sábado, 30 de novembro de 2024

"O cego" - Poema de Jorge Luis Borges

 
Charles Spencelayh (English painter, 1865–1958), The empty chair, 1922.


O cego


Foi despojado do diverso mundo,
Dos rostos, que ainda são o que eram antes,
Das ruas próximas, hoje distantes,
E do côncavo azul, ontem profundo.

Dos livros lhe restou só o que deixa
A memória, essa fórmula do olvido
Que o formato retém, não o sentido,
E que apenas os títulos enfeixa.

O desnível espreita. Cada passo
Pode levar à queda. Sou o lento
Prisioneiro de um tempo sonolento

Que não regista aurora nem ocaso.
É noite. Não há outros. Com o verso
Lavro este meu insípido universo.

II

Desde meu nascimento, lá em noventa e nove,
Da côncava parreira ao poço mais profundo,
O tempo minucioso, que na memória é breve,
Foi me furtando as formas visíveis deste mundo.

Os dias e as noites limaram os semblantes
Das palavras humanas e dos rostos amados;
Em vão interrogaram meus olhos esgotados
As vãs bibliotecas e suas vãs estantes.

O azul e o vermelho são agora uma névoa
E duas vozes inúteis. O espelho que miro
É só uma coisa cinza. No jardim aspiro,

Amigos, uma lúgubre rosa em meio à treva.
Agora só perduram as formas amarelas.
E os pesadelos são minhas únicas telas.


Jorge Luis Borges,
em "Quase Borges: 20 transpoemas e uma entrevista".
Traduções de Augusto de Campos.
São Paulo: Terracota, 2013.
 

sexta-feira, 29 de novembro de 2024

"A Grande Enchente" - Poema de Mário Quintana


Abbey Altson (British artist, 1866–1948), Flood Sufferings, 1890, oil on canvas.



A Grande Enchente


Cadáveres de Ofélias e cadelas mortas
virão parar por um instante às nossas portas.

Porém – sempre à mercê dos redemoinhos –
prosseguirão depois seus incertos caminhos...

Quando a água alcançar as mais altas janelas
eu pintarei rosas de fogo em nossas faces amarelas.

Que importa o que há de vir? Tudo é poupado aos loucos
e os loucos tudo se permitem. Vamos!

Espíritos de deuses, sobre as águas pairamos.
Alguns de nós dizem que apenas somos nuvens...
Outros, uns poucos,
dizem que somos nada mais que mortos...

Mas não avisto, lá em baixo, os nossos próprios
defuntos... E em vão, também, olho em redor...

Onde é que estão vocês,
amigos, amigas, dos primeiros e dos últimos dias?

É preciso, é preciso, é preciso continuarmos juntos!

E, então, num último, e diluído, e triste pensamento
eu sinto que o meu grito é só a voz do vento...
 
 
Mário Quintana,
"Apontamentos de História Sobrenatural", 1976.
 
 ★★★

[Entre 13 de abril e 6 de maio de 1941, o Rio Grande do Sul, sofreu uma catástrofe climática. Segundo registos da época, Porto Alegre recebeu chuva por 24 dias seguidos, vitimando dezenas de pessoas e desabrigando cerca de 70 mil famílias nas regiões do Estado. 
Mário Quintana, dos mais importantes poetas gaúchos, impressionado com os acontecimentos, escreveu um de seus mais comoventes poemas sobre a tragédia, intitulado "A Grande Enchente".]

quinta-feira, 28 de novembro de 2024

"Depus a máscara e vi-me ao espelho" - Poema de Álvaro de Campos / Fernando Pessoa

 

Norman Rockwell (American painter and illustrator, 1894 - 1978),
 Painting the Little House, s.d.
 
 

Depus a máscara e vi-me ao espelho


Depus a máscara e vi-me ao espelho. —
Era a criança de há quantos anos.
Não tinha mudado nada... 

É essa a vantagem de saber tirar a máscara.
É-se sempre a criança,
O passado que foi
A criança.
 
Depus a máscara e tornei a pô-la.
Assim é melhor,
Assim sou a máscara.

E volto à personalidade como a um terminus de linha.

18-8-1934 
 
Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa.
Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993). - 61.

quarta-feira, 27 de novembro de 2024

"Estrada" - Poema de Rui Knopfli


Harald Sohlberg (Norwegian Neo-romantic painter, 1869- 1935),
Country Road, c. 1912.
 
 

Estrada

Súbito apercebo-me:
Segue a viagem dos anos.
Passou o tempo das amoras
e das laranjas furtadas,
a flor da chuva de ouro
para sugar o gostinho a açúcar.

Sonho com uma comprida paisagem de cedros
que nunca vi.
Apetece-me deixar o corpo adormecido
junto ao rádio
e ir passear pelos galhos das árvores
e sobre os fios telefónicos.

Nada feito,
pesada de agruras e desertos
segue a viagem dos anos.


Rui Knopfli, Obra Poética, 2003

 

 
Harald Sohlberg (Norwegian Neo-romantic painter, 1869 - 1935), 
 Self-portrait (Paris, 1896).


