segunda-feira, 31 de outubro de 2011

"Lágrima de preta" - Poema de António Gedeão


 


Lágrima de preta


Encontrei uma preta
que estava a chorar,
pedi-lhe uma lágrima
para a analisar.

Recolhi a lágrima
com todo cuidado
num tubo de ensaio
bem esterilizado.

Olhei-a de um lado,
do outro e de frente:
tinha um ar de gota
muito transparente.

Mandei vir os ácidos,
as bases e os sais,
as drogas usadas
em casos que tais.

Ensaiei a frio,
experimentei ao lume,
de todas as vezes
deu-me o que é costume:

nem sinais de negro,
nem vestígios de ódio.
Água (quase tudo)
e cloreto de sódio.


António Gedeão
(pseudónimo de Rómulo de Carvalho)


António Gedeão


António Gedeão (1906 / 1997), pseudónimo de Rómulo de Carvalho, concluiu, no Porto, o curso de Ciências Físico-Químicas, exercendo depois a atividade de docente. Poeta, professor e historiador da ciência portuguesa, teve um papel importante na divulgação de temas científicos, colaborando em revistas da especialidade e organizando obras no campo da história das ciências e das instituições, como A Actividade Pedagógica da Academia das Ciências de Lisboa nos Séculos XVIII e XIX. Publicou ainda outros estudos, como História da Fundação do Colégio Real dos Nobres de Lisboa (1959), O Sentido Científico em Bocage (1965) e Relações entre Portugal e a Rússia no Século XVIII (1979).
Revelou-se como poeta apenas em 1956, com a obra Movimento Perpétuo. A esta viriam juntar-se outras obras, como Teatro do Mundo (1958), Máquina de Fogo (1961), Poema para Galileu (1964), Linhas de Força (1967) e ainda Poemas Póstumos (1983) e Novos Poemas Póstumos (1990). Na sua poesia, reunida também em Poesias Completas (1964), as fontes de inspiração são heterogéneas e equilibradas de modo original pelo homem que, com um rigor científico, nos comunica o sofrimento alheio, ou a constatação da solidão humana, muitas vezes com surpreendente ironia. Alguns dos seus textos poéticos foram aproveitados para músicas de intervenção.
Em 1963 publicou a peça de teatro RTX 78/24 (1963) e dez anos depois a sua primeira obra de ficção, A Poltrona e Outras Novelas (1973). Na data do seu nonagésimo aniversário, António Gedeão foi alvo de uma homenagem nacional, tendo sido condecorado com a Grã-Cruz da Ordem de Sant'iago de Espada.



"Difícil não é lutar por aquilo que se quer, e sim desistir daquilo que se mais ama. Eu desisti. Mas não pense que foi por não ter coragem de lutar, e sim por não ter mais condições de sofrer." - Bob Marley

domingo, 30 de outubro de 2011

"Missa de Aniversário" - Poema de Ruy Belo


August Strindberg, Beach Party, 1873



Missa de Aniversário


Há um ano que os teus gestos andam 
ausentes da nossa freguesia 
Tu que eras destes campos 
onde de novo a seara amadurece 
donde és hoje? 
Que nome novo tens? 
Haverá mais singular fim de semana 
do que um sábado assim que nunca mais tem fim? 
Que ocupação é agora a tua 
que tens todo o tempo livre à tua frente? 
Que passos te levarão atrás 
do arrulhar da pomba em nossos céus? 
Que te acontece que não mais fizeste anos 
embora a mesa posta continue à tua espera 
e lá fora na estrada as amoreiras tenham outra vez florido? 

Era esta a voz dele assim é que falava 
dizem agora as giestas desta sua terra 
que o viram passar nos caminhos da infância 
junto ao primeiro voo das perdizes 

Já só na gravata te levamos morto àqueles caminhos 
onde deixaste a marca dos teus pés 
Apenas na gravata. A tua morte 
deixou de nos vestir completamente 
No verão em que partiste bem me lembro 
pensei coisas profundas 
É de novo verão. Cada vez tens menos lugar 
neste canto de nós donde anualmente 
te havemos piedosamente de desenterrar 
Até à morte da morte 


Ruy Belo, in “Aquele Grande Rio Eufrates”


August Strindberg, White Mare IV, 1901


"Quem não sabe o que é a vida, como poderá saber o que é a morte?"

