terça-feira, 30 de junho de 2020

"Bela d'amor" - Poema de Almeida Garrett



Carolus-Duran (French painter, 1837–1917), Portrait of Mademoiselle de Lancey, 1876.
 


Bela d'amor

 
Pois essa luz cintilante
Que brilha no teu semblante
Donde lhe vem o esplendor?
Não sentes no peito a chama
Que aos meus suspiros se inflama
E toda reluz de amor?

Pois a celeste fragrância
Que te sentes exalar,
Pois, dize, a ingénua elegância
Com que te vês ondular
Como se baloiça a flor
Na Primavera em verdor,
Dize, dize: a natureza
Pode dar tal gentileza?
Quem ta deu senão amor?

Vê-te a esse espelho, querida,
Ai!, vê-te por tua vida,
E diz se há no céu estrela,
Diz-me se há no prado flor
Que Deus fizesse tão bela
Como te faz meu amor.


Almeida Garrett, in 'Folhas Caídas'


segunda-feira, 29 de junho de 2020

"As cem linguagens da criança" - Poema de Loris Malaguzzi


Jean-Paul Louis Martin des Amoignes (1858–1925), Dans la salle de classe, 1886



As cem linguagens da criança


A criança é feita de cem.
A criança tem cem mãos
cem pensamentos
cem modos de pensar
de jogar e de falar.
Cem, sempre cem
modos de escutar
de maravilhar e de amar.
Cem alegrias
para cantar e compreender.
Cem mundos
para descobrir.
Cem mundos
para inventar.
Cem mundos
para sonhar.
A criança tem
cem linguagens
(e depois cem, cem, cem)
mas roubaram-lhe noventa e nove.
A escola e a cultura
lhe separam a cabeça do corpo.
Dizem-lhe:
de pensar sem as mãos
de fazer sem a cabeça
de escutar e de não falar
de compreender sem alegrias
de amar e de maravilhar-se
só na Páscoa e no Natal.
Dizem-lhe:
de descobrir um mundo que já existe
e de cem roubaram-lhe noventa e nove.
Dizem-lhe:
que o jogo e o trabalho
a realidade e a fantasia
a ciência e a imaginação
o céu e a terra
a razão e o sonho
são coisas
que não estão juntas.
Dizem-lhe enfim:
que as cem não existem.
A criança diz:
Ao contrário, as cem existem.


Loris Malaguzzi
(1920-1994)
As Cem Linguagens da Criança

Loris Malaguzzi, professor italiano que criou a abordagem educativa mais conhecida como Reggio Emilia e defensor da pedagogia da escuta, ele a relacionava ao debate acerca da linguagem oral e escrita, mas também ao estudo do cérebro e às ideias sobre os processos de aprendizagem (“aprender fazendo” de John Dewey). Reggio Emilia é uma pequena província considerada colaborativa, cuja Educação Infantil foi considerada a melhor do mundo em 2013, e difunde largamente a ideia das Cem Linguagens. Para o educador, não só o que a criança pensa é válido, mas válidas são também as múltiplas linguagens da infância e a forma como as crianças pesquisam, produzem sentido e conhecimento.

"Quarenta Anos" - Poema de Mário de Andrade





Quarenta Anos


A vida é para mim, está se vendo,
Uma felicidade sem repouso;
Eu nem sei mais se gozo, pois que o gozo
Só pode ser medido em se sofrendo.

Bem sei que tudo é engano, mas sabendo
Disso, persisto em me enganar… Eu ouso
Dizer que a vida foi o bem precioso
Que eu adorei. Foi meu pecado… Horrendo

Seria, agora que a velhice avança,
Que me sinto completo e além da sorte,
Me agarrar a esta vida fementida.

Vou fazer do meu fim minha esperança,
Oh sono, vem!… Que eu quero amar a morte
Com o mesmo engano com que amei a vida.


Mário de Andrade,
A Costela do Grã Cão, 1933


domingo, 28 de junho de 2020

"Arcos" - Poema de Octavio Paz


John Byam Liston Shaw (1872–1919), Boer War (1900–1901), 
Last Summer Things Were Greener

(The figure depicted is the artist’s sister, Margaret Glencairn, who is mourning her cousin George, killed in the Boer War, South Africa.)


ARCOS 
                                                                    A Silvina Ocampo


Quem canta nas ourelas do papel?
De bruços, inclinado sobre o rio
de imagens, me vejo, lento e só,
ao longe de mim mesmo: 6 letras puras,
constelação de signos, incisões.
na carne do tempo, ó escritura,
risca na água!

Vou entre verdores
enlaçados, adentro transparências,
entre ilhas avanço pelo rio,
pelo rio feliz que se desliza
e não transcorre, liso pensamento.
Me afasto de mim mesmo, me detenho
sem deter-me nessa margem, sigo
rio abaixo, entre arcos de enlaçadas
imagens, o rio pensativo.

Sigo, me espero além, vou-me ao encontro,
rio feliz que enlaça e desenlaça
um momento de sol entre dois olmos,
sobre a polida pedra se demora
e se desprende de si mesmo e segue,
rio abaixo, ao encontro de si mesmo.

1947 

sábado, 27 de junho de 2020

"Catarina Eufémia" - Poema de Sophia de Mello Breyner Andresen


Cyprien Eugène Boulet (1877–1927), Mulher do Xaile Verde, s/d 



Catarina Eufémia


O primeiro tema da reflexão grega é a justiça
E eu penso nesse instante em que ficaste exposta
Estavas grávida porém não recuaste
Porque a tua lição é esta: fazer frente

Pois não deste homem por ti
E não ficaste em casa a cozinhar intrigas
Segundo o antiquíssimo método oblíquo das mulheres
Nem usaste de manobra ou de calúnia
E não serviste apenas para chorar os mortos

Tinha chegado o tempo
Em que era preciso que alguém não recuasse
E a terra bebeu um sangue duas vezes puro

Porque eras a mulher e não somente a fêmea
Eras a inocência frontal que não recua
Antígona poisou a sua mão sobre o teu ombro
 no instante em que morreste
E a busca da justiça continua


Sophia de Mello Breyner Andresen, Dual, 1972
Poema sobre a ceifeira Catarina Eufémia (1928-1954) 


"Banhista" - Poema de Carlito Azevedo


Ernst Ludwig Kirchner, Banhistas, 1910 - Museu Städel



 Banhista


Apenas
em frente
ao mar
um dia de verão -
quando tua voz
acesa percorresse,
consumindo-o,
o pavio de um verso
até sua última
sílaba inflamável -
quando o súbito
atrito de um nome
em tua memória te
incendiasse os cabelos -
(e sobre tua pele
de fogo a
brisa fizesse
rasgaduras
de água) 


 Do livro: As banhistas, Editora Imago


quinta-feira, 25 de junho de 2020

"Não fora o mar!" - Poema de Fernanda de Castro


Virginie Demont-Breton, L’homme est en mer (The Man is at Sea), 1889
 


Não fora o mar!


Não fora o mar,
e eu seria feliz na minha rua,
neste primeiro andar da minha casa
a ver, de dia, o sol, de noite a lua,
calada, quieta, sem um golpe de asa.

Não fora o mar,
e seriam contados os meus passos,
tantos para viver, para morrer,
tantos os movimentos dos meus braços,
pequena angústia, pequeno prazer.

Não fora o mar,
e os seus sonhos seriam sem violência
como irisadas bolas de sabão,
efémero cristal, branca aparência,
e o resto — pingos de água em minha mão.

Não fora o mar,
e este cruel desejo de aventura
seria vaga música ao sol pôr
nem sequer brasa viva, queimadura,
pouco mais que o perfume duma flor.

Não fora o mar
e o longo apelo, o canto da sereia,
apenas ilusão, miragem,
breve canção, passo breve na areia,
desejo balbuciante de viagem.

Não fora o mar
e, resignada, em vez de olhar os astros
tudo o que é alto, inacessível, fundo,
cimos, castelos, torres, nuvens, mastros,
iria de olhos baixos pelo mundo.

Não fora o mar
e o meu canto seria flor e mel,
asa de borboleta, rouxinol,
e não rude halali, garra cruel,
Águia Real que desafia o sol.

Não fora o mar
e este potro selvagem, sem arção,
crinas ao vento, com arreio,
meu altivo, indomável coração,

Não fora o mar
e comeria à mão,
não fora o mar
e aceitaria o freio.


Fernanda de Castro
,
 in "Trinta e Nove Poemas"


Vincent van Gogh (1853-1890), "L'homme est en mer" 
 (The Man is at Sea, after Virginie Demont-Breton), 1889



Espera 

Horas, horas sem fim,
pesadas, fundas,
esperarei por ti
até que todas as coisas sejam mudas.

Até que uma pedra irrompa
e floresça.
Até que um pássaro me saia da garganta
e no silêncio desapareça. 
em “Corpo de Amor”. Sintra: Colares Editora, 1992
 

quarta-feira, 24 de junho de 2020

"Missão de coelho" - Poema de Sônia Ferreira


Seymour Joseph Guy (American, 1824 - 1910), Unconscious of Danger, 1865



Missão de coelho


A criança de cabelos de cachos
jogou um sorriso no mundo
e foi fabricar seus brinquedos
Riu das chaminés variadas
e de todos os barulhos metálicos
Galopou sobre os telhados
Deu um mergulho profundo
na liberdade das praças
Virou risco e voou
entre as folhas dos galhos
Fez fila com as formigas
e carregou toras e copas
Participou de um enxame
trabalhando cera e mel
Deu pulos deu cambalhotas
ficou de olhos vermelhos
em sua missão de coelho
Contou história de urso
e continuou carregando cachos
em seus próprios cabelos


Sônia Ferreira



Seymour Joseph Guy, Daydreaming


Ladainha


Asas de borboletas
— dêem-me a leveza do voo
Sereno das manhãs
— dêem-me a força do sol
Brisa dos campos
— ensina-me a conviver com as tardes
Laranjais brancos de flor
— quero colorir os quintais
Pipoqueiro de chapéu de palha
— plante vida nos olhos
Sinos da capelinha
— permitam-me anunciar o amor
Cigarra da primavera
— quero morrer de cantar
Mãos do lavrador
— façam-me semente no chão! 


Sônia Ferreira,
  JANELAS DE CAMPO FORMOSO. Brasília: Thesaurus, 1991. 


Seymour Joseph Guy, Wading 


Anjo

Não sei se você
é periquito, sabiá,
bem-te-vi.
Não sei se você
é pai, padre,
pastor.
Sei que você
tem cajado,
tem relva,
tem prado.
Não sei se você
é contemplativo,
inquieto,
operário, administrador.
Só sei que você
tem asas de anjo,
soprando versos,
sobre a incerteza
do mundo. 

 
Sônia Ferreira

Sônia Ferreira é poetisa, cronista, ensaísta e animadora cultural. Filha do folclorista e animador cultural Joaquim Luiz Ferreira, e da artesã Leolina Gonzaga Ferreira, nasceu na Fazenda Samambaia, Orizona/GO. É diplomada em Línguas Neolatinas e em Orientação Educacional, com Mestrado em Educação. É especialista em Dinâmica de Grupos Comunitários e em Psicometria. É Professora Universitária, Jornalista, Consultora em Educação e Cultura e Pesquisadora.

Obra poética: Janelas de Campo Formoso,1991; Bucólica, 1991; Licores de Outros Quintais, 2001; Compotas de Poesias e Caldas, 2005; Chuva de Poesias, Cores e Notas no Brasil Central, 2005/2006 (1.a e 2.a edições ); Labaredas do Fogão - poemas e panelas (inédito); Dinâmica do Potencial Criador nas Escolas (inédito); Ação Pedagógica para Áreas Rurais (Tese de Mestrado). (Daqui)

"Viver" - Poema de Lucinda Nogueira Persona



Charles Sprague Pearce (American, 1851–1914), Moments of thoughtfulness, 1882



Viver... 


Viver é descobrir de súbito
Que pode ser sempre novo
Um fato de todos os dias
(pela vista dos meus olhos)

Não há sol que morra
Sem que o declare
A meu modo e maravilha
Além da qual, se algo existe,
É menor,
Bem menor
Que outros sintam o mesmo, Senhor.

em "Tempo comum"
 Rio de Janeiro: 7Letras, 2009, p. 59.


terça-feira, 23 de junho de 2020

"Papagaios de Papel" - Poema de R. Petit (Pseudónimo de Raimundo de Araujo Chagas)


Robert Sarsony (American painter and printmaker, b. 1938 ), In a Seaside Breeze


Papagaios de Papel 


Quando eu era pequeno, venturoso,
Meus lindos papagaios empinando,
Dizia: — Não há nada mais pomposo
Que um papagaio de papel voando.

Cresci!...

Hoje, tristonho, pesaroso
Esses brinquedos de papel, olhando,
Logo descubro o vulto carunchoso
Dos que sobem a tudo se apegando.

Tipos que sobem de alma feita em trapos,
Mostrando ao mundo, despreocupados,
Uma cauda nojenta de farrapos...

Tipos de nulidade tão cruel!
Que só sabem subir encabrestados
Como esses papagaios de papel.


R. Petit
Pseudónimo de Raimundo de Araujo Chagas
(Nasceu em 1894 em Belém do Pará e faleceu em Sorocaba, SP, em 1969.) 



Robert Sarsony, Friends At Seaside


"Nas ondas estão escritas mil estórias, dessas de embalar as crianças do inteiro mundo."

Mia Couto, Terra Sonâmbula



Robert Sarsony, Holiday Fun


"Eu te amo" - Poema de Adalgisa Nery


Simon Glücklich (1863-1943), Young woman sitting, 
in a blue dress (Mrs. Trinkl), 1920



Eu te amo


Eu te amo
Antes e depois de todos os acontecimentos
Na profunda imensidade do vazio
E a cada lágrima dos meus pensamentos.

Eu te amo
Em todos os ventos que cantam,
Em todas as sombras que choram,
Na extensão infinita do tempo
Até a região onde os silêncios moram.

Eu te amo
Em todas as transformações da vida,
Em todos os caminhos do medo,
Na angústia da vontade perdida
E na dor que se veste em segredo.

Eu te amo
Em tudo que estás presente,
No olhar dos astros que te alcançam
Em tudo que ainda estás ausente.

Eu te amo
Desde a criação das águas,
desde a ideia do fogo
E antes do primeiro riso e da primeira mágoa.

Eu te amo perdidamente
Desde a grande nebulosa
Até depois que o universo cair sobre mim
Suavemente.


Adalgisa Nery
(1905-1980)



segunda-feira, 22 de junho de 2020

"Fim de Jornada" - Poema de Helena Kolody


Charles Sprague Pearce (American, 1851-1914), Home from the fields 



Fim de Jornada


Caminhar ao encontro da noite.
Como o camponês regressa ao lar.
Após um longo dia de verão.

