caminho para a perfeição. Sob a sua influência o haiku, até aí considerado quase exclusivamente como um passatempo social, tornou-se num dos géneros mais apreciados e cultivados da poesia japonesa. (Daqui)
 
 

"Meu sonho" - Poema de Jacinta Passos

 
Gustave Caillebotte, Villas à Trouville, 1884, Cleveland Museum of Art
 
 
Meu sonho


O meu sonho
mais risonho
é suave e pequenino
resumindo entretanto o meu destino.
É de cor azul escura
como o mar que longe chora.
É cor de infinito e de ânsia
cor do céu, cor do mar, cor de distância.
Tem a leve suavidade
da saudade,
e a cantante doçura
de um regato que murmura.
Macio e encantador
é carícia de pluma e perfume de flor.
O meu sonho
mais risonho,
é para mim cada momento
o motivo maior de doce encantamento.
 
Salvador BA, 6. out. 1937.

Jacinta Passos
em "A Tarde"
 
 
Gustave Caillebotte (Paris, 1848 - Gennevilliers, 1894),  L'Yerres, pluie, 1875, 
Indiana University Art Museum, Bloomington, Indiana


Chuva de Primavera

Vê como se atraem
nos fios os pingos frios!
E juntam-se. E caem. 

(Haicai / Haikai)


segunda-feira, 29 de março de 2021

"Poética" - Poema de Manuel Bandeira


Emil Nolde, At the Café, 1911 

 

Poética

 
Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente
protocolo e manifestações de apreço ao Sr. diretor.
Estou farto do lirismo que para e vai averiguar no dicionário
o cunho vernáculo de um vocábulo.
Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis
Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja
fora de si mesmo.
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de cossenos secretário do amante
exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes
maneiras de agradar às mulheres, etc.
Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbedos
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare

— Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.
 
 
in 'Libertinagem, 1930'
 
'Poética' é um poema de Manuel Bandeira lido na Semana de Arte Moderna de 1922, que expõe os princípios estéticos básicos que impulsionaram a primeira revolta pela liberdade formal da poesia do modernismo brasileiro, juntamente com 'Os Sapos'. (Daqui)



Emil Nolde, Excited People, 1913


Probleminhas terrenos:
Quem vive mais
Morre menos?
 
 (Haicai / Haikai)
 
 

Emil Nolde, Autumn Sea VII, 1910 


Eis o meu mal
A vida para mim
Já não é vital.
 
 (Haicai / Haikai)
 

"Dorme ruazinha" - Soneto de Mário Quintana

 
Joseph Wright of Derby (Derby, 1734–1797), Bridge through a Cavern, Moonlight, 1791
 


Dorme, ruazinha


Dorme, ruazinha… É tudo escuro…
E os meus passos, quem é que pode ouvi-los?
Dorme teu sono sossegado e puro,
Com teus lampiões, com teus jardins tranquilos…

Dorme… Não há ladrões, eu te asseguro…
Nem guardas para acaso persegui-los…
Na noite alta, como sobre um muro,
As estrelinhas cantam como grilos…

O vento está dormindo na calçada,
O vento enovelou-se como um cão…
Dorme, ruazinha… Não há nada…

Só os meus passos… Mas tão leves são,
Que até parecem, pela madrugada,
Os da minha futura assombração…


Mário Quintana
in 'A Rua dos Cataventos', 1940



Joseph Wright of Derby, Self-Portrait, c. 1780


Os grilos

Eles cantam a noite inteira!
Não sabias?
Os grilos são os poetas mortos…
 
 
(Haicai / Haiku)

"Sentimento do Mundo" - Poema de Carlos Drummond de Andrade



Claus Bergen
(German, 1885 – 1964), ‘Der Kommandant’ (‘The Commander’), 1918
National Maritime Museum, Greenwich, London. 

[A portrait of a German U-boat Commander of World War One standing on the after deck of a U-boat, facing towards the horizon. This large painting was the result of official war work undertaken by Claus Bergen when he was aboard ‘U-53’ crossing the Atlantic to Newport and back in a stormy voyage of many weeks. ‘The Commander’ is Captain-Lieutenant Hans Rose. The painting has tried to capture the emotions through the unusual composition: the role of a commander was beset with many perils, the threat of death was ever present, and the painting aims to evoke the vigilance and silence necessary in enemy infested seas, as well as the isolation of command itself. (Daqui)


Sentimento do mundo

 
Tenho apenas duas mãos
e o sentimento do mundo,
mas estou cheio de escravos,
minhas lembranças escorrem
e o corpo transige
na confluência do amor.

Quando me levantar, o céu
estará morto e saqueado,
eu mesmo estarei morto,
morto meu desejo, morto
o pântano sem acordes.

Os camaradas não disseram
que havia uma guerra
e era necessário
trazer fogo e alimento.
Sinto-me disperso,
anterior a fronteiras,
humildemente vos peço
que me perdoeis.

Quando os corpos passarem,
eu ficarei sozinho
desfiando a recordação
do sineiro, da viúva e do microscopista
que habitavam a barraca
e não foram encontrados
ao amanhecer

esse amanhecer 
mais noite que a noite. 
do livro 'Sentimento do Mundo, 1940
 
 


Sentimento do Mundo
 
Por Fernando Marcílio

Os livros que Carlos Drummond de Andrade publicou nos anos 30 trazem muitos poemas escritos por ele ao longo da década anterior. Nesses textos, a influência modernista é bastante perceptível, tanto na opção pela liberdade formal dos versos livres e brancos, quanto na preferência temática pelo cotidiano e pela vida urbana. 

Sentimento do Mundo, livro de 1940, traz poemas escritos ao longo da segunda metade da década anterior. Ali, evidencia-se a assimilação sólida da influência modernista, à qual o poeta confere um tom pessoal, que aparece, por exemplo, nas referências ao universo rural que permeia as memórias poéticas do escritor.

Apesar de Drummond ter iniciado sua carreira já em um elevado patamar de qualidade, é notável como em Sentimento do Mundo se percebe o início de sua maturidade artística. Na década seguinte, anos 50, ele refinaria ainda mais a expressividade lírica, confirmando uma dicção poética particular no conjunto dos poetas modernistas.

Essa personalidade própria é indicada no interesse pelas questões sociais. É verdade que esse tema sempre foi explorado pelos modernistas, desde a primeira geração. O que ocorre com Drummond diz respeito à maior transparência do posicionamento político. No caso do poeta mineiro, seus textos tendem a expressar com clareza cada vez maior sua postura marxista. Na obra posterior, A Rosa do Povo, a posição ideológica de Drummond ganharia ainda mais evidência.

A acentuação da temática social no livro de 1940 é mais do que justificável pelo contexto de produção dos poemas: a Europa vivia o clima que culminaria com a eclosão da Segunda Guerra Mundial e o Brasil assistia à insistência de Vargas em apegar-se ao poder, que o conduziria ao golpe do Estado Novo – oficialização da ditadura. Tais fatores determinam uma tensão política à qual dificilmente o poeta poderia ficar alheio.

No entanto, Drummond não deixa de se questionar a respeito das potencialidades efetivas da poesia política. Esse questionamento confere uma interessante oscilação a sua arte: de um lado, temos a reafirmação da necessidade de uma reação à opressão e, de outro, a manifestação de fatalismo diante das dificuldades dessa reação.

Contexto

Sobre o autor
O primeiro livro de Carlos Drummond de Andrade, Alguma Poesia, de 1930, inaugurava uma carreira que renovaria a literatura brasileira por décadas. Ao longo dos anos 30, Drummond fez de sua arte um espaço de reflexão sobre os acontecimentos de seu tempo – o governo Vargas e a proximidade da guerra europeia. E seria assim para o resto de sua vida poética: a busca do lugar do Ser no mundo que o rodeia.

Importância do livro
Uma das tarefas da geração de poetas que publicou seus primeiros livros a partir dos anos 30 foi a de consolidar as conquistas modernistas inauguradas em 1922. Assim, os versos livres e brancos e a linguagem coloquial já não causam surpresa em Sentimento do Mundo. A novidade fica por conta do tratamento temático. Sem se deixar levar pela poesia panfletária, Drummond preferiu o caminho mais árduo da exposição das tensões que essas questões colocavam aos intelectuais de seu tempo.