Confúcio 
filósofo chinês 
(551 a.C. - 479 a.C.)


"Envelhecer" - Poema de Wilson Frade


Émile Bernard (1868-1941), Avó, 1887, Óleo sobre tela


Envelhecer


Embora todos os pretensos à velhice
se agarrem ao espírito,
o tédio chega e vai ficando.

As nossas mãos já não escrevem com o mesmo brilho
e já não enfrentamos a vida com o mesmo espanto no olhar.

O verde já não é tão verde
e não nos atiramos no mar com a mesma gulodice.

Amamos com maior cautela,
menos febrilmente, mas, bem mais ordenadamente.

Buscamos o sabor do beijo com a febre de que ele possa acabar,
mas sentimos um frio no corpo se pensamos que tudo isso
possa terminar.

Os fios de cabelos brancos já não nos castigam
porque descobrimos mais a lua e as estrelas,
e curtimos aquele chinelo velho
em extremo desuso.

Prestamos mais atenção aos passarinhos
e no riacho que corre,
e tornamo-nos mais íntimos da morte.

Fingimos que ela é nossa amante
para que não nos leve assim tão de repente
e não nos tire os raros momentos em que nos tornamos jovens.


Wilson Frade,
Poemas de um livro só, Rio de Janeiro, Nova Fronteira: 1991

[Wilson Frade (1920-2000) foi um jornalista, pintor, poeta, instrumentista e compositor mineiro.]


Leonard Cohen - Dance Me to the End Of Love


"A alegria mantém uma espécie de luz solar brilhando na mente e a invade com uma serenidade perene e firme."

(Josefh Addison)

[Joseph Addison (Inglaterra, 1672 - 1719) foi um poeta e ensaísta inglês.]


sexta-feira, 28 de outubro de 2011

"O Tempo seca o Amor" - Poema de Cecília Meireles


 


O Tempo seca o Amor


O tempo seca a beleza, 
seca o amor, seca as palavras. 
Deixa tudo solto, leve, 
desunido para sempre 
como as areias nas águas. 

O tempo seca a saudade, 
seca as lembranças e as lágrimas. 
Deixa algum retrato, apenas, 
vagando seco e vazio 
como estas conchas das praias. 

O tempo seca o desejo 
e suas velhas batalhas. 
Seca o frágil arabesco, 
vestígio do musgo humano, 
na densa turfa mortuária. 

Esperarei pelo tempo 
com suas conquistas áridas. 
Esperarei que te seque, 
não na terra, Amor-Perfeito, 
num tempo depois das almas. 


Cecília Meireles, in 'Retrato Natural'


John Singer Sargent, Rosina Ferrara - Dans les Oliviers, 1878 


"Toda a beleza é alegria que permanece."

John Kreats, in Endymion


John Keats (Londres, 31 de outubro de 1795 - Roma, 23 de fevereiro de 1821) foi um poeta inglês. Foi o último dos poetas românticos do país, e, aos 25, o mais jovem a morrer. Juntamente com Lord Byron e Percy Bysshe Shelley, foi uma das principais figuras da segunda geração do movimento romântico, apesar de sua obra ter começado a ser publicada apenas quatro anos antes de sua morte. Durante sua vida, seus poemas não foram geralmente bem recebidos pelos críticos; sua reputação, no entanto, cresceu à medida que ele exerceu uma influência póstuma significativa em diversos poetas posteriores, como Alfred Tennyson e Wilfred Owen.
A poesia de Keats é caracterizada por um imaginário sensual, mais visível na sua série de odes. Atualmente seus poemas e cartas são consideradas entre as obras mais populares e analisadas na literatura inglesa(Daqui)


Vanessa Carlton - A Thousand Miles

"O Balcão" - Poema de Carlos Drummond de Andrade


Pintura de Joseph Lorusso



O Balcão 


O cafezinho está mais caro?
Sabe melhor o cafezinho?
De diâmetro aumentou a xícara?
A colherzinha não é mais de prata
(se algum dia foi), e um sorriso
de boas-vindas nos acolhe
sob os bigodes do gerente?
É mais café o cafezinho,
mais quente, inspira mais piadas
a seus costumeiros clientes?
Tem um pó mais fino, o adoçante
não mata mais que o ciclamato,
e há no açúcar um princípio
de tornar o dia contente
quando o céu da boca relembra
o cafezinho em pé tomado?
O cafezinho contém mesmo
café do bom, que a velha casa
de nosso avô servia a todos,
e repetiam todos, uai?
Não. Simplesmente, meus amigos,
o cafezinho está mais caro.