"Toda a obra de arte é uma personalidade. O artista vive nela, depois dela ter vivido um longo tempo dentro dele."

(José María Vargas Vila)
 

terça-feira, 26 de novembro de 2024

"Vestígios Divinos" - Poema de Alberto de Oliveira

 

Alfredo Andersen (Pintor, escultor, decorador, cenógrafo, desenhista e professor norueguês 
radicado no Brasil, 1860 -1935), Vista da Curva do Cadeado 
(Conjunto Marumbi ao fundo), c. 1920.
 
 
Vestígios Divinos

(Na Serra de Marumbi)

Houve deuses aqui, se não me engano;
Novo Olimpo talvez aqui fulgia;
Zeus agastava-se, Afrodite ria,
Juno toda era orgulho e ciúme insano.

Nos arredores, na montanha ou plano,
Diana caçava, Actéon a perseguia.
Espalhados na bruta serrania,
Inda há uns restos da forja de Vulcano.

Por toda esta extensíssima campina
Andaram Faunos, Náiades e as Graças,
E em banquete se uniu a grei divina.

Os convivas pagãos ainda hoje os topas
Mudados em pinheiros, como taças,
No hurra festivo erguendo no ar as copas. 
 

Alberto de Oliveira, Poesias, 4ª série, 1928.

segunda-feira, 25 de novembro de 2024

"Quando os meus irmãos voltarem " - Poema de Aires de Almeida Santos


Horace Pippin (American painter, 1888–1946), Sunday Morning Breakfast, 1943.
 
 
 
 Quando os meus irmãos voltarem


Quando a minha mãe vier
e trouxer
os meus irmãos
iremos todos viver
para a estrada de Catete.

Havemos de construir com as nossas mãos
uma casita de adobe
bonita,
onde caberemos todos.
será vermelha,
toda coberta de capim.

Vai ser fácil amassar
porque o barro já está tinto
de tanto, de tanto sangue
há tanto tempo a correr.

Terá também um jardim
com rosas e buganvílias.

Vai ser fácil
pois mesmo que a chuva tarde
serão regadas
com lágrimas caídas
dos olhos de todos nós.

Quando a minha mãe vier
e trouxer
os meus irmãos
iremos todos viver
para a estrada de Catete.

E jantaremos mufete...
e beberemos quissângua
que vos virá do Bié.

E dormiremos na esteira
embalados pela brisa
que soprará no Musseque. 

Descansaremos
do longo caminho andado.
Descansaremos
pra mais longa caminhada...

Ah! quando a minha mãe vier
e trouxer os meus irmãos
será pequena a nossa casa bonita
(que eu tenho milhões de irmãos!)

Quando a minha mãe vier
e trouxer
os meus irmãos,
iremos varrer
as cinzas dos que partiram à frente,
e cantar,
espalhar
a nossa alegria
pelas vertentes das serras,
pelas areias das dambas,
pelos vales,
pelos montes,
pela beirinha dos rios
junto às fontes.

Havemos de cantar!...

Ah! quando a minha mãe vier
e trouxer os meus irmãos,
arderá uma fogueira
à beira
de cada trilho
e o brilho
de cada estrela
será maior...

Mãezinha, ouve o teu filho.

Não tardes, mãe,
vem depressa... 


Aires de Almeida Santos
 

Aires de Almeida Santos

Poeta e jornalista angolano, Aires de Almeida Santos, nascido em 1922, no Planalto Central, no Chinguar, Bié (Angola), viveu, contudo, a sua infância junto do mar, na cidade de Benguela, entre o Bairro do Benfica e a Escola da Liga, onde fez a escola primária, e a adolescência na cidade do Huambo.
Concluído o ensino liceal, Aires de Almeida Santos possuía já o gosto pela escrita literária, sendo desta época alguns dos primeiros textos que foram, posteriormente, compilados no livro Meu Amor da Rua Onze.
Ideologicamente empenhado e comprometido com os valores da liberdade e da independência, o autor foi "deportado" para Luanda, nos anos 50, pela polícia colonial, onde mais tarde acabou por ser preso até finais da década de 60.
Quando saiu da prisão, a sua obra era já objeto de consagração e de análise.
Dedicando-se ao jornalismo, colaborou em vários jornais, nomeadamente Jornal de Benguela, Jornal de Angola e A Província de Angola.
Poeta da "geração da Cultura", retomou a vertente temática da anterior "geração da mensagem", cuja revista fora proibida e extinta pelas autoridades repressivas coloniais. Assim, a sua poesia centrou-se em preocupações profundamente nacionalistas e, na procura de elementos do passado remoto, encontrou formas que permitiam fazer, simultaneamente, a catarse da escravidão e a denúncia da miséria do tempo presente.
Recorrendo a uma linguagem eufemística, os textos de Aires de Almeida Santos remetem o leitor para momentos conotativos de denúncia da exploração e da repressão, associados a espaços de esperança que decorrem da implementação e projeção dos movimentos independentistas, enquanto plataformas revolucionárias e geradoras de PAZ.
Tendo vivido grande parte da sua vida em Benguela, única cidade, para além de Luanda, com alguma atividade cultural, a sua obra poética reflete uma profunda ligação a esta cidade que ele tão bem conhece física e afetivamente e que foi alicerce arquitetónico do seu imaginário infantil e "naif": "Tenho saudades do tempo/Em que corria descalço/Pelas areias do rio;/Comigo, os meus companheiros/Também descalços, correndo,/A correr ao desafio. (...)"
De cariz profundamente descritivo, a poesia de Almeida Santos permite um olhar quase fotográfico que regista, com clareza e precisão, os espaços físicos, psicológicos e sociais de uma cidade que o poeta elegeu incondicionalmente como "a sua": " (...) O Macuto da Ximinha/Que cantava todo o dia/Já não canta./O Zé Camilo, coitado,/Passa o dia deitado/A pensar em muitas coisas.(...)".
Através de uma escrita cheia de subtilezas formais, o autor entabula um colorido diálogo com a natureza, enformando temáticas que vão permitir engrossar as correntes da esperança da libertação nacional.
Aos 53 anos de idade, a exercer a profissão de jornalismo e a de guarda-livros, pôde viver o tão esperado momento da declaração da independência.
É então que toda a sua poesia, espalhada por um sem número de "mochilas clandestinas do exílio", é recolhida com o apoio do poeta David Mestre.
A sua obra poética, escassa mas de qualidade, está reunida no livro a que simbolicamente chamou Meu Amor da Rua Onze.
Morreu em Benguela em 1991. (daqui)
 