Período histórico
A década de 1930 possui dois polos de tensão muito claros. No plano internacional, os acontecimentos que teriam como desdobramento a Segunda Guerra, a partir de 1939. No Brasil, a acomodação de Vargas no poder, consolidada com a decretação do golpe do Estado Novo em 1937.

Análise

“Mundo mundo vasto mundo / mais vasto é o meu coração” – esses versos pertencem ao “Poema de sete faces”, publicado em Alguma Poesia, de 1930, o primeiro livro de Carlos Drummond de Andrade. Os primeiros versos de “Mundo grande”, poema de Sentimento do Mundo, publicado dez anos depois, parecem ser uma resposta a eles: “Não, meu coração não é maior que o mundo. / É muito menor”. Entre um e outro trecho, há todo um trabalho de pesquisa interior, em que duas tendências fortes da poesia do escritor são colocadas em confronto: de um lado, a persistência do intimismo e da subjetividade; de outro, a imposição dos fatos históricos, que exigiam uma arte comprometida, engajada, que respondesse adequadamente às questões que o tempo colocava diante dos intelectuais. 

Depois das inovações de linguagem promovidas pelos modernistas de 1922, era preciso revolucionar a própria sociedade, o “mundo caduco” que dava sinais cada vez mais claros de esquizofrenia.

Os versos livres e brancos e o coloquialismo da linguagem, marcas características da literatura modernista, estão presentes no livro, heranças claras de Mário de Andrade e Manuel Bandeira (este último homenageado em um poema do livro). Ao lado delas, nota-se a convivência pacífica entre imagens simples e outras, mais herméticas, de teor surrealista.

A composição dos poemas do livro coincide com a transferência de Drummond para o Rio de Janeiro, na condição de funcionário público federal. Sua poesia ganha em amplitude, seu olhar parece lançar-se sobre o mundo (“Mundo grande”). No entanto, a marca da terra natal não o abandona (“Confidência do itabirano”), e sua mineiridade continua a aflorar com toda a força (“Canção da moça-fantasma de Belo Horizonte”).

O vilão era o estado opressor – responsável tanto por ditaduras espalhadas pelo mundo, da Alemanha ao Japão, da Itália a Espanha, de Portugal ao Brasil, quanto pela miséria a que estava relegada a maior parte da população do planeta. A vitória sobre ele dependia da ação efetiva dos oprimidos. Embora se sinta assim, o poeta acredita que o movimento transformador venha, de fato, dos trabalhadores, mas seu diálogo com eles é cheio de tensão e de dificuldade de compreensão (“O operário no mar”). A distância social é sentida com dor e angústia (“Privilégio do mar”) e expressa, por vezes, com a acidez da ironia (“Os inocentes do Leblon”).

No entanto, é preciso vencer essa distância. O poeta se lança a essa tarefa, buscando alargar seus horizontes de comunicação (“Mãos dadas” e “Os ombros suportam o mundo”). Tem consciência dos riscos (“Congresso Internacional do Medo”), mas teme, acima de tudo, os efeitos da alienação, isto é, a sensação de distanciamento do mundo (“Poema da necessidade” e “Madrigal lúgubre”).

Ainda fragmentado, o poeta se vê lançado à participação e atormentado pelo risco da alienação. A resposta que oferece ao leitor evita as soluções fáceis e apresenta sem pudor suas dúvidas (“Noturno à janela do apartamento”). Resulta dessa opção um livro tenso, mas carregado de humanidade. (Daqui).

Fernando Marcílio - Mestre em Teoria Literária pela Unicamp


Claus Bergen, German battleships passing Heligoland, 1916
 
 
Primeira Guerra Mundial 

 
Em junho de 1914, o assassinato do príncipe herdeiro do trono austro-húngaro em Sarajevo forneceu o pretexto para um conflito que rapidamente iria tomar uma dimensão mundial inesperada (o número de países envolvidos iria ser de cerca de trinta, sendo mobilizados aproximadamente cinquenta milhões de homens em todas as frentes); mas as motivações profundas e reais do conflito ultrapassam largamente esse acontecimento, pois se filiam na competição entre as grandes potências que entre si rivalizavam pelo controle de fontes de matérias-primas e mercados e sobretudo pela alteração do mapa colonial, bem como na corrida aos armamentos em que estas se empenhavam.