Carlos Drummond de Andrade



Céline Dion - A New Day Has Come


"Verbo Ser" - Poema de Carlos Drummond de Andrade


Seymour Joseph Guy (1824–1910), The bedtime story, 1878 


Verbo Ser


 
Que vai ser quando crescer?
Vivem perguntando em redor. Que é ser?
É ter um corpo, um jeito, um nome?
Tenho os três. E sou?
Tenho de mudar quando crescer? Usar outro nome, corpo e jeito?
Ou a gente só principia a ser quando cresce?
É terrível, ser? Dói? É bom? É triste?
Ser; pronunciado tão depressa, e cabe tantas coisas?
Repito: ser, ser, ser. Er. R.
Que vou ser quando crescer?
Sou obrigado a? Posso escolher?
Não dá para entender. Não vou ser.
Vou crescer assim mesmo.
Sem ser. Esquecer.
 



Alicia Keys - Doesn't Mean Anything


“Considero feliz aquele que quando se fala de êxito busca a resposta em seu trabalho.”

(Ralph W. Emerson)


Ralph Waldo Emerson (25 de maio de 1803, Boston - 27 de abril de 1882, Concord, Massachusetts) foi um famoso escritor, filósofo e poeta estado-unidense. Emerson fez seus estudos em Harvard para se tornar, como seu pai, ministro religioso. Foi pastor em Boston mas interrompeu essa atividade por divergências doutrinárias sobre a eucaristia. Em 1833 viaja pela Europa e encontra Mill, Coleridge, Wordsworth e Carlyle, cultivando uma profunda amizade com este último. De volta aos Estados Unidos, começou a desenvolver sua filosofia "transcendentalista", exposta em obras como Natureza, Ensaios e Sociedade e solidão. O transcendentalismo é, para Emerson, um esforço de introspecção metódica para se chegar além do "eu" superficial ao "eu" profundo, o espírito universal comum a toda a espécie humana. O clube transcendentalista de Concord, ao qual pertenciam entre outros Thoreau e Margareth Füller, e cujo órgão oficial era a revista The Dial, exercia grande influência sobre a vida intelectual americana do século XIX.

"As Atitudes Mentais são mais importantes que a Capacidade Mental" - Alfred Montapert, in "A Suprema Filosofia do Homem"


Gunnar Berndtson, The Bride's Song (1881)



As atitudes mentais são mais importantes que a capacidade mental


"Tudo, na sua vida, depende da sua atitude. A felicidade não depende de coisas à sua volta, mas da sua atitude. É uma lei que importa recordar. As nossas atitudes controlam as nossas vidas. São uma força secreta a labutar vinte e quatro horas por dia, para o bem ou para o mal. É importante sabermos como domesticar e controlar essa grande força. As atitudes mentais são mais importantes que a capacidade mental. As atitudes afectam o corpo; criamos um clima dentro de nós e à nossa volta com as nossas atitudes. Tenha uma atitude agradável, afectuosa e amistosa. Séneca, o sábio romano, afirmou: - «Um homem pode governar o mundo inteiro e continuar infeliz, se não sentir que é supremamente feliz».
Que beleza existe no mundo em que vive? Ora bem, é tão belo como a sua atitude mental. Resolva ter uma atitude feliz, confiante, enérgica, positiva, entusiástica. A disposição interior, mais que qualquer outra coisa, pode dar a perspectiva adequada e a faculdade para resolver qualquer situação. Cada pessoa tem uma tendência para uma atitude construtiva ou negativa. Manter pensamentos positivos requer vigilância constante e desenvolvimento do carácter através do estudo e da experiência."


