Max Pechstein, Self-portrait with death, 1920
Tu? Eu?
Não morres satisfeito.
A vida te viveu
sem que vivesses nela.
E não te convenceu
nem deu motivo
para haver o ser vivo.
A vida te venceu
em luta desigual.
Era todo o passado
presente presidente
na polpa do futuro
acuando-te no beco.
Se morres derrotado,
não morres conformado.
Não morres satisfeito.
A vida te viveu
sem que vivesses nela.
E não te convenceu
nem deu motivo
para haver o ser vivo.
A vida te venceu
em luta desigual.
Era todo o passado
presente presidente
na polpa do futuro
acuando-te no beco.
Se morres derrotado,
não morres conformado.
Nem morres informado
dos termos da sentença
de tua morte, lida
antes de redigida.
Deram-te um defensor
cego surdo estrangeiro
que ora metia medo
ora extorquia amor.
Nem sabes se és culpado
de não ter culpa. Sabes
que morres todo o tempo
no ensaiar errado
que vai a cada instante
desensinando a morte
quanto mais a soletras,
sem que nascido, mores
onde, vivendo, morres.
Não morres satisfeito
de trocar tua morte
por outra mais perfeita.
Não aceitas teu fim
como aceitaste os muitos
fins em volta de ti.
Testemunhaste a morte
no privilégio de ouro
de a sentires em vida
através de um aquário.
Eras tu que morrias
nesse, naquela; e vias
teu ser evaporado
fugir à perceção.
Estranho vivo, ausente
na suposta consciência
de imperador cativo.
Foste morrendo só
como sobremorrente
no lodoso telhado
(era prémio, castigo?)
de onde a vista captava
o que era abraço e não
durava ou se perdia
em guerra de extermínio,
horror de lado a lado.
E tudo foi a caça
veloz fugindo ao tiro
e o tiro se perdendo
em outra caça ou planta
ou barro, arame, gruta.
E a procura do tiro
e do atirador
(nem sequer tinha mãos),
a procura, a procura
da razão da procura.
Não morres satisfeito,
morres desinformado.
in A falta que ama, 1968
[Publicado em 1968, A falta que ama aprofunda questões que sempre marcaram a obra poética de Carlos Drummond de Andrade: afetos, memória e observações sobre a realidade brasileira.]
Max Pechstein, Under the Trees (Akte im Freien), 1911, oil on canvas,
73.6 x 99 cm (29 x 39 in), Detroit Institute of Arts
É meu conforto
Da vida só me tiram
Morto.
É meu conforto
Da vida só me tiram
Morto.
(Haicai / Haikai)
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