domingo, 24 de novembro de 2024

"Guerra" - Poema de Maria de Lourdes Brandão


Eliseu Visconti (Pintor, desenhista e designer ítalo-brasileiro, 1866 - 1944),
 Volta às Trincheiras, 1917, Fundação Edson Queiroz.
 
 

Guerra


São olhos – narizes – braços e pernas – seios e sexos
vidas. Seres humanos.
Para alguns, apenas pedaços de carne
mas é carne que sente. Carne que sofre.
Corpos que uma bomba reduz a nada
e depois ficam na terra mutilados.
Cheirando a morte.

Eram olhos que viam o sol e a lua.
Azuis? Castanhos?
Narizes que aspiravam o perfume das matas.
Bocas que beijavam e falavam de amor.
Braços que enlaçavam.
Pernas que caminhavam.
Sexos que davam e recebiam prazer.
Cérebros e corações que pensavam. Batiam.
E gostavam de viver.

Agora.
São apenas pedaços de carne ensanguentada
que começam a apodrecer
e vão a enterrar.

Mas era carne que vivia. Corpos que sentiam.
Com sangue – veias – artérias – inteligência – livre arbítrio e opção
transformados em carne de canhão.
É gente como nós que morre na guerra.
Crianças que não entendem nada de nada.
Jovens. Muitos jovens, na plenitude da vida
(nas guerras, são sempre os jovens que mais sofrem,
justamente aqueles que ainda não viveram).
Homens e mulheres que têm tudo para dar.
E velhos e doentes.
Gente de carne e osso
milhares de seres humanos
Com olhos – narizes – braços – pernas – seios e sexos.

Há explicações para a guerra?
Ferir – matar – torturar... Porquê?
Por ambição?
Porque ter raiva e ódio de quem nem se conhece?
Porque semear tristezas e destruição?

Conheço as respostas mas não me dizem nada.
Democracia – liberdade – honra – dever – patriotismo
são palavras bonitas
mas não justificam transformar seres humanos
em carne de canhão!

Apalpem-se, senhores que fazem a guerra,
e pensem
é carne igual à vossa. Sensível. Macia.
Carne que tem vida
transformada, por vossa causa, em carne retalhada
membros amputados e chagas sangrando.
São mortes de corpos irreconhecíveis
uivando!

São milhares de seres humanos
que não sabem sequer porque mataram ou morreram.

Jogados como bichos, numa vala.
Reduzidos a um número.
A uma saudade.
Ao nada.

Que posso fazer contra a guerra
senão falar – gritar – escrever?
Que posso eu, que não sou ninguém,
dizer em favor da paz?
Apenas repetir, enquanto tiver forças,
não há carne de canhão
apenas seres humanos!
Carne que sente. Carne que sofre.
Gente que quer viver
e a guerra leva à morte.


Maria de Lourdes Brandão
, 'Vivências'


"Resíduo" - Poema de Carlos Drummond de Andrade



Win van Dijk
 (Pintor e desenhista holandês, naturalizado brasileiro, 1905-1990),
Vista da cidade da Bahia, 1960. Óleo sobre tela.


 Resíduo


De tudo ficou um pouco
Do meu medo. Do teu asco.
Dos gritos gagos. Da rosa
ficou um pouco.

Ficou um pouco de luz
captada no chapéu.
Nos olhos do rufião
de ternura ficou um pouco
(muito pouco).

Pouco ficou deste pó
de que teu branco sapato
se cobriu. Ficaram poucas
roupas, poucos véus rotos
pouco, pouco, muito pouco.

Mas de tudo fica um pouco.
Da ponte bombardeada,
de duas folhas de grama,
do maço
― vazio ― de cigarros, ficou um pouco.