Os contendores irão organizar-se em dois grandes blocos: de um lado a aliança entre a Alemanha e o Império Austro-Húngaro e do outro uma coligação em que sobressaem a Inglaterra e a França a oeste e a Rússia a leste. Os Estados Unidos, tal como Portugal, não participarão de início no conflito.

Numa primeira fase, que corresponde aproximadamente ao ano de 1914, a iniciativa pertence quase por inteiro aos exércitos alemães e seus aliados, travando-se uma guerra de movimento em duas frentes, na França e na frente russa (as mais importantes), bem como noutras regiões do globo, como a África e a Ásia. Segue-se uma guerra de trincheiras, em que as frentes se imobilizam com grandes perdas em homens e material, sem que qualquer dos contendores obtenha qualquer vantagem; faz aí o seu aparecimento o emprego de gases tóxicos como arma de combate. Ao mesmo tempo, a guerra submarina conduzida pela Alemanha causava perdas volumosas em tonelagem de navios, homens e bens, levantando dificuldades nas comunicações entre a Europa e a América.

Em 1917 a situação começará a alterar-se, quer com a entrada em cena de novos meios, como os tanques e a aviação, quer com a chegada ao teatro de operações europeu das forças americanas ou a substituição de comandantes por outros com nova visão da guerra e das táticas e estratégias mais adequadas; lançam-se, de um lado e de outro, grandes ofensivas, que causam profundas alterações no desenho da frente, acabando por colocar as tropas alemãs na defensiva e levando por fim à sua derrota.
 
É verdade que a Alemanha adquire ainda algum fôlego quando a revolução estala na Rússia e o governo bolchevista, chefiado por Lenine, prontamente assina a paz sem condições, assim anulando a frente leste, mas essa circunstância não será suficiente para evitar a derrocada. O armistício que põe fim à guerra é assinado em 11 de novembro de 1918.

A opinião pública manifestara-se de certo modo favorável à guerra no seu início, havendo uma sensação generalizada de que se trataria de um conflito breve e insignificante e predominando, nos adversários da Alemanha, a convicção de que se lutava pelos grandes valores da Humanidade contra a barbárie teutónica e a convicção otimista de que o conflito traria a paz ao mundo (o Presidente americano Wilson proclamaria que se tratava de uma "guerra para acabar com todas as guerras"). Este otimismo seria destruído pelo prolongar dos combates e pela divulgação dos sofrimentos, quer dos combatentes quer das populações civis (o número de mortos ascenderia a perto de nove milhões só entre os contendores mais importantes), o que reforçou os movimentos pacifistas e desencadeou greves de conteúdo político.

Após o conflito, e sob a influência determinante de Wilson, seria constituída a Sociedade das Nações, que pretendia ser um fórum vocacionado para arbitrar conflitos entre os estados e impedir de futuro a repetição das guerras. (Daqui)


Consequências da Primeira Guerra Mundial
 
 
 As consequências imediatas da Primeira Guerra Mundial foram evidentemente as baixas humanas. O conflito fez mais de 8 milhões de mortos (1,9 milhões na Alemanha, 1,7 milhões na Rússia, 1,4 milhões na França, 1 milhão na Áustria-Hungria e 760 mil na Inglaterra), 20 milhões de feridos e 6 milhões de inválidos. Traduziu-se igualmente em grandes perdas económicas e em enormes gastos com o esforço de guerra, lançando muitos Estados em sérias crises. A Europa passou por um período de dependência económica e também de instabilidade política, perdendo a sua posição de hegemonia que ocupava no panorama mundial.

