Edouard John Mentha (Switzerland, 1858-1915), Young shepherdess in a landscape
À Toa
O Primeiro Homem
O Primeiro Homem
Que grande é o Mundo! E eu só! Que tortura tamanha!
Ninguém! Meu pai é o Céu. Minha mãe é a Montanha.
A Montanha
Ninguém! Meu pai é o Céu. Minha mãe é a Montanha.
A Montanha
Os meus cabelos são os pinheirais sombrios
E veias do meu corpo os azulados Rios.
Os Rios
E veias do meu corpo os azulados Rios.
Os Rios
Nós somos o suor que o Estio asperge e sua,
Nós somos, em Janeiro, água-benta da Lua!
A Lua
Nós somos, em Janeiro, água-benta da Lua!
A Lua
Eu sou a bala, no Ar detida, dessa guerra
Que teve contra Deus, em seu princípio, a Terra...
A Terra
Que teve contra Deus, em seu princípio, a Terra...
A Terra
E eu uma das maçãs, entre outras a primeira,
Que certa Virgem viu cair duma macieira!
A Macieira
Que certa Virgem viu cair duma macieira!
A Macieira
Tantas ainda por cair! Vinde colhê-las!
Abanai a macieira e cairão estrelas!
Abanai a macieira e cairão estrelas!
A Estrelas
No Mar, à noite, refletimo-nos, a olhar,
E formamos, assim, as Estrelas-do-Mar...
O Mar
E formamos, assim, as Estrelas-do-Mar...
O Mar
Sou padre. São de água meus Santos Evangelhos:
Acendei meu altar, relâmpagos vermelhos!
Os Relâmpagos
Acendei meu altar, relâmpagos vermelhos!
Os Relâmpagos
Nós somos (o contrário, embora, seja escrito)
Os fogos-fátuos desta cova do Infinito...
O Infinito
Os fogos-fátuos desta cova do Infinito...
O Infinito
Sou o mar sem borrasca, onde enfim se descansa.
Aqui, vem desaguar o rio da Esperança...
A Esperança
Aqui, vem desaguar o rio da Esperança...
A Esperança
Morri, irmãos! mas lá ficaram minhas vestes,
No vosso mundo: dei-as dadas aos ciprestes.
Os Ciprestes
No vosso mundo: dei-as dadas aos ciprestes.
Os Ciprestes
Para apontar os Céus, como dedos funéreos,
Plantaram-nos no pó dos mudos Cemitérios...
Os Cemitérios
Plantaram-nos no pó dos mudos Cemitérios...
Os Cemitérios
Porão, beliches, tudo cheio!... Os céus absortos!
Não cabe em Josafat esta leva de mortos!
Os Mortos
Não cabe em Josafat esta leva de mortos!
Os Mortos
Séculos tombam uns sobre outros, como blocos,
E nós dormindo sempre, eternos dorminhocos!
Porto, 1885
António Nobre (1867-1900), in 'Só'
E nós dormindo sempre, eternos dorminhocos!
Porto, 1885
António Nobre (1867-1900), in 'Só'
Só
Obra que consagrou o seu autor, António Nobre,
como um marco da literatura portuguesa na transição da poesia
parnasiana, decadentista e neorromântica para a poesia moderna. Este
livro de poesia melancólica, em que o autor exprime o seu sofrimento e a
sua dor, e no qual se destacam o fatalismo, o egotismo, o pessimismo, a
exploração do macabro e as saudades da infância e da pátria, foi
editado em Paris por Léon Vanier (o editor de simbolistas como Verlaine, Rimbaud, Mallarmé), em 1892, aquando da conclusão dos estudos universitários do autor, na Sorbonne. Acolhendo reações opostas em Portugal, seria objeto de uma segunda edição, corrigida pelo autor, em 1898.
O volume gerou, desde o momento da sua publicação, pelo seu tom confessional, uma precipitada identificação entre autor e sujeito poético, numa correlação adensada pela omnipresença de um eu que reitera a sua perdição, a sua imagem de poeta amaldiçoado, a sua visceral melancolia. Ungida, aquando desta reedição, como modelo de uma estética romântica reinventada no fim-de-século, tornar-se-ia, como o póstumo Primeiros Versos, um "breviário de almas desfalecidas, da legião melancólica e neurasténica dos que perderam a fé" (cf. BRANDÃO, Júlio - prefácio a Primeiros Versos, 2.ª ed., Porto, 1937).
Com efeito, Só
dava voz a um pessimismo de fim-de-século que, adensado, no caso
português, por um vencidismo adensado por uma humilhação histórica,
eivava uma atmosfera decadentista vagamente melancólica de um Portugal perdido, saudosamente entrevisto nas páginas de Garrett ("Garrett da minha paixão") ou num Portugal
da infância, duplamente amado na distância do exílio e do tempo. Ao
lado desta aparência de lirismo ingénuo, passava a profunda inovação
poética de Só que, conciliando singularmente rigor métrico e
coloquialismo, pulverizando um sujeito poético que narcisicamente se
ficciona nas imagens fragmentárias da memória, faria dele um precursor
do modernismo, com visíveis nexos de continuidade, por exemplo, em Mário de Sá-Carneiro. (Daqui)
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