quarta-feira, 10 de março de 2021

"A Defesa do Poeta" - Poema de Natália Correia


 
 Paul Delvaux (Belgian painter, 1897-1994), Les phases de la Lune III, 1942


A Defesa do Poeta

 
Senhores jurados sou um poeta
um multipétalo uivo um defeito
e ando com uma camisa de vento
ao contrário do esqueleto

Sou um vestíbulo do impossível um lápis
de armazenado espanto e por fim
com a paciência dos versos
espero viver dentro de mim

Sou em código o azul de todos
(curtido couro de cicatrizes)
uma avaria cantante
na maquineta dos felizes

Senhores banqueiros sois a cidade
o vosso enfarte serei
não há cidade sem o parque
do sono que vos roubei

Senhores professores que pusestes
a prémio minha rara edição
de raptar-me em criança que salvo
do incêndio da vossa lição

Senhores tiranos que do baralho
de em pó volverdes sois os reis
sou um poeta jogo-me aos dados
ganho as paisagens que não vereis

Senhores heróis até aos dentes
puro exercício de ninguém
minha cobardia é esperar-vos
umas estrofes mais além

Senhores três quatro cinco e sete
que medo vos pôs por ordem?
que pavor fechou o leque
da vossa diferença enquanto homem?

Senhores juízes que não molhais
a pena na tinta da natureza
não apedrejeis meu pássaro
sem que ele cante minha defesa

Sou uma impudência a mesa posta
de um verso onde o possa escrever
ó subalimentados do sonho!
a poesia é para comer. 
(1923 – 1993)
In “Poemas a Rebate”
Publicações Dom Quixote 
 

 
Paul Delvaux (1897-1994), At the door

 
"Todos temos uma parte misteriosa e há quem pretenda resolver os seus mistérios na psicanálise.
 Eu prefiro dar-lhes voz na Poesia." 
 
Entrevista (1983) 
 
 

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