Em termos económicos, a Europa ficou completamente desorganizada, com graves problemas no setor agrícola e industrial. Os grandes beneficiários desta situação foram os EUA e o Japão. No caso do Japão, o país pode beneficiar do afastamento dos tradicionais concorrentes europeus, o que permitiu o estímulo e a diversificação da sua indústria. Os EUA lucraram também, pois viram as suas reservas de ouro duplicar, ficando nas suas mãos cerca de metade do ouro disponível a nível mundial. Este poderio económico vai permitir ao país substituir a pouco e pouco a preponderância financeira dos europeus, em particular na América do Sul. Segundo o tratado de Versalhes (28 de junho de 1919), a Alemanha era considerada a grande responsável pela guerra, tendo que pagar 22 milhões de marcos/ouro como reparação dos danos às populações civis. Este dinheiro foi repartido na sua maior fatia pela França (52%) e pela Grã-Bretanha (22%).

Mas mais significativa que os reveses económicos foi a reconstrução política da Europa, "plasmada" em vários tratados de paz assinados após a Guerra, reunidos sob o nome de Tratados de Versalhes, cuja ineficácia ficaria provada em menos de duas décadas. As negociações de paz reuniram 32 Estados, entre vencedores e vencidos, orientados sob os princípios idealistas do presidente americano Woodrow Wilson (1913-1921). Daqui resultaram problemas políticos que seriam posteriormente o rastilho para uma guerra ainda mais letal do que a que findava. Os problemas-chave latentes eram o direito de nacionalidade das minorias assimiladas pelos Impérios Austríaco, Russo e Otomano; a repartição dos territórios coloniais, não europeus; a vexação sofrida pela Alemanha (desmilitarizada, perdendo territórios e pagando indemnizações pesadas); e o fracasso da Sociedade das Nações (SDN), incapaz de fazer respeitar os acordos e manter a paz.

O mapa geopolítico da Europa foi então redefinido sobre os escombros da guerra. A Alemanha foi forçada a evacuar a Alsácia-Lorena, pertencente à França, e a margem esquerda do Reno (Renânia). A região do Sarre ficará sob o controlo da SDN, reservando ao território o direito de optar em relação ao país que desejasse integrar (a França ou a Alemanha). A Posnânia (na Polónia) e uma parte da Prússia (território alemão no báltico oriental) são dadas à Polónia, ainda que o acesso ao Báltico fosse assegurado por um "corredor" de 80 km, separando-se a Alemanha da Prússia oriental. O território do Norte de Schleswig foi também anexado à Dinamarca, após plebiscito entre a população (1920).

A Europa central e balcânica foi totalmente reorganizada a partir do desmembramento do Império Austro-Húngaro. A Hungria viu-se, todavia, amputada de parte do seu território pelo tratado de Saint-Germain-en-Laye (10 de setembro de 1919), perdendo ainda outras regiões através do disposto no tratado de Trianon (4 de junho de 1920). Segundo o tratado de Neuilly (novembro de 1919), a Bulgária foi forçada a ceder a Trácia à Grécia e a Macedónia à Sérvia. A Turquia teve também que abandonar as suas possessões árabes e a Terra Santa, o que correspondia a quatro quintos do seu império (tratado de Sèvres, 10 de agosto de 1920). Relativamente à Polónia, o tratado de Versalhes pouco precisou no que diz respeito à sua fronteira oriental com a Rússia. O desmembramento do Império dos Habsburgos (Áustria-Hungria) vai beneficiar a então recente república checoslovaca, a Roménia e a Sérvia, cujo Estado ficava com a posse da Eslovénia, a Croácia (com a Dalmácia).

Aos impérios históricos, formados sob o princípio da legitimidade, sucediam-se os novos países criados sob o princípio da nacionalidade, face à eclosão de diversos movimentos nacionalistas. Húngaros, polacos, checos e eslovacos e povos da ex-Jugoslávia proclamam a sua autonomia logo em 1918 no fim da guerra, enquanto se ouvem também os protestos de albaneses, arménios e gregos orientais (da Turquia). Ao mesmo tempo, os países que perderam com o alinhamento das fronteiras, como a Hungria e a Alemanha, mostravam o seu descontentamento aderindo a ideais como os saídos da terceira Internacional comunista ou mesmo a outros de expressão mais extremista, de direita nacionalista.