Sem pressa ou cuidado.
Na tarde ouro e cinza.
Sozinho entre os campos lavrados.
E as colinas distantes.

Caminhar, ao encontro da noite.
Sem pressa ou cuidado.
A noite é somente uma pausa de sombra.
Entre um dia e outro dia.


Helena Kolody,
de Vida Breve, 1964



Charles Sprague Pearce (American, 1851–1914), Lunch break in the fields


Sabedoria



Tudo o tempo leva.
A própria vida não dura.
Com sabedoria,
colhe a alegria de agora
para a saudade futura.

Helena Kolody
Tanka

Helena Kolody (1912-2004), a consagrada poetisa do Paraná, inaugurou em 1941 a série de mulheres haicaístas do país. Dona de uma enorme coleção de adjetivos-virtudes, palavras-emblemas, atribuídos a ela pelo povo paranaense, Helena deixou uma obra, que na qualidade lembra outra grande poeta: Cecília Meirelles. O amor que ela conquistou pelos poemas, pelos livros, juntou-se à lira de sua poesia feita de canções à vida, da solidariedade, da natureza e a inquietude da condição humana. Pode-se brincar dizendo que as letras iniciais do nome da poeta, HK, são as mesmas de quando se grafa hai-kai, como ela o fazia. (Daqui)


domingo, 21 de junho de 2020

"Eterna Presença" - Poema de Mário de Andrade


Anita Malfatti, A estudante (1915-1916), Acervo do Museu de Arte de São Paulo.



Eterna Presença 


Este feliz desejo de abraçar-te,
Pois que tão longe tu de mim estás,
Faz com que te imagine em toda a parte
Visão, trazendo-me ventura e paz.

Vejo-te em sonho, sonho de beijar-te;
Vejo-te sombra, vou correndo atrás;
Vejo-te nua, oh branco lírio de arte,
Corando-me a existência de rapaz…

E com ver-te e sonhar-te, esta lembrança
Geratriz, esta mágica saudade,
Dá-me a ilusão de que chegaste enfim;

Sinto alegrias de quem pede e alcança
E a enganadora força de, em verdade,
Ter-te, longe de mim, juntinho a mim.


Mário de Andrade
(1893-1945) 


Anita Malfatti, Mário de Andrade, 1921-22.


Biografia de Mário de Andrade


Mário Raul de Moraes Andrade (São Paulo, 1893 -  São Paulo, 1945). Poeta, cronista e romancista, crítico de literatura e de arte, musicólogo e pesquisador do folclore brasileiro, fotógrafo. Conclui o curso de piano pelo Conservatório Dramático e Musical de São Paulo em 1917. Nesse ano, sob o pseudónimo de Mário Sobral, publica seu primeiro livro de versos, Há Uma Gota de Sangue em Cada Poema. Conhece Oswald de Andrade (1890 - 1954) e assiste à exposição modernista da pintora Anita Malfatti (1889 - 1964).

Em 1918, escreve em A Gazeta como crítico de música e no ano seguinte colabora em A CigarraO Echo e continua em A Gazeta. Trabalha assiduamente na revista paulista Papel e Tinta em 1920. Nessa época frequenta o estúdio do escultor Victor Brecheret (1894 - 1955), de quem compra um exemplar do bronze Cabeça de Cristo. Em 1921, escreve para o Jornal do Comércio a série Mestres do Passado, contra o parnasianismo e colabora com a revista Klaxon, em 1922. Integra o Grupo dos Cinco com Tarsila do Amaral (1886 - 1973), Anita Malfatti, Oswald de Andrade e Menotti del Picchia (1892 - 1988).

Um dos idealizadores da Semana de Arte Moderna, em fevereiro de 1922, na ocasião do evento lê seus poemas no palco do Theatro Municipal de São Paulo e é vaiado. Nesse ano, lança seu segundo livro, Paulicéia Desvairada, um marco na literatura moderna brasileira. Leciona história da música e da estética no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo. Em 1923, compra uma câmera fotográfica Kodak e exerce a atividade de fotógrafo até 1931. Realiza com Olívia Guedes Penteado (1872 - 1934), Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral e outros, uma viagem de estudos às cidades históricas mineiras com o objetivo de mostrar o interior do país ao poeta franco-suíço Blaise Cendrars (1887 - 1961), em 1924.

O livro de ensaios A Escrava que Não É Isaura, de 1925, discute algumas tendências da poesia modernista, e firma seu autor como um dos principais teóricos do movimento modernista. Em 1927 viaja pela região amazónica, e, no ano seguinte, pelo Nordeste brasileiro, registando em fotos as paisagens, a arquitetura e a população dos locais visitados. Também fotografa paisagens de São Paulo, em especial da região central, e cenas na fazenda de Oswald e Tarsila.


Lasar Segall, Mário de Andrade, 1927.


