segunda-feira, 3 de julho de 2023

"Cântico do pássaro azul em Sharpeville" - Poema de José Craveirinha



Jimmy Ernst (American painter born in Germany, 1920-1984), Chronicle, 1964



Cântico do pássaro azul em Sharpeville

 
Os homens negros como eu
não pedem para nascer
nem para cantar.
Mas nascem e cantam
que a nossa voz é a voz incorruptível
dos momentos de angústia sem voz
e dos passos arrastados nas velhas machambas.

E se cantam e nascem
os homens magros de olheiras fundas como eu
não pediram a blasfémia
de um sol que não fosse o mesmo
para uma criança banto
e o menino africânder.

Mas homens somos
e com o mesmíssimo encanto magnífico
dos filhos que geramos
aqui estamos
na vontade viril de viver o canto que sabemos
e tornar também uma vida
a vida de voluntário que não pedimos
nem queremos
e odiamos na ganga africana que vestimos
e na ração de farinha que comemos.

E com as sementes rongas
as flores silvestres das montanhas zulos
e a dose de pólen das metralhadoras no ar de Sharpeville
um xitotonguana azul canta num braço de imbondeiro
e levanta no feitiço destes céus
a volúpia terrível do nosso voo.
 
 
José Craveirinha (daqui)
 
 
 Escritor moçambicano, José Craveirinha nasceu a 28 de maio de 1922, em Lourenço Marques (atual Maputo), e faleceu a 6 de fevereiro de 2003 em Joanesburgo, África do Sul.
Filho de pai algarvio cuja família partira para Moçambique em 1908 em busca de fortuna, estudou na escola «Primeiro de janeiro», pertencente à Maçonaria. Ainda adolescente, começou a frequentar a Associação Africana. Colaborou n'O Brado Africano, que tratava de assuntos de carácter local e que dissessem principalmente respeito à faixa da população mais desprotegida. Fez campanha contra o racismo no Notícias, onde trabalhava, tendo sido o primeiro jornalista oficialmente sindicalizado.
Em 1958, começou a trabalhar também na Imprensa Nacional. Continuou no Notícias até à fundação do jornal A Tribuna, em 1962. Entre 1964 e 1968 esteve preso, em virtude da sua ligação à FRELIMO, mas teve a oportunidade de conhecer na prisão o pintor Malangatana.
Começou a escrever cedo, mas a sua poesia demorou a ser publicada. Em Lisboa, a primeira obra a surgir foi Xigubo, em 1964, através da Casa dos Estudantes do Império. A partir de determinada altura, a consciência política do autor passou a refletir-se em obras como O Grito e O Tambor.
Apesar de a sua obra refletir a influência dos surrealistas, é fortemente marcada por todo um carácter popular e tipicamente moçambicano. A sua poesia possui um carácter social que radica nas camadas mais profundas do povo moçambicano.
Escritor de ligações afetivas com Portugal, foi-lhe atribuído o Prémio Camões em 1991 e recebeu condecorações dos presidentes de Portugal e de Moçambique, Jorge Sampaio e Joaquim Chissano respetivamente.
Vice-presidente do Fundo Bibliográfico de Língua Portuguesa, escritor galardoado com o prémio "Vida Literária" da Associação de Escritores Moçambicanos, foi homenageado no dia 28 de maio de 2002, na sequência da iniciativa do governo moçambicano em consagrar o ano de 2002 a José Craveirinha. (daqui)
 

Jimmy Ernst, Silence at Sharpeville, 1962
 

Matanças de Sharpeville e Langa

Também conhecido como o "Massacre de Sharpeville", este acontecimento teve como origem os problemas raciais na África do Sul entre as várias comunidades étnicas, mesmo entre brancos ingleses e afrikaners.
Em 1958, o Dr. Hendrik Verwoerd ocupou o cargo de chefe de Estado da República da África do Sul, mantendo a política extremista e segregacionista dos seus antecessores (Malan, Strijdom). Aliás, enquanto ministro dos Assuntos Nativos, em 1956, fora mesmo autor de um Plano de Segregação Racial que dividia o país em territórios para brancos e para negros, que a ONU e a comunidade internacional viria a criticar.
Do mesmo modo, já em 1957 houvera contestação e desobediência civil na população.
A 21 e 22 de março de 1960 sucederam-se manifestações da população negra nos subúrbios da Cidade do Cabo, como protesto a uma ordem do Governo que exigia documentos especiais de identidade aos negros para viverem e trabalharem em áreas urbanas. A Polícia disparou contra os manifestantes em Langa e Sharpeville, ação que se traduziu num saldo trágico de 72 mortos.
A 30 de março de 1960, os negros declararam greve e organizaram uma manifestação na Cidade do Cabo. O Governo tomou medidas de exceção e declarou o estado de emergência. Muitos dos manifestantes, entre os quais se contaram também brancos, foram presos. Até 31 de agosto a situação manter-se-ia, com o estado de emergência. O descontentamento e as críticas no estrangeiro, nomeadamente por parte da ONU, foram uma constante. Na África do Sul, contudo, o ANC (Congresso Nacional Africano) de Nelson Mandela foi proibido, acusado de instigar os manifestantes. A política segregacionista de apartheid persistiu apesar das condenações internacionais e do isolamento da África do Sul até finais da década de 80. (daqui)
 

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