A Europa dividiu-se politicamente. A vitória dos Aliados era entendida como a vitória da democracia face aos impérios autocráticos. O garante desta nova ordem seria a SDN, instituída pelo tratado de Versalhes. A Sociedade tinha uma dupla função: por um lado, garantia a paz e a segurança internacional, e por outro devia desenvolver a cooperação entre as nações, encarando o espírito universal do parlamentarismo. Contudo, porque baseada em equívocos, a sua ação irá revelar-se insuficiente para evitar o deflagrar de um novo conflito.
(Daqui)
 
 

domingo, 28 de março de 2021

"Soneto das alturas" - Poema de Lêdo Ivo


 
Alexei Savrasov (Russian, 1830-1897), The Rooks Have Come Back, 1871

[Savrasov was one of the most important of all the 19th century Russian landscape painters, considered the creator of the "lyrical landscape style". A trully emblematic work, "the rooks have returned" (or "the rooks have come back") is Savrasov's most famous painting, a lovely elegy to the spring announced by the rooks return.] (Daqui)


Soneto das alturas

 
As minhas esquivanças vão no vento
alto do céu, para um lugar sombrio
onde me punge o descontentamento
que no mar não deságua, nem no rio.

Às mudanças me fio, sempre atento
ao que muda e perece, e ardente e frio,
e novamente ardente é no momento
em que luz o desejo, poldro em cio.

Meu corpo nada quer, mas a minh′alma
em fogos de amplidão deseja tudo
o que ultrapassa o humano entendimento.

E embora nada atinja, não se acalma
e, sendo alma, transpõe meu corpo mudo,
e aos céus pede o inefável e não o vento.

 
Lêdo Ivo,
do livro "Acontecimento do soneto"
‘Ode à Noite', 1951.
 


Alexei Savrasov, The Sukharev Tower, 1872


Os Poemas



É meu corpo que escreve os meus poemas.
Minha alma é a sucursal da minha mão.
As palavras me buscam no silêncio.
Palavras são estrelas que reclamam
o papel branco: céu, constelação.

Lêdo Ivo
,
de "Rumor Noturno", 2009
 
 

sábado, 27 de março de 2021

"Anima Mea" - Soneto de Antero de Quental




Josefa Garcia Greno, Jarro com rosas, s/d
 


Anima Mea 
 
 
Estava a Morte ali, em pé, diante,
Sim, diante de mim, como serpente
Que dormisse na estrada e de repente
Se erguesse sob os pés do caminhante.

Era de ver a fúnebre bacante!
Que torvo olhar! que gesto de demente!
E eu disse-lhe: «Que buscas, impudente,
Loba faminta, pelo mundo errante?»

— Não temas, respondeu (e uma ironia
Sinistramente estranha, atroz e calma,
Lhe torceu cruelmente a boca fria).

Eu não busco o teu corpo... Era um troféu
Glorioso de mais... Busco a tua alma —
Respondi-lhe: «A minha alma já morreu!» 
in "Sonetos"

 Adolfo Greno (1854-1901), Retrato de Josefa Garcia Greno, 1887 
 

Biografia de Josefa Garcia Greno
 
 
Maria Josefa Garcia Seone Greno (Medina-Sidonia, 1 de setembro de 1850 - Lisboa, 27 de janeiro de 1902), mais conhecida por Josefa Garcia Greno, foi uma pintora luso-espanhola naturalista que fez parte do Grupo do Leão.

Quando o pai, o capitão-general José Garcia Saéz morreu, ela tinha apenas 4 anos de idade. Josefa e a mãe, Maria Seone, foram viver para Corunha e residiram na Galiza seis anos. Retornaram à Andaluzia e moraram em Sevilha. Aí Josefa aprendeu a ler, a escrever, a bordar e a desenhar num dos melhores colégios espanhóis, chegando a escrever e publicar contos e poemas. 

O regresso delas a Sevilha deu-se durante a queda da Primeira República Espanhola e o restabelecimento da monarquia com Afonso XII — a instabilidade reinava em Espanha, o regime republicano duraria apenas onze meses, espaço de tempo em que o país enfrentou três guerras civis. Talvez temendo a insegurança, optaram por se instalar em Lisboa, devido à Terceira Guerra Carlista. Na capital portuguesa, Josefa recorreu à alta costura e aos bordados como forma de sustento para ela e sua mãe. 