Pois de tudo fica um pouco.
Fica um pouco de teu queixo
no queixo de tua filha.
De teu áspero silêncio
um pouco ficou, um pouco
nos muros zangados,
nas folhas, mudas, que sobem.

Ficou um pouco de tudo
no pires de porcelana,
dragão partido, flor branca,
ficou um pouco
de ruga na vossa testa,
retrato.

Se de tudo fica um pouco,
mas por que não ficaria
um pouco de mim? no trem
que leva ao norte, no barco,
nos anúncios de jornal,
um pouco de mim em Londres,
um pouco de mim algures?
na consoante?
no poço?

Um pouco fica oscilando
na embocadura dos rios
e os peixes não o evitam,
um pouco: não está nos livros.
De tudo fica um pouco.
Não muito: de uma torneira
pinga esta gota absurda,
meio sal e meio álcool,
salta esta perna de rã,
este vidro de relógio
partido em mil esperanças,
este pescoço de cisne,
este segredo infantil...
De tudo ficou um pouco:
de mim; de ti; de Abelardo.
Cabelo na minha manga,
de tudo ficou um pouco;
vento nas orelhas minhas,
simplório arroto, gemido
de víscera inconformada,
e minúsculos artefactos:
campânula, alvéolo, cápsula
de revólver... de aspirina.
De tudo ficou um pouco.

E de tudo fica um pouco.
Oh abre os vidros de loção
e abafa
o insuportável mau cheiro da memória.

Mas de tudo, terrível, fica um pouco,
e sob as ondas ritmadas
e sob as nuvens e os ventos
e sob as pontes e sob os túneis
e sob as labaredas e sob o sarcasmo
e sob a gosma e sob o vómito
e sob o soluço, o cárcere, o esquecido
e sob os espetáculos e sob a morte escarlate
e sob as bibliotecas, os asilos, as igrejas triunfantes
e sob tu mesmo e sob teus pés já duros
e sob os gonzos da família e da classe,
fica sempre um pouco de tudo.
Às vezes um botão. Às vezes um rato.


Carlos Drummond de Andrade,
in 'A Rosa do Povo', 1945.

 

sábado, 23 de novembro de 2024

"No more tears" - Poema de Adília Lopes

 
Antonio Mancini (Italian impressionist painter, 1852–1930), The Two Dolls
(Le due bambole), 1876
. Oil on canvas, 82 x 71 cm. Private collection.



No more tears

 
Quantas vezes me fechei para chorar
na casa de banho da casa da minha avó
lavava os olhos com shampoo
e chorava
chorava por causa do shampoo
depois acabaram os shampoos
que faziam arder os olhos
no more tears disse Johnson & Johnson
as mães são filhas das filhas
e as filhas são mães das mães
uma mãe lava a cabeça da outra
e todas têm cabelos de crianças loiras
para chorar não podemos usar mais shampoo
e eu gostava de chorar a fio
e chorava
sem um desgosto sem uma dor sem um lenço
sem uma lágrima
fechada à chave na casa de banho
da casa da minha avó
onde além de mim só estava eu
também me fechava no guarda-vestidos grande
mas um guarda-vestidos não se pode fechar por dentro
nunca ninguém viu um vestido a chorar.
 

Adília Lopes
, in 'Dobra'


Adília Lopes, 'Dobra - Poesia Reunida'
Edição/reimpressão: 10-2024
Editor: Assírio & Alvim
 

SINOPSE 
 
Dobra reúne todos os livros de poesia de Adília Lopes. Como consequência, a nova edição que agora se apresenta foi ampliada e passa a incluir toda a obra poética publicada da autora, até maio de 2023. (daqui)
 

sexta-feira, 22 de novembro de 2024

"A árvore dos poemas" - Poema de Mario Quintana

 

Leopoldo Gotuzzo (Pintor brasileiro, 1887–1983), Paisagem do Rio de Janeiro, 1938.
 
 

A árvore dos poemas

 
Quando a árvore dos poemas não dá poemas,
Seus galhos se contorcem todos como mãos de enterrados vivos,
Os galhos desnudos, ressecos, sem o perdão de Deus!
E, depois, meu Deus, essa lenta procissão de almas retirantes…

De vez em quando uma tomba, exausta à beira do caminho,
Porque ninguém lhe chega ao lábio o frescor de cântaro,
A doçura de fruto que poderia haver num poema.
Maldita a geração sem poetas que deixa as almas seguirem

Seguirem como animais em estúpida migração!
Quando a árvore dos poemas não dá poemas,
Qual será o destino das almas? 


Mário Quintana, in "Baú de Espantos"
Porto Alegre - Editora do Globo, 1986.

quinta-feira, 21 de novembro de 2024

"Na noite da minha morte" - Poema de Cristovam Pavia

 
Ludwig Michalek (Austrian portrait painter, graphic artist and copper engraver, 1859 - 1942), 
 'Dampfeisenbahn in voller Fahrt', s.d.
 

 
Na noite da minha morte

 
Na noite da minha morte
Tudo voltará silenciosamente ao encanto antigo...
E os campos libertos enfim da sua mágoa
Serão tão surdos como o menino acabado de esquecer.

