terça-feira, 3 de dezembro de 2024

"No comboio descendente" - Poema de Fernando Pessoa



Gino Severini
(Italian painter and a leading member of the Futurist movement, 1883–1966), 
Red Cross Train Passing a Village, 1915.



No comboio descendente


No comboio descendente
Vinha tudo à gargalhada,
Uns por verem rir os outros
E os outros sem ser por nada –
No comboio descendente
De Queluz à Cruz Quebrada...

No comboio descendente
Vinham todos à janela,
Uns calados para os outros
E os outros a dar-lhes trela –
No comboio descendente
Da Cruz Quebrada a Palmela...

No comboio descendente
Mas que grande reinação!
Uns dormindo, outros com sono,
E os outros nem sim nem não –
No comboio descendente
De Palmela a Portimão...

s.d.

Fernando Pessoa
, de Poesia do Eu
Ed. Assírio e Alvim
 
 
Obra Essencial de Fernando Pessoa - "Poesia do Eu"
Edição/reimpressão: 09-2008
Editor: Assírio & Alvim 



SINOPSE 

Designar como «essencial» esta coletânea de obras pessoanas pode parecer, à primeira vista, um abuso, já que não se trata de um único volume, nem mesmo de três volumes, mas sim de sete. Acontece que a multifacetada obra de Pessoa — escrita sob mais de 70 nomes e em três línguas, abrangendo um apreciável número de géneros, estilos e temas — não tem uma essência una e linear. Ramifica-se ou, como diria o poeta de muitos rostos, pluraliza-se. Se, por «essencial», queremos dizer «indispensável», então os três volumes consagrados à poesia correspondem a esse conceito. Eles contêm toda a grande poesia de Pessoa, quer ortónima (assinada por si próprio) quer heterónima (assinada por «outros eus»), em português e em inglês, bem como os melhores exemplos dos seus versos em francês.

A palavra «essencial» assume um significado diferente quando aplicada aos quatro volumes que dedicamos à prosa. Nesta parte da obra pessoana, há certas áreas — ficção, teatro, crítica literária, textos filosóficos, escritos sobre o Neopaganismo e as tradições esotéricas, bem como outras — que são pouco visíveis na presente edição. Recorde-se que os mais de 25 000 papéis originais deixados por Pessoa correspondem, na sua maioria, a textos em prosa, muitos dos quais, pelos assuntos abordados e o seu carácter frequentemente lacunar e inacabado, têm reduzido interesse para o grande público a que esta edição se destina. Além disso, ainda será necessário um apurado trabalho de investigação e transcrição para que algumas vertentes da prosa pessoana possam ser publicadas com o devido rigor.

Os textos de prosa aqui reunidos, ainda que não sejam representativos da totalidade existente, pretendem ser, mesmo assim, «essenciais» num certo sentido, na medida em que tocam muito de perto o seu autor — ou porque gostou suficientemente deles para os acabar e publicar (Prosa Publicada em Vida — um volume que abrange, aliás, numerosas facetas da sua obra em prosa), ou porque o revelam na sua intimidade (Prosas Íntimas e de Autoconhecimento) e na sua relação com os outros (Cartas). O primeiro volume, o Livro do Desassossego, que em boa verdade poderia ser considerado poesia, mostra Fernando Pessoa na sua faceta mais íntima e também mais universal, na sua verdadeira essência e na sua dispersão não menos verdadeira. É o não-livro do não-ser, que existiu como ninguém.

A presente Obra, com todos os seus limites, procura demonstrar a essencialidade de Fernando Pessoa não só para a literatura do século XX, mas também para a nossa cultura, atual e futura. (daqui)

segunda-feira, 2 de dezembro de 2024

"Não gosto tanto de livros" - Poema de Adília Lopes

 

Camille Engel (American realist painter, b. 1955)
 

Não gosto tanto de livros


​Não gosto tanto
de livros
como Mallarmé
parece que gostava
eu não sou um livro
e quando me dizem
gosto muito dos seus livros
gostava de poder dizer
como o poeta Cesariny
olha
eu gostava
é que tu gostasses de mim
os livros não são feitos
de carne e osso
e quando tenho
vontade de chorar
abrir um livro
não me chega
preciso de um abraço
mas graças a Deus
o mundo não é um livro
e o acaso não existe
no entanto gosto muito
de livros
e acredito na Ressurreição
dos livros
e acredito que no Céu
haja bibliotecas
e se possa ler e escrever.


