quarta-feira, 10 de março de 2021

"Notícias do Bloqueio" - Poema de Egito Gonçalves



William Glackens, Tugboat and Lighter, 1905 – óleo sobre tela – 63,5 x 76,2 cm
Museum of Art, Fort Lauderdale, Florida, USA



Notícias do Bloqueio


 
Aproveito a tua neutralidade,
o teu rosto oval, a tua beleza clara,
para enviar notícias do bloqueio
aos que no continente esperam ansiosos.

Tu lhes dirás do coração o que sofremos
nos dias que embranquecem os cabelos...
tu lhes dirás a comoção e as palavras
que prendemos – contrabando – aos teus cabelos.

Tu lhes dirás o nosso ódio construído,
sustentando a defesa à nossa volta
- único acolchoado para a noite
florescida de fome e de tristezas.

Tua neutralidade passará
por sobre a barreira alfandegária
e a tua mala levará fotografias,
um mapa, duas cartas, uma lágrima...

Dirás como trabalhamos em silêncio,
como comemos silêncio, bebemos
silêncio, nadamos e morremos
feridos de silêncio duro e violento.

Vai pois e noticia com um archote
aos que encontrares de fora das muralhas
o mundo em que nos vemos, poesia
massacrada e medos à ilharga.

Vai pois e conta nos jornais diários
ou escreve com ácido nas paredes
o que viste, o que sabes, o que eu disse
entre dois bombardeamentos já esperados.

Mas diz-lhes que se mantém indevassável
o segredo das torres que nos erguem,
e suspensa delas uma flor em lume
grita o seu nome incandescente e puro.

Diz-lhes que se resiste na cidade
desfigurada por feridas de granadas
e enquanto a água e os víveres escasseiam
aumenta a raiva  
                                             e a esperança reproduz-se

1952

Egito Gonçalves, in 'A Viagem com o Teu Rosto'
[O Pêndulo Afectivo - Antologia Poética, 1950-1990, Porto, Afrontamento, 1991]
 
 

Egito Gonçalves por Emerenciano
 

Poeta, tradutor, fundador de revistas literárias e editor de uma das mais importantes coleções de poesia do pós-25 de Abril, Egito Gonçalves foi uma das mais intervenientes figuras da poesia portuguesa da segunda metade do século XX.
"Aproveito a tua neutralidade,/ o teu rosto oval, a tua beleza clara,/ para enviar notícias do bloqueio/ aos que no continente esperam ansiosos. (...)" ... Nos anos 50 e 60, o poema de Egito Gonçalves que se inicia com estes versos tornou-se um verdadeiro símbolo da oposição ao regime salazarista. 
Escrito em 1952, publicado pela primeira vez na revista "Árvore" e rapidamente traduzido em várias línguas, este "Notícias do Bloqueio" é, antes de mais, um grande poema lírico, e foi sem dúvida por isso mesmo que se tornou um texto de resistência tão eficaz. A ponto de ter sido igualmente adotado como poema de culto por movimentos clandestinos dos países de Leste, antes da queda do Muro de Berlim. Garante-o o poeta Casimiro de Brito, que, tal como Egito, manteve duradouras ligações ao PCP. 
É também este texto que chama a atenção da crítica para a obra de Egito, que se iniciara com "Poema para os Companheiros da Ilha" (1950), um livro que o autor nunca viria a reeditar, e "A Evasão Possível" (1952). 
Em 1958 publica "A Viagem com o Teu Rosto", que a censura irá proibir. Alguns dos melhores poemas da primeira fase da sua obra estão contidos neste volume, desde o já referido "Notícias do Bloqueio" a esse "Afogado no Rio Leça", cujo tom quase surrealista se adequa na perfeição ao destinatário do texto: o poeta Mário Cesariny, que Egito salvou literalmente de morrer afogado. 
Ao longo de meio século - contado até à publicação, em 2000, do seu último título, "A Ferida Amável" -, Egito escreveu mais de vinte livros de poemas. Uma obra na qual é difícil rastrear uma evolução clara, já que, como bem notou Óscar Lopes, esta poesia revela uma oscilação pendular "entre a vertente lírica e a vertente interventora ou satírica". E podem assinalar-se, dentro da primeira, inúmeras cambiantes, desde a assumida poesia de amor dos seus dois últimos livros até à pura evocação de pessoas, lugares e pequenos episódios quotidianos que constitui o volume "E No Entanto Move-se" (1995), vencedor dos prémios do PEN Clube e da Associação Portuguesa de Escritores. 
Mas a dedicação de Egito à poesia esteve longe de se esgotar na escrita da sua própria obra. Criou e dirigiu uma série de revistas literárias - desde "Serpente" e "Notícias do Bloqueio" até "Limiar", traduziu inúmeros poetas, sobretudo do Leste europeu e dos países nórdicos, organizou diversas antologias e, não menos relevante, fundou em 1975 a editora portuense Limiar, cuja coleção "Os Olhos e a Memória", exclusivamente reservada à poesia, publicou, entre, muitos outros, Ramos Rosa, Fernando Guimarães, Pedro Tamen, Fiama Hasse Pais Brandão, Armando Silva Carvalho, Gastão Cruz ou Carlos Poças Falcão. 
E nem só a poesia o interessou. Foi um dos fundadores do Teatro Experimental do Porto e chegou a presidir ao Cineclube portuense, para já não referir outras dimensões, como a de praticante de montanhismo. "Era o homem mais otimista que conheci", diz Casimiro de Brito. "Quando dizia que estava ótimo, estava só bem, era preciso dar um desconto, mas ele dizia-o com toda a sinceridade". Talvez por isso a sua morte tenha apanhado alguns amigos de surpresa, como sucedeu a Pedro Tamen: "Foi, para mim, um enorme choque. Era, além de um excelente poeta, um homem admirável. É uma grande perda para a poesia portuguesa e uma grande perda para mim, que perdi um dos meus melhores amigos". 
Com a sua juvenilidade e boa disposição proverbial, Egito era um homem que gostava de comunicar com os outros. A poetisa Rosa Alice Branco, que o acompanhou nos últimos anos, observou bem - no prefácio que escreveu para "E No Entanto Move-se" - que este desejo de uma genuína comunicação é uma das chaves cruciais da sua própria poesia. Os dois versos que abrem "Poema para os Companheiros da Ilha", o já referido livro de estreia repudiado, são estes: "Atiro a minha voz sobre o Atlântico Norte/ como uma flecha aos corações dos companheiros". (Daqui)
 
 

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