Na noite da minha morte
Ninguém sentirá o encanto antigo
Que voltou e anda no ar como um perfume...
Há de haver velas pela casa
E xales negros e um silêncio que eu
Poderia entender.

Mãe: talvez os teus olhos cansados de chorar
Vejam subitamente...
Talvez os teus ouvidos, só eles ouçam, no silêncio da casa velando,
E mesmo que não saibas de onde vem nem porque vem
Talvez só tu a não esqueças. 


Cristóvam Pavia, in "35 Poemas"
 
 
Cristóvam Pavia


quarta-feira, 20 de novembro de 2024

"A Casa da Rua Abílio" - Poema de Alberto de Oliveira


Gustavo Dall'Ara (Pintor e desenhista italiano que imigrou para o Brasil, 1865-1923),
Casario em Santa Tereza, 1907.
 

A Casa da Rua Abílio

 
A casa que foi minha, hoje é casa de Deus.
Traz no topo uma cruz. Ali vivi com os meus,
Ali nasceu meu filho; ali, só, na orfandade
Fiquei de um grande amor. Às vezes a cidade

Deixo e vou vê-la em meio aos altos muros seus.
Sai de lá uma prece, elevando-se aos céus;
São as freiras rezando. Entre os ferros da grade,
Espreitando o interior, olha a minha saudade.

Um sussurro também, como esse, em sons dispersos,
Ouvia não há muito a casa. Eram meus versos.
De alguns talvez ainda os ecos falarão,

E em seu surto, a buscar o eternamente belo,
Misturados à voz das monjas do Carmelo,
Subirão até Deus nas asas da oração. 
 

Alberto de Oliveira
, Poesias, 4ª série
Rio de Janeiro: F. Alves, 1927.

Gustavo Dall'Ara, Trecho da Rua D. Manuel, 1920, Museu Histórico Nacional.


"A poesia é algo que anda pelas ruas. Que se move, que passa ao nosso lado. Todas as coisas têm o seu mistério e a poesia é o mistério que contém todas as coisas. Se passamos junto de um homem, se olhamos uma mulher, se adivinhamos a marcha oblíqua de um cão, em cada um desses objetos humanos está a poesia.
Por isso não concebo a poesia como abstração, mas sim como uma coisa real existente, que passou junto de mim. Todas as pessoas dos meus poemas existiram. O principal é encontrar a chave da poesia. Quando se está mais tranquilo, então, zás, se abre a chave e o poema aparece com sua forma brilhante."


Federico García Lorca, in Pequeno Poema Infinito.
 

terça-feira, 19 de novembro de 2024

"O fio da vida" - Poema de Rui Knopfli


Oscar Björck (Swedish painter and a professor at the Royal Swedish Academy of Arts,
 1860 – 1929), Launching the Boat. Skagen, 1884.
 
 

O fio da vida 


Há homens que rezam na penumbra
das catedrais dolentes e há outros
que do alto das pontes olham
a escuridão rumorejante das águas.
Há homens que esperam na orla
marítima e outros arrastando-se
no viscoso esterco dos subterrâneos.
Há homens debruçados em pleno azul
e outros que deslizam sobre densos verdes;
há os desatentos na atenção e os que
espreitam atentamente a ocasião.
Há homens por fora e por dentro
do cimento armado, suspensos
das mil ciladas do quotidiano voraz;
de encontro aos muros, às paredes,
ao sol do meio-dia, ao visco da noite,
às sediças solicitações de cada instante.
Há a impotência poderosa da oração
e a obsessão amarga dos suicidas
e, de permeio, os que, porque hesitam,
porque ignoram, porque não creem,
não oram, nem se suicidam
e se quedam ante a impossibilidade de destrinça
entre o fio da vida e a vida por um fio.


Rui Knopfli, Obra Poética, 2003



Oscar Björck, Signal of Distress, 1883


"O Homem deve criar as oportunidades e não somente encontrá-las."

"A man must make his opportunity, as oft as find it."

Francis Bacon, Francisci Baconi Baronis de Verulamio...Opera Omnia Quatuor Voluminibus Comprehensa:
 In quo continetur Instaurationis magnae pars tertia, 1730 - Página 522.

segunda-feira, 18 de novembro de 2024

"O que nós vemos das coisas são as coisas" - Poema de Alberto Caeiro / Fernando Pessoa



Auguste Roquemont (Pintor luso-suíço da época romântica, 1804-1852),
"Colegiada de Guimarães", s.d., Localização indeterminada.


O que nós vemos das coisas são as coisas


XXIV

O que nós vemos das coisas são as coisas.
Porque veríamos nós uma coisa se houvesse outra?
Porque é que ver e ouvir seria iludirmo-nos
Se ver e ouvir são ver e ouvir?

O essencial é saber ver,
Saber ver sem estar a pensar,
Saber ver quando se vê,
E nem pensar quando se vê,
Nem ver quando se pensa.

Mas isso (triste de nós que trazemos a alma vestida!),
Isso exige um estudo profundo,
Uma aprendizagem de desaprender
E uma sequestração na liberdade daquele convento
De que os poetas dizem que as estrelas são as freiras eternas
E as flores as penitentes convictas de um só dia,
Mas onde afinal as estrelas não são senão estrelas
Nem as flores senão flores,
Sendo por isso que lhes chamamos estrelas e flores. 

13-3-1914 

Alberto Caeiro
, “O Guardador de Rebanhos”. 
In Poemas de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa
Lisboa: Ática, 1946 (10ª ed. 1993). - 50.

“O Guardador de Rebanhos”. 1ª publ. in Athena, nº 4. Lisboa: Jan. 1925. 
 
 

Auguste Roquemont, Cena de aldeia ou Chafariz de Guimarães (Tanque do Carmo), 1842.
Óleo sobre tela, 22 x 27,5 cm. Museu Nacional Soares dos Reis, Porto.



"Adultos seguem caminhos. Crianças exploram. Os adultos ficam satisfeitos por seguir o mesmo trajeto, centenas de vezes, ou milhares; talvez nunca lhes ocorra pisar fora desses caminhos, rastejar por baixo dos rododendros, encontrar os vãos entre as cercas."
 

Neil Gaiman, em "O Oceano no Fim do Caminho" (The Ocean at the End of the Lane), 2013.
 

domingo, 17 de novembro de 2024

"Estão batendo na porta" - Poema de Ricardo Azevedo



André Letria (Ilustrador português, n. 1973) (daqui)
 

Estão batendo na porta


Homem sério chega cedo,
olha seco pras pessoas,
cumprimenta com a cabeça,
fica longe e vai sentando.

Homem culto chega aéreo,
vive no mundo da lua,
abre um livro des’tamanho,
distraído vai sentando.

Homem belo vem bonito,
elegante e perfumoso,
puxa o espelho, passa o pente,
vem pro centro e vai sentando.

Homem pobre, quando chega,
chega sem nada na mão,
olha quieto, fala baixo,
e depois senta no chão.

Homem sábio chega calmo,
um por um vai abraçando,
fala pouco, olha nos olhos,
fica junto e vai sentando.

Homem doido chega e planta
bananeira na janela,
mostra a língua, tira a roupa,
pinta o sete e vai sentando.

Homem chato chega bobo,
vem torrando a paciência,
fala mole não se enxerga,
enche o saco e vai sentando.

Homem triste vem sozinho,
puxa o lenço e chora um pouco,
muita gente chega perto,
ele gosta e vai sentando.

Homem fraco chega branco,
capengando agasalhado,
tosse, espirra, ronca funga,
cospe, engasga e vai sentando.

Homem alegre chega leve,
vem contando as novidades,
dá três beijos, quatro abraços,
solta o riso e vai sentando.

Homem errado entra torto,
quebra o vaso tropeçando,
cai na sala, rasga a calça,
ri aflito e vai sentando.

Homem forte chega imenso,
abre a porta trovejando,
fala grosso, mostra o muque,
abre espaço e vai sentando.

Homem rico chega tarde,
vem falando de dinheiro,
faz mil contas, multiplica,
preocupado vai sentando.

Homem tímido não chega,
manda dizer que não vem,
fica em casa, deita cedo,
pra não sentir que tem medo.

Resta só uma pessoa,
pra reunião começar,
imagine agora um pouco,
quem é que falta chegar.


Ricardo Azevedo,
do livro "Dezenove poemas desengonçados",
Ática, 1997.


sábado, 16 de novembro de 2024

"Sonetinho infantil" - Poema de Carlos Pena Filho



Gustave Doyen
(French painter, 1836–1923), Little girl with her doll  
(Petite fille et sa poupée), s.d.
 
 

Sonetinho infantil
 
 
Era clara a menina, longe ou perto,
mesmo entre os seus alvíssimos lençóis.
Ria, como se visse caracóis
cantando uma opereta no deserto.

Logo piscou um olho para o coelho
que - diziam - não era bom da bola
e mágicos tirava da cartola
pois vivia ao contrário, atrás do espelho.

Depois ficou olhando uns elefantes
que mantinham conversa acalorada
sobre a lista dos dez mais elegantes.

Mas, depressa fechou seus olhos pretos
e adormeceu, para não ser trancada
com a chave de ouro de fechar sonetos. 


Carlos Pena Filho
 

sexta-feira, 15 de novembro de 2024

"Pátio" - Poema de Jorge Luis Borges


 
 

Pátio


Com a tarde
Cansaram-se as duas ou três cores do pátio.
A grande franqueza da lua cheia
Já não entusiasma o seu habitual firmamento.
Hoje que o céu está frisado,
Dirá a crendice que morreu um anjinho.
Pátio, céu canalizado.
O pátio é a janela
por onde Deus olha as almas.
O pátio é o declive
Por onde se derrama o céu na casa.
Serena,
A eternidade espera na encruzilhada das estrelas.
Lindo é viver na amizade obscura
De um saguão, de uma aba de telhado e de uma cisterna. 
 
