sábado, 1 de novembro de 2014

"Defeito de Fabrico" - Poema de A. M. Pires Cabral


Foto de Rui Videira - Porto, Portugal
 


Defeito de Fabrico


Quando nasci, trazia de origem 
um farol que despejava luz a jorros 
sobre o que quer que fosse, 
mormente sobre as dobras 
pérfidas da noite. 

Mas, por estranho que pareça, 
também os faróis estão sujeitos 
às leis da erosão, 

e o meu farol deliu-se. Hoje não é 
mais do que um triste farolim de bicicleta 
que apenas me alumia dois palmos de noite. 

Amanhã estará reduzido 
a uma simples lanterna de bolso 
com que mal poderei reconhecer 
o lugar onde estou. 

Até que um dia será, está bom de ver, 
o mais fiável cúmplice da noite – 

– da noite que devia dissipar, 
e não fundir-se nela. 

Defeito de fabrico. 
Mas a garantia caducou e o fabricante 
nega-se a ressarcir-me do escuro. 


A. M. Pires Cabral, 
in 'Cobra-d'Água'




"Nós não paramos de brincar porque envelhecemos, mas envelhecemos porque paramos de brincar." 



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