Alfred Montapert, in "A Suprema Filosofia do Homem"
 


O MENINO E O ARCO DA ÁRVORE DO SOL 


“A companhia dos livros dispensa com grande vantagem a dos homens.”

(Marquês de Maricá)

[Mariano José Pereira da Fonseca, 1º e único visconde com grandeza e marquês de Maricá (Rio de Janeiro, 18 de maio de 1773 — Rio de Janeiro, 16 de setembro de 1848), foi um escritor, filósofo e político brasileiro.]

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

"Meus Oito Anos" - Poema de Casimiro de Abreu


Sophie Gengembre Anderson, O pastor flautista, 1881



Meus Oito Anos 


Oh! que saudades que tenho 
Da aurora da minha vida, 
Da minha infância querida 
Que os anos não trazem mais! 
Que amor, que sonhos, que flores, 
Naquelas tardes fagueiras 
À sombra das bananeiras, 
Debaixo dos laranjais! 

Como são belos os dias 
Do despontar da existência! 
- Respira a alma inocência 
Como perfumes a flor; 
O mar - é lago sereno, 
O céu - um manto azulado, 
O mundo - um sonho dourado, 
A vida - um hino d'amor! 

Que aurora, que sol, que vida, 
Que noites de melodia 
Naquela doce alegria, 
Naquele ingénuo folgar! 
O céu bordado d'estrelas, 
A terra de aromas cheia 
As ondas beijando a areia 
E a lua beijando o mar! 

Oh! dias da minha infância! 
Oh! meu céu de primavera! 
Que doce a vida não era 
Nessa risonha manhã! 
Em vez das mágoas de agora, 
Eu tinha nessas delícias 
De minha mãe as carícias 
E beijos de minha irmã! 

Livre filho das montanhas, 
Eu ia bem satisfeito, 
Da camisa aberta o peito, 
- Pés descalços, braços nus - 
Correndo pelas campinas 
A roda das cachoeiras, 
Atrás das asas ligeiras 
Das borboletas azuis! 

Naqueles tempos ditosos 
Ia colher as pitangas, 
Trepava a tirar as mangas, 
Brincava à beira do mar; 
Rezava às Ave-Marias, 
Achava o céu sempre lindo. 
Adormecia sorrindo 
E despertava a cantar!

Oh! que saudades que tenho 
Da aurora da minha vida, 
Da minha infância querida 
Que os anos não trazem mais! 
- Que amor, que sonhos, que flores, 
Naquelas tardes fagueiras 
A sombra das bananeiras 
Debaixo dos laranjais! 


Casimiro de Abreu 


Casimiro José Marques de Abreu (Capivary, 4 de janeiro de 1839 — Nova Friburgo, 18 de outubro de 1860) foi um poeta brasileiro da segunda geração romântica. Dono de rimas cantantes, ao gosto do público, Casimiro de Abreu publicou apenas um livro, As Primaveras (1859). Morreu aos 21 anos, de tuberculose, em Nova Friburgo, estado do Rio de Janeiro. Seu poema mais famoso é Meus Oito Anos. Da segunda geração romântica brasileira, Casimiro de Abreu cultivava um lirismo de expressão simples e ingénua. Seus temas dominantes foram o amor e a saudade.




"O comportamento é um espelho no qual todos mostramos o que somos."


quarta-feira, 26 de outubro de 2011

"Traduzir-se" - Poema de Ferreira Gullar


Felix Nussbaum (German-Jewish surrealist painter, 1904-1944),
  Portrait of an Unidentified Man, 1941 
 


Traduzir-se


Uma parte de mim
é todo mundo;
outra parte é ninguém,
fundo sem fundo.

Uma parte de mim
é multidão;
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa, pondera;
outra parte delira

Uma parte de mim
almoça e janta;
outra parte se espanta

Uma parte de mim
é permanente;
outra parte
se sabe de repente

Uma parte de mim
é só vertigem;
outra parte,
linguagem.