Por volta de 1870, conheceu o seu futuro marido, o pintor Adolfo César de Medeiros Greno, que estudava pintura na Academia de Belas-Artes de Lisboa.

A 18 de setembro de 1876, aos 26 anos, casa, na Igreja de Nossa Senhora do Socorro, em Lisboa, com Adolfo Greno, de 22. No mesmo ano, ela mudou-se para Paris com a mãe, para que Adolfo, discípulo do romântico Miguel Ângelo Lupi, prosseguisse seus estudos e onde serve de modelo para os quadros dele. Adolfo iria beneficiar da bolsa de Pintura Histórica que ganhara, passando a ter por mestre Alexandre Cabanel, seguidor dos modelos clássicos greco-romanos. Entretanto este começou a desleixar os estudos e o trabalho, frequentando cada vez mais a noite boémia da cidade e deixando de cumprir prazos de entrega. Este comportamento fez com que perdesse em 1881, a bolsa de estudo que lhe fora atribuída pela Academia de Lisboa. Josefa ao ver que a família não podia depender do marido para se sustentar, decidiu aprender a pintar.

Josefa foi admitida na Société des Artistes Français graças ao quadro que apresentou de uma paisagem. Nesta altura, conviveu com os pintores Columbano Bordalo Pinheiro e Artur Loureiro e viu o seu trabalho trabalho ser reconhecido. É deste período o quadro Um Concerto de Amadores pintado por Columbano, no qual o casal Greno aparece por sugestão de Loureiro, Josefa é a figura feminina que se encontra ao lado do pianista, olhando para baixo.


Columbano Bordalo Pinheiro
, Um Concerto de Amadores, 1882. 
(Da esquerda para a direita: Maria Augusta Bordalo Pinheiro, Adolfo Greno, um cantor italiano, Josefa Greno e Artur Loureiro ao piano.)

Josefa Greno dedicou-se especificamente à pintura de flores, como mimosas, peónias, malmequeres, entre outras. Em 1884, participa na XIII Exposição da Sociedade Promotora das Belas-Artes, onde chamou a atenção dos organizadores do evento pela sua técnica, especialmente pelas cores que utilizava e a maneira de como trabalhava a luz nas suas telas. É premiada com uma medalha e torna-se um sucesso de vendas superior a José Malhoa.

Ela regressa a Portugal em 1886 e nesse ano apresentou quadros na VI Exposição Quadros Modernos, organizada pelo Grupo do Leão, para o qual foi convidada por Silva Porto. Passou a ser uma das Senhoras Leoas, nome pelo qual são conhecidas as mulheres artistas que faziam parte do grupo, nomeadamente: Berta Ortigão, Maria Augusta de Prostes Bordalo Pinheiro e Helena Gomes. 

Josefa tornou-se uma pintora aclamada, a quem não faltavam encomendas e os seus quadros vendiam-se rapidamente. Ensinou pintura e entre os seus discípulos encontram-se o pintor naturalista Simão Luís da Veiga e a pintora Júlia Hermínia da Conceição Xavier. Até 1901, é uma presença constante nas exposições organizadas pelo Grémio Artístico e pela Sociedade de Belas-Artes, tendo frequentado os salões da elite cultural lisboeta da altura, convivendo com escritores como Fialho de Almeida e expondo ao lado de artistas como Columbano Bordalo Pinheiro, José Malhoa, Silva Porto, Fanny Munró, entre outros.

Enquanto Josefa atingia um elevado sucesso profissional, o marido tinha um percurso contrário, gastando as poupanças da família. Tanto os amigos mais próximos do casal quanto os conhecidos consideraram que a maior crise nervosa de Josefa ocorrera em 1895, altura em que o marido se apropriou indevidamente das poupanças que ela arduamente tinha conseguido reunir. Em 1897, a crítica começou a levar em conta o que se dizia a propósito da sua decadência a nível familiar, não tendo participado no Grémio Artístico de 1899, ano em que a mãe, que sempre a acompanhara, mesmo em Paris, morreu, facto que abalou a pintora profundamente. Maria Seone já passava dos oitenta anos. Josefa nunca mais pegou nos pincéis.

Na noite de 7 de abril de 1901, Josefa desferiu um tiro sobre o marido, não o atingindo. O sucedido não teve efeito em Adolfo, visto que este tipo de intimidações mútuas eram comuns entre o casal. Josefa participa ainda na primeira exposição da Sociedade Nacional de Belas-Artes, que inaugurou a 15 de maio de 1901, não recebendo nenhuma medalha. 

Após vários anos de suplício, na noite de 25 para 26 de junho do mesmo ano, Josefa Garcia Greno atinge o marido com 4 tiros, criando, no concreto, a sua última natureza-morta, ficando o sucedido intitulado como "o horrível crime da Travessa de São Mamede" ou como o "caso Greno", sendo alvo de vários folhetos de cordel. Os quadros expostos na Sociedade de Belas-Artes foram todos adquiridos depois do fatal dia de 26 de junho. Teria dito:

 "Por ele me sacrifiquei e me fiz pintora… Trabalhei muito… até chegar à última pintura, que foi esta", acrescentando: "Roubou-me a alegria e a confiança, tudo o que uma mulher pode ter de mais sagrado. A minha vida era impossível com um mentiroso... Sofri muito. Sofro muito! (...) Ele gastava todo o dinheiro que eu ganhava. Era um desequilibrado. Não podíamos viver bem. A mulher tem os seus direitos." Foi levada para a Prisão do Aljube e no rol dos depoimentos, o seu cunhado, Carlos Greno, depõe a seu favor.

Foi transferida para o Hospital de Rilhafoles a 2 de julho de 1901 e Miguel Bombarda, aclamado psiquiatra e diretor daquele hospital, proibiu-lhe as visitas, não tendo ninguém retornado a ver Josefa com vida. O seu caso foi estudado por Bombarda que declarou tratar-se de um delírio. O psiquiatra recolheu vários pareceres de célebres congéneres estrangeiros, como Cesare Lombroso, Emil Kraepelin e Eduard Hitzig. Terminado o processo médico-legal, Josefa foi declarada como insana pela maioria dos jornais da época, sendo a sua imagem cruelmente denegrida por Maximiliano Lemos na sua entrada da Enciclopédia Illustrada, dados mais tarde eliminados na Grande Enciclopédia portuguesa e brasileira.

 Pouco tempo depois, é-lhe diagnosticado o mal de Bright (afecção renal), a que se somava a decadência mental. Sete meses depois de ser internada, Josefa Garcia Greno falece às 21 horas de 27 de janeiro de 1902, aos 51 anos, no Hospital de Rilhafoles, à data situado na freguesia da Pena, em Lisboa. No dia seguinte é realizada uma autópsia pelo próprio Dr. Miguel Bombarda, que, mais tarde, a 1 de fevereiro, sob a sua presidência, realiza uma sessão na Sociedade de Ciências Médicas, sendo o principal orador na exposição do caso da pintora. Na mesma sessão, Silva Amado, denota na análise à autópsia que Josefa tinha um coração com mais do dobro do peso e medida de um coração feminino.

A 29 de janeiro, é publicado no Diário Illustrado, o seguinte artigo noticioso, acerca de sua morte: "(...) faleceu no hospital de Rilhafoles D. Josefa Greno. Eis o último quadro desse drama que tão profundamente nos impressionou. A morte, descendo sobre ela, deixou ainda uma terrível interrogação: Uns hão de responder a ela com a palavra crime, outros, mais piedosos, e por isso mesmo talvez mais sábios, com a palavra desgraça; e outros, ainda, hão de ver nessa interrogação a mais perfeita resposta... Seja, porém, o que for. O que é certo é que esse perturbado coração de mulher se há de ter encontrado já face a face com a Verdade: e oxalá que, à sua luz, ele tenha encontrado em si, não sangue, mas lágrimas somente". (Daqui)

 

 
Josefa Greno, Vaso com flores, s/d


"As nossas tragédias são sempre de uma profunda banalidade para os outros."