sexta-feira, 26 de agosto de 2016

"Sonhei-a!" - Poema de Luís Augusto Palmeirim


Mota Urgeiro (Pintor português, n. 1946), A Ceifeira



Sonhei-a!


Sonhei-a! Tenho na mente
O seu retrato inocente
A falar-me ao coração.
Sonhei-a como uma fada,
Que tem vivido encantada
Sozinha na solidão.

Sonhei-a d’olhos pisados,
Porque os prantos magoados
Lh’os tinham pisado assim:
Era triste, mas serena,
Como a gentil açucena,
Rainha do meu jardim.

Sonhei-a triste: – a tristeza
Tem nos olhos da beleza
Encantos qu’eu não direi.
Sonhei-a linda – trigueira,
Como se pinta a ceifeira,
Como eu pintá-la não sei.

Sonhei-a no fim do dia,
Quando tudo é melodia,
Quando tudo fala em Deus.
Vi-a sozinha pensando,
Talvez com prantos regando
Alguns pobres versos meus.

Sonhei-a como eu pequeno,
Naquele sonhar ameno,
Sonhava tudo o que é bom.
Cuidei vê-la que me olhava,
Tão triste que não falava
Nem da voz lhe ouvia o som.

Sonhei-a vindo da guerra,
A falar da minha terra
Como fala o trovador;
Mas então já se sorria,
Já de mansinho dizia
Algumas falas de amor.

Dizia-as como quem sente,
Não altas, mas como a gente
As diz em coisas assim:
Dizia-as como as diria
Beatriz quando as sentia
Falando de Bernardim.

Dizia-as sempre corando,
Repetia-as soluçando
D’olhos pregados no chão;
Dizia-as como eu jurara,
Que ninguém ainda amara
No mundo com tal paixão.

E depois envergonhada,
De não ser mais recatada,
Corava ainda outra vez!
Corava… corava ainda
Cada vez era mais linda,
Mais linda, que Deus a fez!

Qu’ria falar não podia,
Que a vergonha lh’impedia
De poder usar a voz.
Era então que se lembrava
De que o mundo a censurava
De nos ver falar a sós.

Sonhei-a depois rezando,
Talvez em segredo orando
Pela terra em que nasceu;
Rezava que quem a visse,
Pode ser que a confundisse
Com algum anjo do céu.

Tinha as tranças desprendidas,
Levemente sacudidas
Por ligeira viração.
Dos lábios lhe baloiçava
Uma oração que rezava
Do fundo do coração.

Vista assim, em tal postura,
Crescia-lhe a formosura,
Se ela pudesse crescer.
Não podia, nem num canto
Se pode tamanho encanto
Com verdade descrever.

Sonhei em sonho fagueiro
Que era um amor verdadeiro
Aquele tão casto amor;
Costumado à desventura,
Só em sonhos a ventura
Visitou o trovador!

Falei-lhe tão meigas falas,
Que nunca as damas das salas
M’as podem ouvir assim:
Ela era linda, inocente,
Falei-lhe como quem sente,
Falei-lhe pouco de mim.

Beijei-lhe a mão com respeito;
Arfava-lhe o lindo peito,
Batia-lhe o coração.
Jurei-lhe… não digo a jura;
Tenho medo que a ventura
Me não deixe a discrição!

Sonhei-a então pensativa,
Como fica a sensitiva
Se lhe vão no pé tocar:
Era tão linda a donzela,
Que eu ficaria ao pé dela
A minha vida…, a sonhar!

Era triste como eu gosto;
Era linda como aposto
Que não havia outra igual;
Sendo tantas como as rosas,
As filhas belas, mimosas,
Das terras de Portugal!

Sonhei-a: se foi mentira
Cantei-a de mais na lira,
Morri por ela de mais.
Se o sonho foi verdadeiro,
Nem o canto é lisonjeiro,
Nem as trovas desleais.

Sonhei-a! Tenho na mente
O seu retrato inocente
A falar-me ao coração!
Sonhei-a como uma fada,
Que tem vivido encantada
Sozinha – na solidão!


Luís Augusto Palmeirim,
Poesias, 1851


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