Traduzir uma parte
na outra parte
- que é uma questão
de vida ou morte -
será arte?


in Na vertigem do dia, 1980


Ferreira Gullar, pseudónimo de José Ribamar Ferreira (São Luís, 10 de setembro de 1930) é um poeta, crítico de arte, biógrafo, tradutor, memorialista e ensaísta brasileiro e um dos fundadores do neoconcretismo. 
Neoconcretismo foi um movimento artístico surgido no Rio de Janeiro, Brasil, em fins da década de 1950, como reação ao concretismo  ortodoxo.


Felix Nussbaum, Self-Portrait in Front of the Easel, 1943,
Jewish Museum, Paris, France
 

"Verdadeiramente bom só é o homem que nunca censura os outros pelos males que lhe acontecem."

(Paul Valéry)
 

terça-feira, 25 de outubro de 2011

"Se eu pudesse" - Poema de Alberto Caeiro


Martin Johnson Heade (1819-1904), Sunset Over the Marshes, 1890-1904


Se eu pudesse


Se eu pudesse trincar a terra toda
E sentir-lhe um paladar,
Seria mais feliz um momento…
Mas eu nem sempre quero ser feliz.
É preciso ser de vez em quando infeliz
Para se poder ser natural…

Nem tudo é dias de sol,
E a chuva, quando falta muito, pede-se.
Por isso tomo a infelicidade com a felicidade
Naturalmente, como quem não estranha
Que haja montanhas e planícies
E que haja rochedos e erva…

O que é preciso é ser-se natural e calmo
Na felicidade ou na infelicidade,
Sentir como quem olha,
Pensar como quem anda,
E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre,
E que o poente é belo e é bela a noite que fica…
Assim é e assim seja …


Alberto Caeiro, in "O Guardador de Rebanhos - Poema XXI" 
Heterónimo de Fernando Pessoa


Martin Johnson Heade, The Roman Newsboys, 1848 


"As crianças são os únicos seres divinos que a nossa pobre humanidade conhece. Os outros anjos, os das asas, nunca aparecem. Os santos, depois de santos ficam na Bem-aventurança a preguiçar, ninguém mais os enxerga. E, para concebermos uma ideia das coisas do Céu, só temos realmente as criancinhas..." 

Eça de Queirós, A Ilustre Casa de Ramires

"Floriram por engano as rosas bravas" - Poema de Camilo Pessanha


Rosas


Floriram por engano as rosas bravas


Floriram por engano as rosas bravas
No Inverno: veio o vento desfolhá-las...
Em que cismas, meu bem? Porque me calas
As vozes com que há pouco me enganavas?

Castelos doidos! Tão cedo caístes!...
Onde vamos, alheio o pensamento,
De mãos dadas? Teus olhos, que um momento
Perscrutaram nos meus, como vão tristes!

E sobre nós cai nupcial a neve,
Surda, em triunfo, pétalas, de leve
Juncando o chão, na acrópole de gelos...

Em redor do teu vulto é como um véu!
Quem as esparze — quanta flor! —, do céu,
Sobre nós dois, sobre os nossos cabelos?


Camilo Pessanha,
(Coimbra, 1867-1926)


Mariza - Rosa Branca 


"Imaginar o homem como um ser pacífico é completamente impossível. O homem é o único animal que tortura os seus semelhantes, razão pela qual não merecemos muito respeito como espécie." - José Saramago, in Agência Efe, Dezembro 2006
 

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

"Cai a chuva abandonada" - Poema de Vergílio Ferreira


Jeff Rowland, We Have All The Time In The World, 2011



Cai a chuva abandonada


Cai a chuva abandonada 
à minha melancolia, 
a melancolia do nada 
que é tudo o que em nós se cria. 

Memória estranha de outrora 
não a sei e está presente. 
Em mim por si se demora 
e nada em mim a consente 

do que me fala à razão. 
Mas a razão é limite 
do que tem ocasião 

de negar o que me fite 
de onde é a minha mansão 
que é mansão no sem-limite. 
Ao longe e ao alto é que estou 
e só daí é que sou. 


Vergílio Ferreira, 
in 'Conta-Corrente 1'




Vergílio António Ferreira (1916-1996) nasceu em Melo, Serra da Estrela, e faleceu em Lisboa. Frequentou o Seminário do Fundão (1926-1932) e licenciou-se em Filologia Clássica na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (1940).
 
