sábado, 14 de junho de 2025

"O Grito" - Poema de José Fanha

 

O Grito


De ti que inventaste
a paz
a ternura
e a paixão
o beijo
o beijo fundo intenso e louco
e deixaste lá para trás
a côncava do medo
à hora entre cão e lobo
à hora entre lobo e cão.

De ti que em cada ano
cada dia cada mês
não paraste de acender
uma e outra vez
a flor elétrica
do mais desvairado
coração.

De ti que fugiste à estepe
e obrigaste
à ordem dos caminhos
o pastor
a cabra e o boi
e do fundo do tempo
me chamaste teu irmão.

De ti que ergueste a casa
sobre estacas
e pariste
deuses e linguagens
guerras
e paisagens sem alento.

De ti que domaste
o cavalo e os neutrões
e conquistaste
o lírico tropel
das águas e do vento.

De ti que traçaste
a régua e esquadro
uma abóboda inquieta
semeada de nuvens e tritões
santidades e tormentos.

De ti que levaste
a voluta da ambição
a trepar ereta
contra as leis do firmamento.

De ti que deixaste um dia
que o teu corpo se cansassse
desta terra de amargura e alegria
e se espalhasse aos quatro cantos
diluído lentamente
no mais plácido
silente
e negro breu.

De ti
meu irmão
ainda ouço
o grito que deixaste
encerrado
em cada pétala do céu
cada pedra
cada flor.
O grito de revolta
que largaste à solta
e que ficou para sempre
em cada grão de areia
a ressoar
como um pálido rumor.

O grito que não cansa
de implorar
por amor
e mais amor
e mais amor.


José Fanha,
in "Breve tratado das coisas da arte e do amor"



Obras de José Fanha,
"Breve tratado das coisas da arte e do amor"
Lisboa: Ulmeiro, 1995
 
 
SINOPSE

"Breve tratado das coisas da arte e do amor" não passa de um único cântico repartido em vários poemas. Um cântico aos afetos mais profundos e por isso sempre urgentes. A terra, a casa, o filho, os amigos, as cores e as formas, os cheiros e os sons. E sempre o amor, a mulher amada, o amor.
 

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