 
Jorge Luis Borges
,
in "Fervor de Buenos Aires", 1ª edição de 1923.
Tradução de Manuel Bandeira
 
 


"Recolha um cão de rua, dê-lhe de comer e ele não morderá: 
eis a diferença fundamental entre o cão e o Homem." 
 

quinta-feira, 14 de novembro de 2024

"Dois gatos" - Poema de Ivan Junqueira


Julius Adam (German genre painter and animalier specialising in pictures of cats, 1852 - 1913),
Zwei Kätzchen im Korb mit blauem Tuch, c. 1913.
 
 

Dois gatos

1

Eram dois gatos num só
a se esfregarem no pó

das velhas tábuas do assoalho,
rente às brasas do borralho

de uma lareira sem dono,
no fluido limiar do sono.

Era um gato e eram dois,
mas só se os viam depois

que um se escondia na pele
do outro e abandonava a dele,

como quem sai de si mesmo
e, passo a passo, anda a esmo,

sem destino, alheio à sorte
do que seja a vida e a morte.

Eram dois de olhos azuis
quais turquesas, e um capuz

que a cabeça lhes cobria
com egípcia simetria,

de uma orelha a outra orelha,
de uma a outra sobrancelha.

E lembrem-se o rabo e as patas
de cores gémeas, exatas.

Se um sumia, o outro miava
em, num átimo, o encontrava

sob os degraus de uma escada
que subia rumo ao nada.

Jacó e Esaú: lhes deram
esses nomes que não eram

senão o dilema arcano
do rosto de um deus romano.

Nunca foram, pois, iguais,
e disso havia sinais

em todo e qualquer detalhes,
não de postura ou de talhe,

mas de índole e de aspeto:
um, esquivo e circunspecto,

o outro, terno, mais afeito
a quem o punha no leito.

2

Foi-se a areia da ampulheta,
foram-se os tons da palheta

que davam cor à façanha
de um só ser dois nessa estranha

aptidão de duplicar-se
sem artifício ou disfarce.

E hoje ainda me pergunto
quando me toca esse assunto:

seria mesmo um só gato
que se expandia em dois no ato

de ludibriar os que os viam,
ou eram ambos que urdiam

uma única criatura
em que tudo se mistura? 


Ivan Junqueira

(Jornalista, poeta, tradutor e crítico literário brasileiro, 1934 - 2014)
 

 
 
"Ele fixara em Deus aquele olhar de esmeralda diluída, uma leve poeira de ouro no fundo. E não obedeceria porque gato não obedece. Às vezes, quando a ordem coincide com sua vontade, ele atende mas sem a instintiva humildade do cachorro, o gato não é humilde, traz viva a memória da sua liberdade sem coleira. Despreza o poder porque despreza a servidão. Nem servo de Deus. Nem servo do Diabo."
 

Julius Adam, Cat with her Kittens, s.d.
 
 
"O gato é o único animal que aceita os confortos, mas rejeita a escravidão da domesticidade."

Georges-Louis Leclerc, conde de Buffon

quarta-feira, 13 de novembro de 2024

"A Casa da Poesia" - Poema de José Jorge Letria


Fátima Marques (Artista plástica brasileira, n. 1956), Encontro com o Futuro, 2019.



A Casa da Poesia


A poesia tem uma casa
como as pessoas têm,
só que é diferente,
só que tem espaço
para todos quantos
nela querem entrar
com a terna alegria
de quem a vai habitar.

É um casa sem portas nem janelas,
sem teto e sem cave,
pois assim tem mais espaço
para quem nela quer morar.

É uma casa de sons,
que por vezes parecem música,
embora sejam apenas palavras,
palavras simples e graves,
agudas e tristes,
cantantes e belas,
palavras que são a pedra e a cal
dessa casa onde todos podem morar.

A poesia tem uma casa
toda feita de versos
que podem ou não rimar,
que podem fazer rir e chorar
como os palhaços do circo
que, à sua maneira,
são poetas da oficina do riso,
da festa das mais sonoras gargalhadas.

A poesia gosta de acordar cedo
para ouvir os pássaros a cantar
e os rios a correr
e os sonhos a acordar
dentro da cabeça
de quem não os quer deixar morrer.

A poesia junta os sons
com a delicadeza
das bordadeiras e dos ourives
quando querem
que aconteça beleza.

A poesia dá nome
ao que não tem nome
e se umas vezes rima,
como acontece nesta fala,
outras vezes não rima
e escreve como quem cala
por saber que a poesia
deve estar sempre acima
de quaisquer jogos de sala.

A poesia vai à escola
com um bibe feito de versos,
de mãos dadas com os meninos
que lhe querem perguntar
qual é a idade certa
para a poesia se revelar.

Na escola da poesia
ninguém tem notas para lhe dar,
pois ela não está
nem nunca esteve
ali só para passar.
Tem um desejo apenas:
ficar no coração
de quem a quiser lembrar.

A poesia tem uma casa
onde moram os poetas
e para eles terá sempre
as portas imaginárias
iluminadas e abertas.

A poesia anda de metro,
ou nos elétricos da cidade,
sem ter pressa de chegar,
porque isto de não ter pressa
é a sua liberdade
e é dessa liberdade
que gosta de se alimentar.

A poesia tem uma casa
que não é grande nem pequena,
pois tem sempre o tamanho
que tem cada poema.

A poesia vai à escola
com mil versos na mochila
e depois lança-os ao vento
para que possam chegar mais longe
do que chega o pensamento
e, num tempo sem memória,
consigam durar sempre mais
do que dura o esquecimento.

A poesia tem um jardim,
um terraço e um quintal
para receber os amigos
vindos do mundo animal:
os cães do abandono
que não têm casa nem dono,
os gatos livres e espertos
que mantêm sempre, rebeldes,
os olhos bem abertos,
as andorinhas e os pardais
e outros bichos mais,
incluindo os de conta,
e uma vez por outra
também uma barata tonta.

A poesia gosta de rir
porque o riso a alivia
dos medos e dos fantasmas
que lhe aparecem dia a dia
e também das contas certas
que não rimam com alegria
e adiam a felicidade
como quem mata a magia.

A poesia tem uma escola
onde gostava de aprender
que trovoadas e ciclones,
planetas e clones
são formas do universo
não se cansar e morrer.

A poesia tem uma casa
onde escreve à luz de velas
e que nunca há de ter teto
para poder ver as estrelas.

Não é voto de pobreza
este seu modo de ser,
é apenas a maneira
mais perfeita e certeira
de nunca se perder
nos estranhos labirintos
da aventura de escrever.

A escola da poesia
tem muitos livros num livro
que se conhece à distância,
pois é nele que se guardam
os mistérios da infância.

A poesia dá nome
ao que no falar comum
raramente nome tem
e deixa sempre em cada um
o desejo sentido
de falar com mais alguém
para que a poesia cresça
e os leitores mereça
porque lhes faz bem.

A casa da poesia
tem tom azul de mar
nas paredes que não tem
mas que dá gosto inventar,
apenas porque sabe bem
ter uma casa assim
mesmo à mão de semear.

A casa da poesia
nunca será assaltada,
porque aquilo que nela existe,
sendo um tesouro raro,
afinal não vale nada
para os ladrões escondidos
no escuro da madrugada.

A casa da poesia
está cheia de crianças,
de histórias e de lendas,
de jogos e de danças
e até a Beatriz
com um pauzinho de giz
desenha asas em vez de tranças.

A casa da poesia
tem uma mesa imensa
onde um poeta irrequieto
espalha o seu afeto
na hora de escrever
uma ode ou um soneto.

Na mesa da poesia
há sempre lugar para mais um,
e que se saiba não há poeta
que dela saia em jejum,
seja moderno ou antigo,
consagrado ou esquecido,
de elegias ou canções,
seja Cesário Verde,
Fernando Pessoa, Ruy Belo
ou mesmo Luís de Camões.
E esse livro de poemas,
vê lá onde é que o pões!

A poesia tem uma casa
que não aparece nos jornais,
talvez por iguais a ela
não existirem mais.
É uma casa hospitaleira
onde o sono é fantasia
e cada poema tem
a sua própria melodia.

A casa da poesia
cedo se abre para a festa,
espaço de luz e de sombra,
talvez canção de gesta
onde cabe a gente toda
com a alegria a circular
de uma velha canção de roda.

A poesia vai à escola
para alegrar o recreio
com uma rima daquelas
que acertam em cheio
nos medos que não largam
os meninos com receio
de estarem numa sala
com fantasmas lá no meio.

Na casa da poesia
existe sempre à mão
a poeira de magia
a que se chama inspiração
e esse jeito secreto
de juntar trabalho e emoção.

Na casa da poesia
cabem netos e avós,
pais, primos e irmãos
em páginas ímpares e pares,
e cabe sempre a nossa voz,
pois os esforços não são vãos
quando teima a poesia
em não nos deixar sós.

Na casa da poesia
há sempre uma luz acesa
e uma vela que alumia
com a intensa luz do dia
a mágoa ou a tristeza
e que convida duendes e fadas
para nos fazerem companhia
nas longas madrugadas.

A poesia vai à escola,
ainda hoje ou amanhã,
com um cesto de frutos
onde o morango e a romã
se põem a conversar,
talvez mesmo a namorar,
para que nunca seja vã
essa vontade de mostrar
aquilo que a poesia,
seja cereja ou maçã,
desde sempre guarda
para nos encantar.

Já os pais se vão deitar,
que amanhã é outro dia
e no quarto dos meninos
há uma luz que cintila
e há dez magos em fila
com a poção que anuncia
que na página em branco
irá nascer poesia,
a liberdade mais livre
que existiu algum dia.


José Jorge Letria
, "A Casa da Poesia",
Lisboa, Terramar, 2003.

 
"A Casa da Poesia" de José Jorge Letria,
Ilustração: Rui Castro
Editor: Terramar, 2003

 


Plano Nacional de Leitura

Livro recomendado para o 4º ano de escolaridade, destinado a leitura autónoma.


Fátima Marques, Liberdade, 2018
 

"Nunca se pode concordar em rastejar, quando se sente ímpeto de voar." 
 
Helen Keller
, "The story of my life" - página 393, Helen Keller, John Albert Macy, Annie Sullivan - 
Doubleday, Page & Company, 1903 - 439 páginas.