A par do trabalho de escrita, foi professor de Português e de Latim em várias escolas do país. 
Inicialmente neo-realista, depressa Vergílio Ferreira se deixou influenciar pelos existencialistas franceses (André Malraux e Jean-Paul Sartre), iniciando um caminho próprio a partir do romance Mudança (1949). 
 
É considerado um dos mais importantes romancistas portugueses do século XX, tendo ganho vários prémios, entre eles o Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores (ganho duas vezes, primeiro com o romance Até ao Fim e depois com o romance Na tua Face), e o Prémio Femina na França com o romance Manhã Submersa.
 
A sua vasta obra, geralmente dividida em ficção (romance, conto), ensaio e diário, costuma ser agrupada em dois períodos literários: o Neo-realismo e o Existencialismo. Considera-se que Mudança é a obra que marca a transição entre os dois períodos.


Rodrigo Leão - Vida Tão Estranha 

 


"Cada dia a natureza produz o suficiente para nossa carência. Se cada um tomasse o que lhe fosse necessário, não havia pobreza no mundo e ninguém morreria de fome." - Mahatma Gandhi 
 

domingo, 23 de outubro de 2011

"Rosto Afogado" - Poema de Eugénio de Andrade


Rosto Afogado


Para sempre um luar de naufrágio 
anunciará a aurora fria. 
Para sempre o teu rosto afogado, 
entre retratos e vendedores ambulantes, 
entre cigarros e gente sem destino, 
flutuará rodeado de escamas cintilantes. 

Se me pudesse matar, 
seria pela curva doce dos teus olhos, 
pela tua fronte de bosque adormecido, 
pela tua voz onde sempre amanhecia, 
pelos teus cabelos onde o rumor da sombra 
era um rumor de festa, 
pela tua boca onde os peixes se esqueciam 
de continuar a viagem nupcial. 
Mas a minha morte é este vaguear contigo 
na parte mais débil do meu corpo, 
com uma espinha de silêncio 
atravessada na garganta. 

Não sei se te procuro ou se me esqueço 
de ti quando acaso me debruço 
nuns olhos subitamente acesos 
ao dobrar de uma esquina, 
na boca dos anjos embriagados 
de tanta solidão bebida pelos bares, 
nas mãos levemente adolescentes 
poisadas na indolência dos joelhos. 
Quem me dirá que não é verdade 
o teu rosto afogado, o teu rosto perdido, 
de sombra em sombra, nas ruas da cidade? 

Ninguém te conheceu, 
ninguém viu romper a luz na tua cama, 
ninguém sabe, ninguém, 
que o teu corpo, continente selvagem, 
se desvelava por uma pedra branca 
atirada contra o nevoeiro. 

Por isso escrevo esta elegia 
como quem oferece a luz dos olhos; 
por isso canto o teu rosto afogado 
como quem canta um funeral de espigas. 


 in As Palavras Interditas 


Autorretrato de Eliseu Visconti, 1902, 
Óleo sobre tela, 64 x 48 cm


Eliseo d'Angelo Visconti (Giffoni Valle Piana, 30 de julho de 1866 — Rio de Janeiro, 15 de outubro de 1944) foi um pintor, desenhista e designer ítalo-brasileiro ativo entre os séculos XIX e XX. É considerado um dos mais importantes artistas brasileiros do período e o mais expressivo representante da pintura impressionista no Brasil.


Eliseu Visconti, Moça no Trigal - c.1916


"A educação é para a alma o que a escultura é para um bloco de mármore".

- What sculpture is to a block of marble, education is to the human soul.
"The Spectator (1711-1714)"; No. 215 (6 de novembro de 1711)


"Passado, Presente, Futuro" - Poema de José Saramago


Everett Shinn (1876-1953), The Pool Room, 1903



Passado, Presente, Futuro


Eu fui. Mas o que fui já me não lembra:
Mil camadas de pó disfarçam, véus,
Estes quarenta rostos desiguais.
Tão marcados de tempo e macaréus.

Eu sou. Mas o que sou tão pouco é:
Rã fugida do charco, que saltou,
E no salto que deu, quanto podia,
O ar dum outro mundo a rebentou.

