sexta-feira, 1 de julho de 2016

"Elogio da Amada" - Poema de Ruy Belo


Frida Kahlo (1907-1954), Tree of Hope, Remain strong, 1946
(Autora de tantas obras fantásticas, quase tão fantásticas como a história da sua vida.
Uma vida cheia de paixão, tragédia, amor, ódio, dor e felicidade.)



Elogio da Amada


Ei-la que vem ubérrima numerosa escolhida 
secreta cheia de pensamentos isenta de cuidados 
Vem sentada na nova primavera 
cercada de sorrisos no regaço lírios 
olhos feitos de sombra de vento e de momento 
alheia a estes dias que eu nunca consigo 
Morde-lhe o tempo na face as raízes do riso 
começa para além dela a ser longe 
A amada é bem a infância que vem ter comigo 
Há pássaros antigos nos límpidos caminhos 
e mortes como antes nunca mais 
Ei-la já que se estende ampla como uma pátria 
no limiar da nossa indiferença 
Os nossos átrios são para os seus pés solitários 
Já todos nós esquecemos a casa dos pais 
ela enche de dias as nossas mãos vazias 
A dor é nela até que deus começa 
eu bem lhe sinto o calcanhar do amor 
Que importa sermos de uma só manhã e não haver em volta 
árvore mais açoitada pelos diversos ventos? 
Que importa partirmos num desmoronar de poentes? 
Mais triste mesmo a vida onde outros passarão 
multiplicando-lhe a ausência que importa 
se onde pomos os pés é primavera? 


Ruy Belo, in "Aquele Grande Rio Eufrates"


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