Mário de Andrade lança o romance Amar, Verbo Intransitivo em 1927. Passa a escrever para o Diário Nacional, órgão do Partido Democrático - PD, ao qual se filia. Nesse jornal publica a maior parte de sua produção, entre críticas, contos, crónicas e poemas, até 1932. Em 1928, lança Macunaíma, Herói sem Caráter e Ensaio Sobre Música Brasileira; em 1929, Compêndio da História da Música; em 1930, Modinhas Imperiais e, em 1933,  Música, Doce Música. Sempre interessado pela música erudita e popular, busca promover pesquisas de nacionalização da música brasileira.

De 1933 a 1935, é crítico do Diário de São Paulo. Em 1935, funda, com Paulo Duarte, o Departamento Municipal de Cultura de São Paulo, do qual se torna o primeiro diretor. Nesse cargo, cria a Discoteca Pública, hoje Discoteca Oneyda Alvarenga. No ano seguinte, participa da elaboração do anteprojeto da criação do Serviço do Património Histórico e Artístico Nacional - Sphan. Em 1937, como diretor do Departamento, convida o casal Lévi-Strauss para ministrar um curso de etnografia. Cria, com Dina Lévi-Strauss, a Sociedade de Etnografia e Folclore, e se torna seu primeiro presidente. Organiza o Congresso de Língua Nacional Cantada. É eleito membro da Academia Paulista de Letras.

De fevereiro a julho de 1938, envia um grupo de pesquisadores ao Norte e ao Nordeste do Brasil. Batizada de Missão de Pesquisas Folclóricas, a expedição por ele idealizada grava, fotografa, filma e estuda uma grande diversidade de melodias cantadas no trabalho, em festas e rezas. Em 1938, transfere-se para o Rio de Janeiro, onde dirige o Instituto de Artes da Universidade do Distrito Federal, além de ocupar a cátedra de história e filosofia da arte. Retorna a São Paulo em 1941. Como técnico da seção paulista do Sphan, viaja por todo o Estado realizando pesquisas.

Com outros intelectuais, contrários ao regime ditatorial do Estado Novo, funda em 1942 a Associação Brasileira de Escritores - Abre, entidade que luta pela redemocratização do país. Colabora no Diário de S. Paulo e na Folha de S. Paulo. No salão de conferências da Biblioteca do Ministério das Relações Exteriores ministra a célebre conferência "O movimento modernista", incluída no livro Aspectos da Literatura Brasileira, de 1943.
Publica O Baile das Quatro Artes, com comentários de crítica literária e artística, em 1943 e no ano seguinte, escreve Lira paulistana, livro de poesias publicado postumamente.



Candido Portinari, Mário de Andrade, 1935.


Análise

Mário de Andrade é uma personalidade de múltiplos talentos e de singular influência no meio cultural brasileiro do século XX. Sua atuação nos campos da poesia, romance, crónica, jornalismo, música, folclore e crítica guia-se sempre pela busca de aspetos definidores da identidade nacional e pela valorização das manifestações artísticas e culturais do Brasil.

Suas ideias e posições expressas em livros e artigos e também nas inúmeras cartas que escreve para amigos e colaboradores contribuem decisivamente para o desencadeamento de novos movimentos e tendências artísticos e literários. A qualidade de sua poesia e a perspicácia e veemência dos questionamentos que "sacudiram" o meio cultural brasileiro de seu tempo fazem dele um dos principais escritores e intelectuais do país.

Na série Mestres do Passado, publicada em 1921 no Jornal do Commercio, pode-se perceber uma releitura crítica do parnasianismo e a defesa de uma nova orientação para a literatura, característica do modernismo. O livro Paulicéia Desvairada, de 1922, revela o contacto com as vanguardas europeias, como o futurismo, o expressionismo e o dadaísmo. No Prefácio Interessantíssimo, ele expressa a complexa tarefa de conjugar a orientação moderna com a realidade local, a "língua brasileira". Anunciando o "desvarismo" - a incongruência, a extravagância, a excentricidade -, firma sua resistência em relação às doutrinas artísticas: "Em arte: escola = imbecilidade de muitos para a vaidade de um só".

Mário de Andrade publica, em 1925, o famoso ensaio A Escrava que não É Isaura, no qual aprofunda as ideias esboçadas no Prefácio Interessantíssimo, e propõe o "primitivismo" na poesia - a ênfase na expressividade e na inspiração, a busca da síntese e da espontaneidade, obtidas tecnicamente pelo verso livre.

Sua relação com pintores modernistas é estreita, por vezes íntima. Pode-se dizer que ele é o maior responsável pela divulgação da produção artística do modernismo e pela formulação de uma pauta a ser seguida pelos artistas, orientando temáticas e linguagens. Sua avaliação do movimento modernista, nas décadas de 1920 e 1930, é entusiasmada e, até exagerada, explicada, em parte, pelo objetivo de promover um movimento renovador das artes, de reforçar sua campanha em prol de uma arte nacional e moderna e, em parte, pela amizade, intimidade e admiração que nutria pelos artistas.

Para Mário, é preciso que a arte e a literatura brasileira realizem um mergulho na realidade do país. É esse o caminho anunciado por ele e Oswald de Andrade e seguido por muitos. Esse "abrasileiramento", contudo, não deve recair no regionalismo.

