segunda-feira, 20 de maio de 2024

"Cantigas" - Poema de João de Deus


Charles Joshua Chaplin (French painter, 1825 - 1891), Rêverie, s.d.
National Museum of Fine Arts
 

Cantigas


Quando vejo a minha amada
Parece que o Sol nasceu;
Cantai, cantai alvorada
Ó avezinhas do céu.

Nessas águas do Mondego
Se pode a gente mirar,
Elas procuram sossego...
E vão a caminho do mar.

A rosa que tu me deste
Peguei-lhe, mudou de cor;
Tornou-se de azul-celeste
Como o céu do nosso amor.

Não me fales da janela,
Que te não ouço da rua;
Fala-me de alguma estrela,
Que te vou ouvir da Lua.

Dizes que a letra não deve
Ser nunca miudinha;
Mas grada ou miúda escreve,
Que o coração adivinha.

Não digas que me não amas
A ver se tenho ciúme;
Os laços do amor são chamas,
E não se brinca com lume.

A virgem dos meus amores
Sobressai entre as mais belas:
É como a rosa entre flores,
É como o Sol entre estrelas.

Eu zombo de sol e chuva,
Noite e dia, terra e mar;
Ais de uma pobre viúva,
Se os ouço, dá-me em chorar.

A sombra da nuvem passa
depressa pela seara;
Mas a nuvem da desgraça
Já de mim se não separa.

Eu bem sei qual é a tinta
Que dás às faces mimosas;
E o carmim com que pinta
Deus nosso Senhor as rosas.

Quando eu era pequenino
Que chorava a bom chorar
A mãe beijava o menino,
No beijo se ia o pesar.

Nunca os beijos que te dei
Me venham ao pensamento...
Correi lágrimas, correi
Para o mar do sofrimento.

Faça Deus maior o mundo,
Terra, mar e céu maior,
Não faz nada tão profundo,
Tão vasto como este amor.

Se tua mãe te vigia,
Faz tua mãe muito bem;
Com joias de tal valia
Não há fiar em ninguém.

Na alma já não me assoma
Aquela antiga visão;
A rosa perdeu o aroma
A luz perdeu o clarão.


João de Deus (1830-1896),
in 'Campo de Flores'


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