Falta ver, se é que falta, o que serei:
Um rosto recomposto antes do fim,
Um canto de batráquio, mesmo rouco,
Uma vida que corra assim-assim. 


José Saramago,
 in "Os Poemas Possíveis"


Enya - Paint the Sky with Stars


"Eu sou ateu, mas sempre me senti atraído pelo fenómeno religioso. Interessa-me a religião como instituição de poder que se exerce sobre as almas e os corpos." - José Saramago (Fonte - Turia, 2001)

"A razão por que a despedida nos dói tanto..." Nicholas Sparks




"A razão por que a despedida nos dói tanto é que nossas almas estão ligadas. Talvez sempre tenham sido e sempre serão. Talvez nós tenhamos vivido mil vidas antes desta e em cada uma delas nós nos encontramos. E talvez a cada vez tenhamos sido forçados a nos separar pelos mesmos motivos. Isso significa que este adeus é ao mesmo tempo um adeus pelos últimos dez mil anos e um prelúdio do que virá."


Nicholas Sparks - "O Caderno de Noah"
Tradução de Eliana Sabino

Enya - A Moment Lost  

 


Pensamento 

"Um público comprometido com a leitura é crítico, rebelde, inquieto, pouco manipulável e não crê em lemas que alguns fazem passar por idéias."  

(Mário Vargas Llosa)


(Jorge Mario Vargas Llosa (Arequipa, 28 de março de 1936) é um escritor, jornalista, ensaista e político peruano, laureado com o Nobel de Literatura de 2010)

"O português não gosta de trabalhar" - Texto de Agostinho da Silva


Pintura de Edgar Walter


O português não gosta de trabalhar


O português não gosta de trabalhar. Se há uma tecnologia que trabalhe por ele, ela que avance. Ele tem coisas mais interessantes para fazer como poeta, do que a trabalhar. (...) O português trabalhou e trabalhou e trabalha sempre que for preciso. O que têm feito os emigrantes pelo mundo? Aonde eles vão e é preciso trabalhar, eles trabalham. (...) O português, dentro de determinadas condições, se a vida lhe fosse inteiramente favorável, ele gostaria muito mais de contemplar e poetar do que trabalhar. Mas quando é levado a uma função em tem que trabalhar, ele trabalha. - Agostinho da Silva, in 'Entrevista'
 
 
[George Agostinho Baptista da Silva (Porto, 13 de Fevereiro de 1906 — Lisboa, 3 de Abril de 1994), foi um filósofo, poeta e ensaísta português. O seu pensamento combina elementos de panteísmo, milenarismo e ética da renúncia, afirmando a Liberdade como a mais importante qualidade do ser humano. Agostinho da Silva pode ser considerado um filósofo prático e empenhado através da sua vida e obra, na mudança da sociedade.]



"Há uma erudição do conhecimento, que é propriamente o que se chama erudição, e há uma erudição do entendimento, que é o que se chama cultura. Mas há também uma erudição da sensibilidade." - Bernardo Soares, (fragmentos) 138
 

[Bernardo Soares é um tipo particular dentro dos heterónimos do poeta e escritor português Fernando Pessoa. É o autor do Livro do Desassossego, escrito em forma de fragmentos. Apesar de fragmentário, o livro é considerado uma das obras fundadoras da ficção portuguesa no século XX, ao encenar na linguagem categorias várias que vão desde o pragmatismo da condição humana até o absurdo da própria literatura. 
Bernardo Soares é, dentro da ficção de seu próprio livro, um simples ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa. 
É considerado um semi-heterónimo porque, como seu próprio criador explica "não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e afectividade."]

"Demissão" - Poema de José Saramago


Everett Shinn (1876-1953),  Snowstorm Broadway, 1909


Demissão


Este mundo não presta, venha outro.
Já por tempo de mais aqui andamos
A fingir de razões suficientes.
Sejamos cães do cão: sabemos tudo
De morder os mais fracos, se mandamos,
E de lamber as mãos, se dependentes.


José Saramago,
 in "Os Poemas Possíveis"
 

Everett Shinn, Park Scene, 1899


"A humildade é a única base sólida de todas as virtudes."

Confúcio
(filósofo chinês - 551 a.C. - 479 a.C.)