De todos os artistas brasileiros a respeito dos quais escreve, Candido Portinari (1903 - 1962) é sem dúvida o mais decisivo para o pensamento e sua atuação como crítico de arte. Sua obra representa para Mário um exemplo para a defesa de suas posições no campo da crítica. Nela ele enxerga as principais qualidades que aprecia na produção artística: o apreço aos valores plásticos, ao caráter artesanal da pintura, o interesse pelo assunto nacional, a capacidade de traduzir a realidade humana do Brasil, o compromisso com o social. Admirador e amigo de Portinari, Mário procura elevá-lo ao posto de maior artista nacional de seu tempo, o que por vezes lhe custa uma visão demasiado condescendente em relação a sua produção, quando ele apresenta trabalhos marcadamente realistas ou regionalistas.

Em 1931 publica uma análise sobre a exposição de Portinari no Salão Modernista, e, em 1938 e 1940, escreve artigos sobre o artista para a Revista Académica. Como afirma o historiador Tadeu Chiarelli, Mário de Andrade enxerga na pintura de Portinari o mesmo projeto a que ele próprio se dedica no campo da literatura e da crítica: produzir uma arte nacional e moderna, fundar uma plástica brasileira, tal como ele procura, desde os anos 1920, fundar uma linguagem brasileira.

No vigésimo aniversário da Semana de Arte Moderna, por solicitação do escritor Edgard Cavalheiro (1911 - 1958), escreve um texto sobre sua participação no movimento. Esse texto dá origem a uma célebre conferência, O Movimento Modernista, proferida no Itamaraty em abril de 1942. No evento, Mário recapitula a história do modernismo sob perspetiva bastante pessoal, retoma momentos de sua trajetória literária, em tom autobiográfico, revendo personagens e situações, mas também realiza uma avaliação do modernismo, dividindo-o em fases e caracterizando cada uma delas.

Em diversos trechos da conferência, pode-se apreender seu entendimento a respeito do que consiste o movimento modernista, como neste que se segue:

"Embora se integrassem nele figuras e grupos preocupados de construir, o espírito modernista que avassalou o Brasil, que deu o sentido histórico da Inteligência nacional desse período, foi destruidor. Mas essa destruição não apenas continha todos os germes da atualidade, como era uma convulsão profundíssima da realidade brasileira. O que caracteriza esta realidade que o movimento modernista impôs é, a meu ver a fusão de três princípios fundamentais: o direito permanente à pesquisa estética; a atualização da inteligência artística brasileira; e a estabilização de uma consciência criadora nacional. Nada disso representa exatamente uma inovação e de tudo encontramos exemplos na história artística do país. A novidade fundamental, imposta pelo movimento, foi a conjugação dessas três normas num todo orgânico da consciência coletiva".

Movimento destruidor, prenunciador, preparador, criador de um estado de espírito novo, impulsionador da remodelação da inteligência nacional - assim Mário qualifica o modernismo. E os modernistas protagonistas desse processo, como Anita Malfatti, Victor Brecheret e ele próprio, servem como "altifalantes de uma força universal e nacional" que os extrapola.

Em 1965, é lançado, pela Editora Martins, Aspetos das Artes Plásticas no Brasil, obra composta de quatro estudos de Mário de Andrade: O Aleijadinho, publicado originalmente em 1935, Lasar Segall, produzido para o catálogo da exposição do artista realizada no Rio de Janeiro em 1943, Do Desenho e a Capela de Santo António, divulgados pela primeira vez, na Revista do Sphan em 1937.

Mário de Andrade é, sabidamente, leitor de diversas revistas de arte e cultura europeias. Entre 1920 e 1925, é assinante de L'Esprit Nouveau, que divulga conceitos e posições do Retorno à Ordem. Alguns de seus artigos, integrantes da coletânea de 1965, revelam a influência dessas ideias, provavelmente absorvidas pela leitura de alguns dos autores que colaboram na revista, como o pintor francês Amédée Ozenfant (1886 - 1966).

Seu ensaio crítico sobre Aleijadinho (1730 - 1814) contribui para consagrar o escultor como grande génio das artes nacionais. O mestre arquiteto e escultor é visto por Mário como artista genuinamente nacional e exemplo da complexa relação brasileira com a tradição artística europeia:

"O Brasil deu nele o seu maior engenho artístico, eu creio (...). Era, de todos, o único que se poderá dizer nacional, pela originalidade das suas soluções. Era já um produto da terra, e do homem vivendo nela, e era um inconsciente de outras existências melhores de além-mar: um aclimatado, na extensão psicológica do termo. Mas, engenho já nacional, era o maior boato-falso da nacionalidade, ao mesmo tempo que caracterizava toda a falsificação da nossa entidade civilizada, feita não de desenvolvimento interno, natural, que vai do centro para periferia e se torna excêntrica por expansão, mas de importações acomodatícias e irregulares, artificial, vinda do exterior. De facto, António Francisco Lisboa profetizava para a nacionalidade um génio plástico que os Almeida Juniores posteriores, tão raros! são insuficientes para confirmar".

