Jakub Schikaneder (Bohemian painter, 1855–1924), Murder in the House, 1890,
Memorando
Senhor,
Se o meu tempo é de campos de concentração,
De bombas de hidrogénio e de maldição,
E de cruéis tiranos
Com pelos nos ouvidos e no coração,
Que ando eu a fazer aqui,
Funâmbulo de angústia
Com miragens de esperança?
Pois que não há lugar neste universo imundo
Para bucólicos prados de trigo e calhandras,
E foguetes festivos,
E chefes que eu eleja e destitua,
Corta lá no canhenho do destino
A humana condição de ser poeta!
Sinto em nome de todos que se calam
As vergastadas de absurdo e medo
Que consentes na alma dos mortais.
E como nada posso, senão isto:
Protestar, protestar,
Desta maneira inútil que tu vês
E o rebanho pressente,
Risco na ardósia dos obreiros laicos,
Que procuram sentido à tua obra,
O sagrado condão de dedilhar
Nas grades da gaiola que fizeste
Quando eras rapaz
E mal sonhavas quanto mal fazias.
Jovem deus criador,
Assombrado de cada imperfeição
Do barro da olaria,
Ias doirando esses desenganos
Com milagres gratuitos e originais.
Saía-te das mãos, cercada de incertezas,
A redonda amargura deste mundo;
Que remédio senão alguns harpistas
A entoar harmonias ideais!
Mas o tempo passou. Envelheceste.
Morreu-te a fantasia.
E queres a repressão dos que te negam
Ou te corrigem.
Eu e outros, perdidos neste inferno
Onde nenhum Plutão nos ouve ou nos tolera,
Somos a consciência atormentada
Pelos anjos da guarda que te servem,
A trair os irmãos, tão condenados
Como eles.
Por caridade, pois,
E divina lisura,
Apaga lá no céu
A luz que representa
A vida destas pobres criaturas
Cuja missão traíste, por decrepitude.
Bardos da luz que punham nos teus olhos
E da graça do mágico universo
Que generosamente
Como um pomo irreal viam na tua mão,
Rangem agora os dentes de revolta
A falar de justiça,
De igualdade,
E de amor,
Coisas que já nem tu
Sabes que valores são.
Risca! Risca no livro etéreo
O infeliz e belo
Nome de Orfeu!
Coimbra, 16 de dezembro de 1952
Miguel Torga, Diário VI (1953)
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