domingo, 7 de março de 2021

"Preguiçar no meio dia absorto" - Poema de Eugenio Montale


Zinaida Serebriakova (Russian, 1884-1967), The Veranda in Spring, watercolor, 1900

 
Preguiçar no meio dia absorto 
(Trad. de Maria José de Lencastre)
 
Preguiçar, no meio dia, absorto,
ao pé do muro em brasa do horto,
escutar entre as silvas e espinhos
roçar de cobras, estalar de ninhos.

Nas fendas do solo ou sobre urtigas
espreitar as filas vermelhas das formigas
que ora se cruzam ora se rompem
no alto de minúsculos montes.

Observar por entre ramos o palpitar
longínquo de escamas de mar
enquanto se ouve a trémula algazarra
nos montes escalvados das cigarras.

E andando sobre o sol que ofusca
perceber com melancólico espanto
o que toda a vida e sua busca,
o nosso dia-a-dia: um muro de horto
que tem no alto caos de garrafa. 
  In “Critério” – nº 2 – 1975
(Tradução de Maria José de Lencastre)
 
 
Zinaida Serebriakova, Versailles Roofs, 1924, Têmpera, 46.2 x 61.7 cm
The Tretyakov Gallery, Moscow, Russia


Sestear entre pálido e absorto 
(Trad. de Ivo Barroso

Sestear entre pálido e absorto
junto a um ardente muro de horto;
ouvir por entre sarças e estrepes
pios de melros, silvos de serpes.

Entre as fendas do solo ou pelo coentro
espiar filas de rubras formigas
que ora se espalham, ora se concentram
em cima de minúsculas vigas.

Observar entre a fronde a palpitar
ao longe as escamas do mar
enquanto se erguem os trémulos rascos
das cigarras de altos penhascos.

E andando ao sol que nos baralha
a vista, ver — triste maravilha —
como é toda esta vida e sua estafa
ao longo deste muro que rebrilha
com seus cacos agudos de garrafa. 
 



 
Zinaida Serebriakova, The Orchard, 1908-9, Têmpera sobre papel, 47.7 x 56 cm
 The Russian Museum, St. Petersburg, Russia 


 Meriggiare pallido e assorto
(Original)
 
Meriggiare pallido e assorto
presso un rovente muro d' orto,
ascoltare tra i pruni e gli sterpi
schiocchi di merli, frusci di serpi.

Nelle crepe del suolo o su la veccia
spiar le file di rosse formiche
ch' ora si rompono ed ora s' intrecciano
a sommo di minuscole biche.

Osservare tra frondi il palpitare
lontano di scaglie di mare
mentre si levano tremuli scricchi
di cicale dai calvi picchi.

E andando nel sole che abbaglia
sentire con triste meraviglia
com' é tutta la vita e il suo travaglio
in questo seguitare una muraglia
che ha in cima cocci aguzzi di bottiglia.
 
 
 
 
Eugenio Montale
 
Homem de letras italiano, Eugenio Montale nasceu a 12 de outubro de 1896, na cidade de Génova. Filho de um agente de importações, logo se revelou uma criança enfermiça, o que levou os pais a tirarem-no da escola durante o ensino secundário. Desde muito cedo se apaixonou pelo canto lírico e pela poesia, tendo começado a receber lições particulares de Ernesto Sivari, um barítono bastante reputado na época. Passou também grande parte da sua adolescência numa luxuosa propriedade situada na Ligúria, pertença da sua família, onde se inspirou através de reflexões interiores profundas.

Com a deflagração da Primeira Grande Guerra, Montale alistou-se no exército, e serviu na frente austríaca com uma patente de oficial de infantaria. A assinatura do Armistício devolveu-o ao lar familiar onde, tentando retomar a sua vida civil, prosseguiu nas suas aspirações de se vir a tornar solista de ópera.
Não obstante, Sivari faleceu em 1923, o que desencorajou Montale, que decidiu orientar definitivamente o seu esforço criativo para a escrita. Tinha contribuído já a partir de 1921 para publicações como Primo Tempo, e revelado uma faceta original, fruto de uma sensibilidade e uma lucidez pouco usuais.

Em 1925 publicou o poema "Omaggio A Svevo" num jornal de Milão. Como o próprio título o indica, era uma homenagem ao também poeta e compatriota Italo Svevo, e causou uma forte impressão nos meios literários italianos, suscitando igual interesse no futuro de Montale. Nesse mesmo ano saiu do prelo o seu primeiro livro, uma coletânea de poesia intitulada Ossi Di Seppia (1925), e que recolora a beleza das paisagens da Ligúria com uma sequência introspetiva justa e rigorosa.

Em 1927 mudou-se para Florença, onde começou a trabalhar para uma editora e, no ano seguinte, foi nomeado diretor do Gabinetto Viesseux, uma biblioteca vocacionada para a investigação. Seguiu-se então um período em que se dedicou à divulgação e estudo da obra de Svevo. Discordando do panorama político que recaía sobre a Itália, acabou por ser demitido do seu cargo em 1938, após ter recusado associar-se ao Partido Fascista.
Montale viu-se então obrigado a ganhar o seu sustento como tradutor, versando para o italiano autores como William Shakespeare, Herman Melville e T.S. Elliot, entre muitos outros.

No mesmo ano em que eclodiu a Segunda Guerra Mundial, apareceu a sua segunda coletânea de poemas, Occasioni (1939), em que o poeta se mostrava mais íntimo, mais preocupado com as suas próprias emoções na sua resposta aos acontecimentos políticos do seu tempo. Em 1943 publicou Finisterre, um volume de poesia com uma tiragem discreta, mas que marcou presença naqueles tempos de horror e destruição.

Procurou fazer um balanço da sua carreira em Intenzione (Intervista Immaginaria) (1946), revelando parte da sua personalidade, relacionando-a com a obra anteriormente publicada. Em 1956 publicou La Bufera e Altro, uma compilação de poemas que haviam já aparecido em Finisterre, e que lidavam com as experiências do autor durante a Segunda Guerra Mundial, acrescida de outros inéditos, estes concentrando-se já na paz descontente. Em 1966 foi a vez de Auto da Fé, obra que aborda as problemáticas dos tempos correntes. No ano seguinte, foi nomeado membro vitalício do Senado italiano. Continuou no entanto a escrever, publicando volumes de importância como Satura (1971), Diario Del '71 E Del '72 (1973) e Quaderno Ni Quattro Anni (1977).

Galardoado com o Prémio Nobel da Literatura em 1975, Eugenio Montale faleceu a 12 de setembro de 1981, em Milão.
(Daqui)
 

Zinaida Serebriakova, The Shoots of Autumn Crops, 1908, Tretyakov Gallery


"A poesia está celularmente vinculada à língua mãe e na melhor das hipóteses as melhores traduções são meras recriações." 

Natália Correia

Entrevista (1963)


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