Outro célebre texto de Mário sobre o universo artístico é O Artista e o Artesão, aula inaugural proferida em 1938 nos cursos de filosofia e história da arte na Universidade do Distrito Federal, publicado em Baile das Quatro Artes, de 1943. No texto ele tece considerações sobre as relações entre a criação artística e a técnica, as influências da esfera social e política na produção individual do artista, o embate entre o virtuosismo artístico e a arte social. Ele aproxima a arte e o artesanato, valorizando o apuro da técnica como maneira de reforçar a dimensão coletiva e artesanal da arte.

Mais uma paixão de Mário de Andrade é a música, a que dedica anos de estudo prático e de reflexão teórica. Ao longo da carreira, publica obras sobre música brasileira, e em todas elas se faz presente a valorização da música popular, expressão de identidade e originalidade nacionais. Estudioso do folclore e da cultura popular, em 1938, reúne uma equipa com o objetivo de registar e estudar músicas do Norte e Nordeste do Brasil. A Missão de Pesquisas Folclóricas, como é chamada a equipa, realiza registos sonoros, fotográficos e audiovisuais de diversas melodias, cantos e danças de homens e mulheres no trabalho, festas religiosas, momentos de reza e lazer.

Embora a maior parte de sua produção sobre arte brasileira seja formada por artigos e ensaios, ele escreve um importante estudo monográfico sobre a vida e a obra de frei Jesuíno do Monte Carmelo (1764 - 1819), pintor, entalhador, arquiteto e músico setecentista. Feito entre 1941 e 1945 por encomenda do Serviço do Património Histórico e Artístico Nacional - Sphan, que o publica postumamente, o estudo, resultado de cuidadosa pesquisa histórica e biográfica, traz a análise do crítico sobre as pinturas e decorações das igrejas de Itu e da cidade São Paulo. Revela ainda aspetos de seu pensamento sobre a arte colonial brasileira, que, a seu ver, deveria ser considerada independentemente da arte europeia e da arte erudita brasileira e observada em suas características plásticas originais.

Mário de Andrade é um grande colecionador, de pinturas, esculturas, gravuras, mas também de obras de arte popular, objetos de culto católico ou de rituais afro-brasileiros, artefatos indígenas. De sua coleção de artes visuais - hoje no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo - IEB/USP, fazem parte, entre diversas outras obras, vários retratos presenteados por nomes importantes do modernismo, como Anita Malfatti, Tarsila do Amaral, Segall e Portinari. No IEB/USP está sua biblioteca, formada por livros, revistas e partituras que abordam temas como modernismo brasileiro, vanguardas europeias, música, folclore e etnografia. Destacam-se na coleção as principais revistas modernistas editadas no início do século XX e muitos livros de arte.

Um capítulo à parte de sua produção literária é constituído pela volumosa correspondência mantida com Manuel Bandeira (1886 - 1968), Carlos Drummond de Andrade (1902 - 1987), Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral, Fernando Sabino (1923 - 2004), Augusto Meyer (1902 - 1970) e outros. (Daqui)


"Retrato do Herói" - Poema de José Carlos Ary dos Santos


Virginie Demont-Breton, Young fisherman (Jeune Pêcheur regardant la mer)


Retrato do Herói



Herói é quem num muro branco inscreve
O fogo da palavra que o liberta:
Sangue do homem novo que diz povo
e morre devagar de morte certa.

Homem é quem anónimo por leve
lhe ser o nome próprio traz aberta
a alma à fome fechado o corpo ao breve
instante em que a denúncia fica alerta.

Herói é quem morrendo perfilado
Não é santo nem mártir nem soldado
Mas apenas por último indefeso.

Homem é quem tombando apavorado
dá o sangue ao futuro e fica ileso
pois lutando apagado morre aceso.


Ary dos Santos
(1937-1984)


sábado, 20 de junho de 2020

"Cantiga de acordar mulher" - Poema de Geir Nuffer Campos



Ernst Ludwig Kirchner (1880-1938), Two Women, 1911-1912/1922


Cantiga de acordar mulher



Vozes da esquerda, surdas,
e vozes da direita, afinadíssimas,
hão de louvar-te a arte
de ser mulher:
mansa como uma ovelha,
jeitosa como uma gata de luxo,
dócil e generosa como uma árvore
a se multiplicar em sombra e frutos,
como uma estátua impassível,
hábil de acordo com as conveniências,
e acima disso
crente em ser esse o teu ideal de vida…
Acorda: pois foi essa
a sorte que escolheste?
in 'Cantiga de Acordar Mulher', 1964



Ernst Ludwig Kirchner, Head of the Painter
 (Self-portrait), 1925


"A paixão quer que tudo seja eterno, mas a natureza impõe que tudo acabe."

(Denis Diderot)


"Primavera" - Poema de Sophia de Mello Breyner Andresen


Philip Richard Morris, A young girl collecting blackberries from a hedgerow



Primavera


Primavera que Maio viu passar
Num bosque de bailados e segredos
Embalando no anseio dos teus dedos
Aquela misteriosa maravilha
Que à transparência das paisagens brilha.


Sophia de Mello Breyner Andresen



sexta-feira, 19 de junho de 2020

"A Noite" - Poema de Cesare Pavese


 
Peleg Franklin Brownell (Landscape painter, draughtsman and teacher active in Canada,
1857 - 1946), Homework, c. 1904.



A Noite 


Mas a noite ventosa, a noite límpida
que a lembrança somente aflorava, está longe,
é uma lembrança. Perdura uma calma de espanto,
feita também ela de folhas e de nada. Desse tempo
mais distante que as recordações apenas resta
um vago recordar.

As vezes volta à luz do dia,
na imóvel luz dos dias de Verão,
aquele espanto remoto.

Pela janela vazia
o menino olhava a noite nas colinas
frescas e negras, e espantava-se de as ver assim tão juntas:
vaga e límpida imobilidade. Entre a folhagem
que sussurrava na escuridão, apareciam as colinas
onde todas as coisas do dia, as ladeiras
e as árvores e os vinhedos, eram nítidas e mortas
e a vida era outra, de vento, de céu,
e de folhas e de coisa nenhuma.

Às vezes regressa
na imóvel calma do dia a recordação
daquele viver absorto, na luz assombrada. 


Cesare Pavese, in 'Trabalhar Cansa'
Tradução de Carlos Leite


Peleg Franklin Brownell, Lamplight, 1892


"O que importa não é passear de noite mas deixar a noite passear-se em nós."

Mia Couto, Vinte e Zinco


Peleg Franklin Brownell,  Homework, 1892

"As ideias, todos sabemos, não nascem na cabeça das pessoas. Começam num qualquer lado, são fumos soltos, tresvairados, rodando à procura de uma devida mente."

Mia Couto
, Terra Sonâmbula 

quinta-feira, 18 de junho de 2020

"Uma gargalhada de rapariga soa do ar da estrada" - Poema de Alberto Caeiro


Philip Richard Morris (1836-1902), The Arrival of Spring



Uma Gargalhada de Rapariga


Uma gargalhada de rapariga soa do ar da estrada.
Riu do que disse quem não vejo.
Lembro-me já que ouvi.
Mas se me falarem agora de uma gargalhada de rapariga da estrada,
Direi: não, os montes, as terras ao sol, o sol, a casa aqui,
E eu que só oiço o ruído calado do sangue que há na minha vida dos dois lados da cabeça. 

12-4-1919

Alberto Caeiro, in "Poemas Inconjuntos"
Heterónimo de Fernando Pessoa


quarta-feira, 17 de junho de 2020

"A Ceifeira" - Poema de Luís Augusto Palmeirim


Filippo Palizzi (Italian painter, 1818 – 1899), "Florence", 1872 



A Ceifeira


Há quem diga por inveja
Que és feia por ser trigueira;
Dizem as damas da corte,
Deixai-as dizer ceifeira.

Quisera que elas te vissem
Feita senhora festeira,
Que me dissessem depois,
Se eras ou não feiticeira!

Que vissem com que requebros
Tu vais a mercar na feira,
Que vissem como inocente
Vais depois pular na eira.

Mariquinhas de olhos pretos,
Mimosa — gentil ceifeira,
És bela por caprichosa,
És linda por ser trigueira.

Hei de ir à festa e de longe
Ver-te na dança ligeira,
A ver se coras na dança,
A ver se tens quem te queira.

Hei de ir depois alcançar-te
No atalho, mesmo à beira,
E dizer-te que na dança
Eras gentil, a primeira.

A dizer-te que eras linda
Como aurora prazenteira;
A contar-te que na festa
Eras só, sem companheira.

A contar-te que não perdes
Por te chamarem trigueira,
A ti, rainha da festa
Mimosa - gentil ceifeira.

A ti que eu vi assentada
Ontem à noite à lareira,
Crendo deveras num conto,
Num conto de feiticeira.

A ti que vergas a cinta,
Como se verga a palmeira,
Que tens escrita no rosto
Inspiração verdadeira.

A ti que dormes com o Cristo
Pendente da cabeceira;
Que só choraste na vida,
Uma vez — por brincadeira!

A quem chamam, por inveja,
A Mariquinhas trigueira;
Porque sabem que és de todas
A mais mimosa ceifeira!

Porque tens nos olhos negros
O condão de dar cegueira,
A quem os fita de perto,
Com atenção verdadeira.

Só te falta alva capela,
Das flores da laranjeira,
Que a todos diga que a noiva
Era ainda há pouco a festeira.

Que nos dê a triste nova,
Que pela vez derradeira,
Vemos de perto tão perto
Aquela fronte fagueira.

A quem as mais, por despique,
Vendo a formosa ceifeira,
Diziam — coitada dela
Sendo assim morre solteira!


Luís Augusto Palmeirim
(1825-1893)



Filippo Palizzi, Beyond the Wall, 1870


Poesia mínima

Pintou estrelas no muro
e teve o céu
ao alcance das mãos.


Helena Kolody
(Haicai)