Adília Lopes, in 'Obra'.
Mariposa Azual, Lisboa, 2000.


domingo, 1 de dezembro de 2024

"Dama" - Soneto de Stéphane Mallarmé


Paul de La Boulaye (French painter, 1849–1926), Pretty in Pink, s.d.
 
 
 
Dama


Dama sem tanto ardor embora ainda flamante
A rosa que cruel ou lacerada e lassa
Se deveste do alvor que a púrpura deslaça
Para em sua carne ouvir o choro do diamante.

Sim, sem crises de orvalho antes em doce alento
Nem brisa o fragor do céu leve ao fracasso
Com ciúme de criar não sei bem qual espaço
No simples dia o dia real do sentimento.

Não te ocorre, talvez, que a cada ano que passa
Quando em tua fronte se alça o encanto ressurreto
Basta-me um dom qualquer natural de tua graça,

Como na alcova o cintilar de um leque inquieto
A reviver do pouco de emoção que grassa
Todo o nosso nativo e monótono afeto.

1887

Stéphane Mallarmé
, no livro "Poesia da recusa".
Organização e tradução Augusto de Campos.
São Paulo: Editora Perspectiva, 2006.
 
 
Retrato de Stéphane Mallarmé pintado por Édouard Manet.


Stéphane Mallarmé, poeta francês e mentor do movimento do simbolismo na poesia, nasceu a 18 de março de 1842 em Paris e morreu em Valvins a 9 de setembro de 1898.
Órfão de mãe desde os cinco anos, fez os estudos secundários num colégio interno. Depois de concluídos, ingressou na administração pública, atividade que em breve abandonaria. Cortou com os laços familiares e partiu para Inglaterra, em 1862. De regresso a França obteve um certificado que o habilitava a lecionar a língua inglesa. Foi professor, primeiro em escolas de província e mais tarde em Paris até à data da reforma, 1894.
A par do ensino manteve uma atividade literária. A partir de 1880 começaram em sua casa as receções literárias que contribuíram para criar nos simbolistas uma forte consciência de "escola". 
Redigiu a revista feminina la Dernière Mode, fez traduções e organizou o livro didático les Mots Anglais
Estas atividades completam o quadro de uma vida exteriormente calma e vulgar, como chefe de família e professor. Esta aparente reserva e discrição contrasta com a postura de poeta "maldito", nome atribuído por Verlaine a Mallarmé.
Sob esta superfície tranquila esconde-se uma grande riqueza e complexidade. Uma grave crise de juventude avivou no poeta a consciência da situação precária do homem e do mundo. A partir desta altura tenta conjurar este destino trágico pelo poder da palavra. A leitura de Baudelaire impressionou profundamente Mallarmé, ao propor-lhe uma nova expressão poética, mais capaz de captar a essência das coisas. 
Os primeiros poemas foram influenciados por Charles Baudelaire. Mallarmé era um intelectual e a sua determinação em analisar a natureza do mundo e a realidade reflete-se nos dois poemas dramáticos que começou a escrever em 1864 e 1865 respetivamente, Hérodiade e l'Après-midi d'un faune
Mallarmé é considerado, com Paul Verlaine, o iniciador do Simbolismo. Em 1868 chegou à conclusão que embora não haja nada para além da realidade, dentro do vazio criado por essa conceção existem "as formas perfeitas". Devotou a sua vida a tentar colocar em prática as suas teorias naquilo a que ele chamou a sua grande obra, que nunca chegou a concluir, le Livre
Entre as elegias escritas, várias foram concebidas para Charles Baudelaire, Edgar Allan Poe, Richard Wagner, Théophile Gautier e Paul Verlaine, autores com quem Mallarmé se tinha comprometido a escrever. Todos concordavam com o tema elegíaco da mortalidade do homem e da imortalidade da obra. Para além destes poemas, escreveu outros que contrariavam a sua obsessão pelo mundo perfeito, embora permanecesse fiel ao estilo linguístico. 
Em 1883 Verlaine publicou uma série de artigos de Mallarmé intitulados les poètes maudits
Stéphane Mallarmé foi alvo de um sumptuoso elogio por parte de J. K. Huysmans, ao escrever o romance A rebours, elogio que o levou a ser reconhecido como um eminente poeta francês. 
A partir desta altura foi visitado por conhecidos escritores, pintores e músicos da época. Este período fez diminuir o seu desejo de se refugiar num mundo ideal e escreve o poema Un coup de dés jamais n'abolira le hasard, um trabalho que apareceu em 1897, um ano antes da sua morte. 
Embora breve e inacabada, a sua obra apresenta-se hoje como uma das que determinaram a evolução da literatura no século XX. (daqui)