sábado, 7 de janeiro de 2023

"À Toa" - Poema de António Nobre 


Edouard John Mentha (Switzerland, 1858-1915), Young shepherdess in a landscape



À Toa


O Primeiro Homem
 
Que grande é o Mundo! E eu só! Que tortura tamanha!
Ninguém! Meu pai é o Céu. Minha mãe é a Montanha.

A Montanha
 
Os meus cabelos são os pinheirais sombrios
E veias do meu corpo os azulados Rios.

Os Rios
 
Nós somos o suor que o Estio asperge e sua,
Nós somos, em Janeiro, água-benta da Lua!

A Lua
 
Eu sou a bala, no Ar detida, dessa guerra
Que teve contra Deus, em seu princípio, a Terra...

A Terra
 
E eu uma das maçãs, entre outras a primeira,
Que certa Virgem viu cair duma macieira!

A Macieira
 
Tantas ainda por cair! Vinde colhê-las!
Abanai a macieira e cairão estrelas! 

A Estrelas
 
No Mar, à noite, refletimo-nos, a olhar,
E formamos, assim, as Estrelas-do-Mar...

O Mar
 
Sou padre. São de água meus Santos Evangelhos:
Acendei meu altar, relâmpagos vermelhos!

Os Relâmpagos
 
Nós somos (o contrário, embora, seja escrito)
Os fogos-fátuos desta cova do Infinito...

O Infinito
 
Sou o mar sem borrasca, onde enfim se descansa.
Aqui, vem desaguar o rio da Esperança...

A Esperança
 
Morri, irmãos! mas lá ficaram minhas vestes,
No vosso mundo: dei-as dadas aos ciprestes.

Os Ciprestes
 
Para apontar os Céus, como dedos funéreos,
Plantaram-nos no pó dos mudos Cemitérios...

Os Cemitérios
 
Porão, beliches, tudo cheio!... Os céus absortos!
Não cabe em Josafat esta leva de mortos!

Os Mortos

 
Séculos tombam uns sobre outros, como blocos,
E nós dormindo sempre, eternos dorminhocos!

Porto, 1885

António Nobre (1867-1900), in 'Só'
 
 

António Nobre, "" - Edição/reimpressão: 04-2015
Editor: Porto Editora
 (daqui)
 
 

Obra que consagrou o seu autor, António Nobre, como um marco da literatura portuguesa na transição da poesia parnasiana, decadentista e neorromântica para a poesia moderna. Este livro de poesia melancólica, em que o autor exprime o seu sofrimento e a sua dor, e no qual se destacam o fatalismo, o egotismo, o pessimismo, a exploração do macabro e as saudades da infância e da pátria, foi editado em Paris por Léon Vanier (o editor de simbolistas como Verlaine, Rimbaud, Mallarmé), em 1892, aquando da conclusão dos estudos universitários do autor, na Sorbonne. Acolhendo reações opostas em Portugal, seria objeto de uma segunda edição, corrigida pelo autor, em 1898.

O volume gerou, desde o momento da sua publicação, pelo seu tom confessional, uma precipitada identificação entre autor e sujeito poético, numa correlação adensada pela omnipresença de um eu que reitera a sua perdição, a sua imagem de poeta amaldiçoado, a sua visceral melancolia. Ungida, aquando desta reedição, como modelo de uma estética romântica reinventada no fim-de-século, tornar-se-ia, como o póstumo Primeiros Versos, um "breviário de almas desfalecidas, da legião melancólica e neurasténica dos que perderam a fé" (cf. BRANDÃO, Júlio - prefácio a Primeiros Versos, 2.ª ed., Porto, 1937). 
 
Com efeito, dava voz a um pessimismo de fim-de-século que, adensado, no caso português, por um vencidismo adensado por uma humilhação histórica, eivava uma atmosfera decadentista vagamente melancólica de um Portugal perdido, saudosamente entrevisto nas páginas de Garrett ("Garrett da minha paixão") ou num Portugal da infância, duplamente amado na distância do exílio e do tempo. Ao lado desta aparência de lirismo ingénuo, passava a profunda inovação poética de que, conciliando singularmente rigor métrico e coloquialismo, pulverizando um sujeito poético que narcisicamente se ficciona nas imagens fragmentárias da memória, faria dele um precursor do modernismo, com visíveis nexos de continuidade, por exemplo, em Mário de Sá-Carneiro. (Daqui)

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