sexta-feira, 27 de junho de 2025

"Nenhuma música" e "As vozes" - Poemas de Manuel António Pina



Cecilia Beaux (American artist, 1855–1942), Man with the Cat –
Portrait of Henry Sturgis Drinker
(1850–1937), 1898.
Smithsonian American Art Museum



Nenhuma música


O gato olha-me
ou o meu olhar olhando-o?
E eu o que vejo senão
a mesma única solidão?

Chamo-o pelo nome,
pela oposição.
Em vão:
sou eu quem responde.

Virou-se e saltou
para o parapeito
real e perfeito,
sem nome e sem corpo.
(Também eu estou,
como ele, morto).


Manuel António Pina
, in Cuidados Intensivos
Assírio & Alvim, 1994
 
 
Cecilia Beaux, Les Derniers Jours d'Enfance, c. 1883-1885.
Oil on canvas, 46 x 54, Pennsylvania Academy of the Arts.


As vozes


A infância vem
pé ante pé
sobe as escadas
e bate à porta

— Quem é?
— É a mãe morta
— São coisas passadas
— Não é ninguém

Tantas vozes fora de nós!
E se somos nós quem está lá fora
e bate à porta? E se nos fomos embora?
E se ficámos sós?


Manuel António Pina,
in Nenhuma palavra e nenhuma lembrança
Assírio & Alvim, 1999

Sem comentários: