terça-feira, 31 de dezembro de 2024

"Poema do Amor" - António Gedeão



João Alves de Sá (Pintor aguarelista português, 1878–1972), Vila Nova de Gaia, 1926.
 
 

Poema do Amor


Este é o poema do amor.

Do amor tal qual se fala, do amor sem mestre.
Do amor.
Do amor.
Do amor.

Este é o poema do amor.

Do amor das fachadas dos prédios e dos recipientes do lixo.
Do amor das galinhas, dos gatos e dos cães, e de toda a espécie de bicho.
Do amor.
Do amor.
Do amor.

Este é o poema do amor.

Do amor das soleiras das portas
e das varandas que estão por cima dos números das portas
com begónias e avencas plantadas em tachos e terrinas.
Do amor das janelas sem cortinas
ou de cortinas sujas e tortas.

Este é o poema do amor.

Do amor das pedras brancas do passeio
com pedrinhas pretas a enfeitá-lo para os olhos se entreterem,
e as ervas teimosas a nascerem de permeio
e os homens de cócoras a raparem-nas e elas por outro lado a crescerem.
Do amor das cadeiras cá fora em redor das mesas
com as chávenas de café em cima e o toldo de riscas encarnadas.
Do amor das lojas abertas, com muitos fregueses e freguesas
a entrarem e a saírem, e as pessoas todas muito malcriadas.

Este é o poema do amor.

Do amor do sol e do luar,
do frio e do calor,
das árvores e do mar,
da brisa e da tormenta,
da chuva violenta,
da luz e da cor.
Do amor do ar que circula
e varre os caminhos
e faz remoinhos
e bate no rosto e fere e estimula.
Do amor de ser distraído e pisar as pessoas graves,
do amor de amar sem lei nem compromisso,
do amor de olhar de lado como fazem as aves,
do amor de ir, e voltar, e tornar a ir, e ninguém ter nada com isso,
Do amor de tudo quanto é livre, de tudo quanto mexe e esbraceja,
que salta, que voa, que vibra e lateja.
Das fitas ao vento,
dos barcos pintados,
das frutas, dos cromos, das caixas de tintas, dos supermercados.

Este é o poema do amor.

O poema que o poeta propositadamente escreveu
só para falar de amor,
de amor.
de amor.
de amor.
Para que um dia, quando o Cérebro Eletrónico
contar as palavras que o poeta escreveu,
tantos que,
tantos se,
tantos lhe,
tantos tu,
tantos ela, tantos eu,
conclua que a palavra que o poeta mais vezes escreveu
foi amor,
amor,
amor.

Este é o poema do amor.


António Gedeão
(1906–1997), in Obra Completa
Relógio D'Água Editores
 
 
João Alves de Sá, Vista da Sé do Porto, 1926.
 

"O Porto não é em rigor uma cidade: é uma família. Quando algum mal o acomete, todos o sentem com a mesma intensidade; quando desejam alguma coisa, todos a desejam ao mesmo tempo. Os portuenses são tão ciosos da integridade da sua cidade, como os portugueses em geral da integridade da nação."  João Chagas

 
João Chagas

João Pinheiro Chagas foi um político, diplomata, escritor e jornalista nascido em 1863, no Rio de Janeiro, filho de emigrantes portugueses no Brasil, e falecido em 1925, no Estoril, em Portugal. Fez os seus estudos em Lisboa, e iniciou a sua carreira profissional no jornalismo, no jornal Primeiro de Janeiro, no Porto.
Desiludido com a questão do Ultimato inglês, tornou-se grande opositor da monarquia, que passou a criticar vivamente na imprensa. Em 1892 fundou o seu próprio jornal, República Portuguesa, que serviu como veículo de ataque e desmoralização da Monarquia.
Esteve envolvido em várias conspirações com vista ao derrube do regime. Foi condenado por implicação no 31 de janeiro de 1981, esteve degredado em Angola e depois andou foragido. Uma vez instaurada a República, foi embaixador em França, com intermitências, entre 1910 e 1923; chefe de Governo em 1911; e representante do País na Conferência de Paz e junto da Sociedade das Nações. Foi vítima de um atentado em 1915, de que resultou a perda de um olho.
 (daqui)
 

João Alves de Sá, Pastor com rebanho de ovelhas na aldeia, 1917.
 
 
João Alves de Sá, Lavadeiras, 1941, Coleção particular.

[João Alves de Sá (1878–1972) era licenciado em Direito e visconde de Alves de Sá, tendo nas últimas décadas de vida se radicado no Algueirão. 
Aguarelista contemporâneo, foi discípulo de Manuel Maria de Macedo (Manuel Maria de Macedo Pereira Coutinho Vasques da Cunha Portugal e Menezes, 1839-1915), dedicando-se também à cerâmica e, muito especialmente, à azulejaria, tendo dirigido essa secção na Fábrica de Cerâmica da Viúva Lamego
Foi galardoado com altas distinções como a medalha de honra em aguarela da Sociedade Nacional de Belas Artes e o 1º prémio Roque Gameiro (1947), do Secretariado Nacional de Informação, tendo participado em inúmeras exposições e dirigido vários projetos como o do pavilhão de Portugal na feira internacional de Sevilha, em 1929 e a ampliação da Câmara Municipal de Cascais, para cuja fachada elaborou os novos painéis de azulejos.] (daqui)
 

segunda-feira, 30 de dezembro de 2024

"Passo, na noite da rua suburbana" - Poema de Álvaro de Campos

 


António Neves
 (Artista plástico português, n. 1963), Vista da Basílica da Estrela, Lisboa.


Passo, na noite da rua suburbana


Passo, na noite da rua suburbana,
Regresso da conferência com peritos como eu.
Regresso só, e poeta agora, sem perícia nem engenharia,
Humano até ao som dos meus sapatos solitários no princípio da noite
Onde ao longe a porta da tenda tardia se encobre com o último taipal.
Ah, o som do jantar nas casas felizes!
Passo, e os meus ouvidos vêem para dentro das casas.
O meu exílio natural enternece-se no escuro
Da aia meu lar, da rua meu ser, da rua meu sangue.
Ser a criança economicamente garantida,
Com a cama fofa e o sono da infância e a criada!
O meu coração sem privilégio!
Minha sensibilidade da exclusão!
Minha mágoa extrema de ser eu!

Quem fez lenha de todo o berço da minha infância?
Quem fez trapos de limpar o chão dos meus lençóis de menino?
Quem expôs por cima das cascas e do cotão das casas
Nos caixotes de lixo do mundo
As rendas daquela camisa que usei para me batizarem?
Quem me vendeu ao Destino?
Quem me trocou por mim?
Venho de falar precisamente em circunstâncias positivas.
Pus pontos concretos, como um numerador automático.
Tive razão como uma balança.
Disse como sabia.

Agora, a caminho do carro elétrico do término de onde se volta à cidade,
Passo, bandido, metafísico, sob a luz dos candeeiros afastados
E na sombra entre os dois candeeiros afastados tenho vontade de não seguir.
Mas apanharei o elétrico.
Soará duas vezes a campainha lá do fim invisível da correia puxada
Pelas mãos de dedos grossos do condutor por barbear.
Apanharei o elétrico.
Ai de mim; apesar de tudo sempre apanhei o elétrico —
Sempre, sempre, sempre...
Voltei sempre à cidade,
Voltei sempre à cidade, depois de especulações e desvios,
Voltei sempre com vontade de jantar.
Mas nunca jantei o jantar que soa atrás de persianas
Das casas felizes dos arredores por onde se volta ao elétrico,
Das casas conjugais da normalidade da vida!
Pago o bilhete através dos interstícios,
E o condutor passa por mim como se eu fosse a Crítica da Razão Pura...
Paguei o bilhete. Cumpri o dever. Sou vulgar.
E tudo isto são coisas que nem o suicídio cura. 

6-1-1930

Álvaro de Campos, Livro de Versos. Fernando Pessoa
(Edição crítica, introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes.)
 Lisboa: Estampa, 1993. - 117.

domingo, 29 de dezembro de 2024

"Aspiração" - Poema de Alberto de Oliveira


Kurt Boiger (Pintor alemão, radicado no Brasil, 1909–1974), Paisagem paranaense, 1948.


Aspiração

 
Ser palmeira! existir num píncaro azulado,
Vendo as nuvens mais perto e as estrelas em bando;
Dar ao sopro do mar o seio perfumado,
Ora os leques abrindo, ora os leques fechando;

Só de meu cimo, só de meu trono, os rumores
Do dia ouvir, nascendo o primeiro arrebol,
E no azul dialogar com o espírito das flores,
Que invisível ascende e vai falar ao sol;

Sentir romper do vale e a meus pés, rumorosa,
Dilatar-se e cantar a alma sonora e quente
Das árvores, que em flor abre a manhã cheirosa,
Dos rios, onde luz todo o esplendor do Oriente;

E juntando a essa voz o glorioso murmúrio
De minha fronde e abrindo ao largo espaço os véus,
Ir com ela através do horizonte purpúreo
E penetrar nos céus;

Ser palmeira, depois de homem ter sido! est’alma
Que vibra em mim, sentir que novamente vibra,
E eu a espalmo a tremer nas folhas, palma a palma,
E a distendo, a subir num caule, fibra a fibra;

E à noite, enquanto o luar sobre os meus leques treme,
E estranho sentimento, ou pena ou mágoa ou dó,
Tudo tem e, na sombra, ora ou soluça ou geme,
E, como um pavilhão, velo lá em cima eu só,

Que bom dizer então bem alto ao firmamento
O que outrora jamais - homem - dizer não pude,
Da menor sensação ao máximo tormento
Quanto passa através minha existência rude!

E, esfolhando-me ao vento, indômita e selvagem,
Quando aos arrancos vem bufando o temporal,
- Poeta - bramir então à noturna bafagem
Meu canto triunfal!

E isto que aqui não digo então dizer: - que te amo,
Mãe natureza! mas de modo tal que o entendas,
Como entendes a voz do pássaro no ramo
E o eco que têm no oceano as borrascas tremendas;

E pedir que, ou no sol, a cuja luz referves,
Ou no verme do chão ou na flor que sorri,
Mais tarde, em qualquer tempo, a minh’alma conserves,
Para que eternamente eu me lembre de ti! 


Alberto de Oliveira, Versos e rimas, 1895.
 

sábado, 28 de dezembro de 2024

"A uma criança longe" - Poema de Rui Knopfli


George Goodwin Kilburne (British painter, 1839-1924), Mother and child, 1864.


 
A uma criança longe


Escrevo-te estas palavras
sabendo que as não lerás.
Entanto, o desejo de comunicar
é maior do que essa certeza.
Estamos irremediavelmente longe
de todos os contactos possíveis,
mas tu aconteceste,
encheste
o frio de nossas vidas
com o calor do teu sorriso
e a graça de teus gestos.
Breve,
como breve paira
a leve folha outoniça,
ou a humilde gota de chuva
que se desprende do beiral,
foi a tua presença entre nós.
Sua lembrança persistente
está no gosto amargo do sorriso,
marcada na fronte,
no brilho empalidecido de nossos olhos.
Intimamente, no mais íntimo
de mim
esquadrinhei todos os ângulos
do improvável. Nunca mais
nos encontraremos. Jamais.
A morte é isso, é acabar
simplesmente, não acontecer mais
jamais.
Nada me auxiliam as lágrimas
que me salgam a face
e o muito que tenho blasfemado
de borco, rente ao teu silêncio gelado.
Esta a lógica prosaica dos factos:
Continuamos a viver, dolorida
a consciência
da tua cada vez maior ausência.
E teu pequeno corpo moreno,
que nem todo o amor aquece,
é um palmo de ternura
que apodrece. 


Rui Knopfli
, Obra Poética, 2003
 

sexta-feira, 27 de dezembro de 2024

"Sonho de uma tarde de inverno" - Poema de João Guimarães Rosa



Karl Schmidt-Rottluff (1884–1976, German expressionist painter and printmaker;
he was one of the four founders of the artist group Die Brücke), Garden in Winter, 1969.



Sonho de uma tarde de inverno

 
Fiquei, longamente, a ler, no frio
da tarde quieta,
uma crónica do tempo merovíngio,
dos monges da Abadia de Cluny.
E um rádio gritante trouxe pela janela,
todo o banzo e o azougue de um samba sensual:
voo de cantáridas tontas
no hálito de incenso de uma nave,
fenestrada de ogivas e ventanas
e toda colorida de vitrais…
E no vago torpor do meu subsonho,
vi como trabalhava,
extasiado, na penumbra
parda de um meio inverno,
um monge
rendilhador de joias de ouro,
discípulo, talvez, de Santo Elói:
depois de modelar um cimo de coroa,
com Virtudes de auréola
em meio de anjos louros,
e de cinzelar,
na pasta de sol frio do rebordo
de um anel real,
uma rosácea, um gládio e um globo,
deixou errar seus dedos e seus sonhos,
e fez crescer, no jalde de um cibório,
o relevo de uma Vénus
com um Cupido ao solo…

E era tão bela a sua ideia de ouro,
e foi tão casto e cristão o beijo longo
que ele pôs na deusa,
que a ténue poeira flava do seu êxtase
de pronto se esvaiu.

E então, febril,
murmurando, constante, um exorcismo,
santificando traços, disfarçando os nus,
fez depressa da Vénus uma Virgem,
e do pagãozinho alado um menino Jesus.
Depois, sorrindo, o santo joalheiro
rezou, com outro beijo, a sua contrição…

E mil diabinhos crepitaram nas chamas,
rubros, rindo,
porque agora o seu beijo
fora ardente e pagão.
 
 
João Guimarães Rosa, do livro 'Magma'
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p. 95-96.

terça-feira, 24 de dezembro de 2024

"Que Natal?" - Poema de Eugénio Lisboa

 

 
Tarsila do Amaral (Pintora, desenhista, escultora, ilustradora, cronista e 
tradutora brasileira, 1886-1973), Natal, 1940.


Que Natal?



Natal não tive. Ou tive
só o Natal que tiveram
minhas filhas. Esse vive
como as coisas que viveram
mas já não são. Que Natal
tenho hoje? Que alegria,
que festa, neste final,
nesta descida sombria?
Diz Natal quem diz começo,
ou chegada, ou descoberta...
Onde estou, só há tropeço,
terra fria e deserta.

Se, no fim, recomeçasse!
Se, descendo, eu subisse!
Se, parando, não parasse!
Ressuscitar... quem o disse?


Eugénio Lisboa
 

segunda-feira, 23 de dezembro de 2024

"Dá-me as tuas mãos" - Poema de Vítor Matos e Sá

 


Natale Schiavoni
(Italian painter and engraver, 1777–1858),
Madonna con bambino, 1842.


Dá-me as tuas mãos 
 
 
As mãos foram feitas
para trazer o futuro,
encurtar a tristeza, encher
o que fica das mãos
de ontem - intervalos
(duros, fiéis) das palavras,
vocação urgente
da ternura, pensamento
entreaberto até
aos dedos longos
pelas coisas fora
pelos anos dentro. 


Vítor Matos e Sá
,
 in 'Companhia Violenta'
 

domingo, 22 de dezembro de 2024

"Paisagens de Inverno" - Poema de Camilo Pessanha

 

Edward Cucuel (American Impressionist artist, 1879–1954),
Girl with fur coat, Bad Tolz. Oil on canvas, 100 x 90 cm.



Paisagens de Inverno 

I

Ó meu coração, torna para trás.
Onde vais a correr, desatinado?
Meus olhos incendiados que o pecado
Queimou - o sol! Volvei, noites de paz.

Vergam da neve os olmos dos caminhos.
A cinza arrefeceu sobre o brasido.
Noites da serra, o casebre transido...
Ó meus olhos, cismai como os velhinhos.

Extintas primaveras evocai-as:
— Já vai florir o pomar das macieiras.
Hemos de enfeitar os chapéus de maias. —

Sossegai, esfriai, olhos febris.
— E hemos de ir cantar nas derradeiras
Ladainhas... Doces vozes senis...

II

Passou o Outono já, já torna o frio...
— Outono de seu riso magoado.
Álgido Inverno! Oblíquo o sol, gelado...
— O sol, e as águas límpidas do rio.

Águas claras do rio! Águas do rio,
Fugindo sob o meu olhar cansado,
Para onde me levais meu vão cuidado?
Aonde vais, meu coração vazio?

Ficai, cabelos dela, flutuando,
E, debaixo das águas fugidias,
Os seus olhos abertos e cismando...

Onde ides a correr, melancolias?
— E, refratadas, longamente ondeando,
As suas mãos translúcidas e frias...


Camilo Pessanha
, in 'Clepsidra'
 

sábado, 21 de dezembro de 2024

"Natal em família" - Poema de Afonso Duarte

 


Rosina Becker do Valle
(Pintora naïf brasileira, 1914–2000), Natividade, 1964.
 


Natal em família


Turvou-se de penumbra o dia cedo;
Nem o sol apertou no meu beiral!
Que longas horas de Jesus! Natal...
E o cepo a arder nas cinzas do brasedo.

E o lar da casa, os corações aos dobres,
É um painel a fogo em seu costume!
Que lindos versos bíblicos, ao lume,
Pelo doce Príncipe cristão dos pobres!

Fulvas figuras para esculpir em barro:
À luz da lenha, em rubro tom bizarro,
Sou em Presépio com meus pais e irmãos

E junto às brasas, os meus olhos postos
Nesta evangélica expressão de rostos,
Ergo em graças a Deus as minhas mãos.


Afonso Duarte, in "Natal... Natais"
 
 
Natal… Natais: Oito séculos de Poesia sobre o Natal
Antologia de Vasco Graça Moura, 378 págs.
 
 
RESUMO

Esta antologia reúne oito séculos de poesia em língua portuguesa sobre o Natal. 
Inicia-se com Afonso X, o Sábio, cujas Cantigas de Santa Maria foram escritas em galego-português no século XIII e termina com autores do século XXI. 
Inclui 202 textos de 130 poetas, tendo o organizador dado preferência aos autores do século XIX e do XX.
 “(…) A extrema variedade de formas e registos dentro da unidade temática considerada justifica se tenha lançado mão do título de um poema de Cabral Nascimento, «Natal... Natais», para designar o conjunto das peças aqui recolhidas”. 
São textos dos poetas como Gil Vicente, Ribeiro Chiado, Diogo Bernardes, António Ferreira, Frei Agostinho da Cruz, Abade de Jazente, Correia Garção, Bingre, Almeida Garrett, Herculano, João de Lemos, João de Deus, Guerra Junqueiro, António Feijó, Teixeira de Pascoaes, Jaime Cortesão, Fernando Pessoa, Vitorino Nemésio, José régio, Miguel Torga, Álvaro Feijó, Sophia de Mello Breyner, José Saramago, Mário Cesariny de Vasconcelos, Sebastião da Gama, Manuel alegre, Nuno Júdice, etc. 
 

"Cinco palavras cinco pedras" - Poema de Ruy Belo


Charles Frederic Ulrich (American Realist painter who spent most of his career in Germany, 
1858 –1908), In the Land of Promise, Castle Garden, 1884, National Gallery of Art.



Cinco palavras cinco pedras 


Antigamente escrevia poemas compridos
Hoje tenho quatro palavras para fazer um poema
São elas: desalento prostração desolação desânimo
E ainda me esquecia de uma: desistência
Ocorreu-me antes do fecho do poema
E em parte resume o que penso da vida
Passado o dia oito de cada mês
Destas cinco palavras me rodeio
E delas vem a música precisa
Para continuar. Recapitulo:
desistência desalento prostração desolação desânimo
Antigamente quando os deuses eram grandes
Eu sempre dispunha de muitos versos
Hoje só tenho cinco palavras cinco pedrinhas 
 

Ruy Beloem "Homem de Palavras", 1969.
"Obra Poética de Ruy Belo" - Vol. 1, 1984.
"Todos os Poemas", 2001.

Charles Frederic Ulrich, Waifs in an Orphanage, 1884.


"Não tenho saudade da infância, mas sinto falta da forma como eu encontrava prazer em coisas pequenas, mesmo quando coisas maiores desmoronavam. Eu não podia controlar o mundo no qual vivia, não podia fugir de coisas nem de pessoas nem de momentos que me faziam mal, mas tinha prazer nas coisas que me deixavam feliz."


Neil Gaiman, em "O Oceano no Fim do Caminho" (The Ocean at the End of the Lane), 2013.
 

sexta-feira, 20 de dezembro de 2024

"O direito de ler em voz alta" - Texto de Daniel Pennac


Karl Harald Alfred Broge (Danish painter, 1870–1955),
A young girl seated reading before the window, 1914.
 


O direito de ler em voz alta

 
Eu pergunto-lhe:
- Quando eras pequena liam-te histórias em voz alta?
Ela responde:
- Nunca. O meu pai andava sempre a viajar e a minha mãe estava sempre muito ocupada.
Eu pergunto:
- Então de onde vem esse teu gosto pela leitura em voz alta?
Ela responde:
- Da escola.
Feliz por ouvir alguém reconhecer algum mérito à escola, exclamo, satisfeito:
- Ah! Estás a ver?
Ela diz-me:
- De modo nenhum. Na escola proibiam-nos que lêssemos em voz alta. O credo da época era a leitura silenciosa. Diretamente da vista ao cérebro. (...) Mas, mal chegava a casa, relia tudo em voz alta.
- Para quê?
- Para me maravilhar. As palavras pronunciadas começavam a ter existência fora de mim, tinham autêntica vida. Além disso, para mim era um ato de amor.
Era o próprio amor. (...) Deitava as minhas bonecas na minha cama, no meu lugar e lia para elas. Cheguei a adormecer no tapete.

Daniel Pennac, "Como um Romance" ("Comme un roman"), 1992
 
 
Daniel Pennac, "Como um Romance"
Tradução de Francisco Paiva Boléo
Edições ASA

 
Sinopse 

É sobejamente conhecido o desgosto com que os pais preocupados com a formação dos filhos costumam registar a inapetência destes para a leitura. Daniel Pennac, romancista, professor e pai de família, descreve neste ensaio cheio de humor, todas as perplexidades que usualmente assaltam os diversos intervenientes neste processo de conflitos surdos, temores, bloqueios e teimosias. 
Acima de tudo, conforme se sublinha no presente livro, a leitura tem de ser um prazer e os leitores de hoje devem usufruir de alguns direitos inalienáveis. 
A profunda originalidade de Como Um Romance está na forma ao mesmo tempo muito divertida e muito séria com que o autor aborda a questão central de que dependem tanto o destino do livro como o destino da cultura e da educação.
 
Como Um Romance liderou durante vários meses a lista dos livros mais vendidos em França e o seu impacto originou que se falasse mesmo do "fenómeno Pennac". 
 

Karl Harald Alfred Broge (Danish painter, 1870–1955),
Interior with a girl reading, oil on canvas, 41 x 31 cm.
 

«(…) o melhor que nós lemos, devemo-lo frequentemente a um ser que nos é querido. E é a um ser que nos é querido, que primeiro falaremos. E talvez, muito provavelmente, porque o que é intrínseco tanto ao sentimento como ao desejo de ler, consiste em preferir. Amar é doarmos as nossas preferências àqueles que preferimos. E estas partilhas povoam a invisível cidadela da nossa liberdade. Somos habitados por livros amigos.
Quando um ser querido nos dá um livro a ler, é ele que primeiro procuramos nas linhas, os seus gostos, as razões que o levaram a colocar o livro nas nossas mãos, os sinais de fraternidade. Depois, o texto transporta-nos, e esquecemos quem nos levou a mergulhar nele; é nisto exatamente que reside o poder de uma obra, afastar também essa contingência!
No entanto, os anos passam, e acontece que a evocação do texto recorda-nos a lembrança do outro; alguns títulos transformam-se então em rostos.» 
 
Daniel Pennac, "Como um Romance"
 

quinta-feira, 19 de dezembro de 2024

"Vida" - Poema de Matilde Rosa Araújo


 William Blake Richmond (British painter, sculptor and a designer of stained glass and mosaic, 1842-1921),
 Portrait of Henry Dawson Greene (1862-1912) of Slyne and Whittington Hall, Lancashire.
 


Vida

 
— Mãe, o mundo é mau,
Torna a flor lodo
E um pássaro num verme,
E eu não sabia...

— Filha! Semeia flores no lodo,
Empresta o teu canto ao verme.
Se as tuas mãos continuarem puras
E meigo o teu coração,
Acredita que o mundo é belo
E saberás!


Matilde Rosa Araújo
em "O Cantar de Tila"
 
 

"Poema para minha filha" - Aires de Almeida Santos


Felice Casorati (Italian painter, sculptor, and printmaker, 1883–1963), 
"Bambina che gioca su tappeto rosso", 1912.
 
 

 Poema para minha filha

Para ti, querida
Rosas e mel
E estrelas rutilantes,
Risos gritantes,
Muita ternura e carinho

E o Sol
Brilhando muito
Em frente ao teu caminho.

Deixa comigo o fel,
A dor, o desespero
Deixa que eu fira a pele
Nos ásperos abrolhos
Da vida.

Deixa chorar meus olhos
Deixa comigo
O peso do sonho tão antigo.

Para ti, querida
Paz, amor, ternura
Estrelas rutilantes,
Rosas e Mel…


 

quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

"Apetece-me dançar" - Poema de José Gomes Ferreira


William J. Glackens (American realist painter, 1870-1938),
Girl Roller Skating, Washington Square, c. 1912–14
Brooklyn Museum, New York, USA


Apetece-me dançar
 
"De repente, às três da madrugada, acordo e levanto-me da cama
 com estes versos na cabeça... Lá por fora, luar."


Apetece-me dançar
ao som do luar
- esse violino
que os outros não ouvem...

Ouviu-o Mozart...
Ouviu-o Beethoven...

Mas, hoje sou eu
que o ouço no céu
e danço na terra
com pés de cetim,
lá fora na rua...

Sou eu, pelo Ar...
Sou eu, o luar...
(...que arranquei de mim
e atirei para a lua.)


José Gomes Ferreira
,
"Poesia II", 1962

terça-feira, 17 de dezembro de 2024

"Oh, Vida! Fugitiva Companheira" - Poema de Francisco Bugalho


Arvid Liljelund (Finnish painter, 1844-1899), Ferdinand von Wright at Work, 1897.
Finnish National Gallery
 
 
 
 Oh, Vida! Fugitiva Companheira
 
 
 Oh, Vida!
Fugitiva companheira,
Eu sinto que não posso acompanhar-te.
Por isso, nesta hora feiticeira,
Quisera erguer-te uma barreira
E fazer-te parar
E abraçar-te;
E abraçar-te tão íntimo e tão fundo
Que toda a vida apenas de um segundo
Em mim entrasse, em mim vivesse,
E que depois viesse o fim do Mundo
Ou que eu morresse!... 


Francisco José Lahmeyer Bugalho,
 in "Dispersos e Inéditos"
 

segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

"Sol do Mendigo" - Poema de Manuel da Fonseca


Alessandro Pomi (Italian Impressionist painter, 1890–1976)



Sol do Mendigo


Olhai o vagabundo que nada tem
e leva o Sol na algibeira!
Quando a noite vem
pendura o sol na beira dum valado
e dorme toda a noite à soalheira...
Pela manhã acorda tonto de luz.
Vai ao povoado
e grita:
- Quem me roubou o sol que vai tão alto?
E uns senhores muito sérios
rosnam:
- Que grande bebedeira!

E só à noite se cala o pobre.
Atira-se para o lado,
dorme, dorme...

E toda a noite o sol o cobre...


Manuel da Fonseca, Rosa dos Ventos, 1940


Manuel da Fonseca
 
 
 Manuel da Fonseca, escritor português, vulto destacado do Neorrealismo, nasceu a 15 de outubro de 1911, em Santiago do Cacém, e morreu a 11 de março de 1993, em Lisboa.
Partiu ainda jovem para Lisboa para realizar estudos secundários, tendo desempenhado posteriormente na capital diversas atividades profissionais no comércio, na indústria e no jornalismo. 
Antes de colaborar em Novo Cancioneiro, com Planície, coleção onde se afirmariam algumas coordenadas da estética poética Neorrealista numa primeira fase, editou, em 1940, Rosa dos Ventos, obra pioneira do neorrealismo poético português, nascida do convívio com um grupo de jovens escritores, entre os quais Mário Dionísio, José Gomes Ferreira, Rodrigues Miguéis, Manuel Mendes e Armindo Rodrigues, unidos numa "obstinada recusa de ser feliz num mundo agressivamente infeliz, uma ânsia de dádiva total e o grande sonho de criar uma literatura nova, radicada na convicção de que, na luta imensa pela libertação do Homem, ela teria um papel estimável a desempenhar contra o egoísmo, os interesses mesquinhos, a conivência, a indiferença perante o crime, a glorificação de um mundo podre" (DIONÍSIO, Mário - prefácio a Obra Poética de Manuel da Fonseca, 1984, p. 21). 
Não existindo descontinuidade entre a poesia e a prosa de Manuel da Fonseca, nem entre ambas e o escritor, que as impregna de um cariz autobiográfico, alimentado por recordações da convivência com o homem alentejano, ficção e obra poética interpenetram-se na evocação de personagens, narrativas, romances, paisagens alentejanas. Mário Dionísio (id. pp. 32-33) vê na oposição cidade/vila, recorrente na obra de Manuel da Fonseca, a oposição entre o que é "apaixonado e violento, desgraçado e heroico, profundamente humano, grave, limpo" e o que é ridículo, repugnante, mesquinho, "de ambição medíocre, de preconceitos míseros, que desvirtuam e lentamente asfixiam uma imagem ideal de vida que, na poesia de Manuel da Fonseca, quase sempre se identifica com tudo o que a infância e a adolescência têm de ingénuo e generoso e transparente e que a vida embacia, adultera e destrói." 
Autor de uma obra ancorada na realidade e eivada de um apontado regionalismo, a escrita de Manuel da Fonseca ultrapassa a contingência histórica de que nasceu, por um enaltecimento da vida, compreendida como intrinsecamente livre das imposições, frustrações, mentiras e condicionamentos impostos pela sociedade, ânsia de libertação, simbolizada, por exemplo, na repressão sexual imposta a algumas figuras femininas ou na admiração de figuras marginais como o "maltês" ou o vagabundo. 
Cerromaior (1943), O Fogo e as Cinzas (1951) e Seara de Vento (1958) são algumas das suas obras mais emblemáticas. (daqui)
 

domingo, 15 de dezembro de 2024

"Os Ratos" - Poema de Fernando Pessoa


John Sherrin (British painter, 1819 - 1896), Christmas Lunch, Watercolour.
 
 

Os Ratos


Viviam sempre contentes,
No seu buraco metidos,
Quatro ratinhos valentes,
Quatro ratos destemidos.

Despertaram certo dia
Com vontade de comer,
E logo à mercearia
Dirigiram-se a correr.

O primeiro, o mais ladino,
A uma salsicha saltou,
E um bocado pequenino
Dessa salsicha papou.

Eu choro do rato a sina,
Que a tal salsicha matou,
Por causa da anilina
Com que alguém a colorou.

O segundo, coitadinho,
À farinha se deitou,
E comeu um bocadinho,
Um bocadinho bastou.

Após comer a farinha
Teve ele a mesma sorte,
Pois o alúmen que ela tinha
Conduziu-o assim à morte.

O terceiro, para seu mal,
Gotas de leite sorveu,
Mas o leite tinha cal;
Foi por isto que ele morreu.

O quarto, desmiolado,
A negra morte buscou,
E julgou tê-la encontrado,
Quando o veneno encontrou.

E sorvendo sublimado,
Enquanto este gastava,
(Agora invejo-lhe o fado),
O feliz rato engordava.

É só cá neste terreno,
Que caso assim é passado —
Até o próprio veneno
Já fora falsificado! 


Fernando Pessoa
, in Poesia do Eu,
Obra Essencial de Fernando Pessoa
,
Edição Richard Zenith, Assírio Alvim, 2006
 
 
John Sherrin, Vegetarians, Pencil and watercolour.


 
John Sherrin, Christmas Feast with mice and biscuits, Private Collection. 

"Cartinha Natalina" - Texto de Eugénio Lisboa



Lovis Corinth (German painter, sculptor, university teacher, graphic artist, drawer 
and lithographer, 1858–1925), Christmas Eve, 1913, Lentos Art Museum


 
Cartinha Natalina 

 
Nesta época, escreve-se muito. O Natal permeia e incentiva a escrita. Aparecem lindos textos apelando ao que pode haver de melhor no coração dos homens. Desde poemas simples, frases soltas, elaboradas reflexões a longas epístolas de bem-aventurança. Todos eles trazem mensagens que acabam por nos tocar. Estamos abertos à celebração, embora nem sempre seja o nascimento de uma criança que esteja a ser festejado. Nascida há dois mil anos é ela o motor desta celebração. O Natal é assim a festa de toda a criança que se fez e fará Homem. Repetir, em cada ano, esse acontecimento é a necessidade que todos nós encontrámos para dar forma à solidariedade que se perde ou negligencia durante o ano. Tomamos a família e fazemos dela o encontro que foi, por vezes, adiado. Que Natal pode ser todos os dias é uma frase que se perde nas pregas das intenções. Basta olhar as imagens que, dia a dia, enchem os écrans televisivos para encontrar a legenda exata para esta verdade. Ferem e agridem, mas não deixam de se repetir. E são tantas as imagens de crianças de todas as idades. Perdidas em campos de refugiados ou em marcha por esse mundo fora. Sujas, desgrenhadas, famintas, perdidas, abandonadas rasgam o coração, sem que a piedade do Natal as alcance.

Não. Não pretendo aumentar a resma das lindas mensagens. Quero apenas dar fôlego ao sonho: Que este nosso mundo, que se muralha entre pandémicos vírus, acorde e renasça jubiloso em verdadeiro Natal. (daqui)


sábado, 14 de dezembro de 2024

"Fim de Outono" - Poema de Fernanda de Castro


Leopoldo Gotuzzo (Pintor brasileiro, 1887–1983), Casa de Campo, 1965.



Fim de Outono 
 
 
Fim de outono... Folhas mortas...
Sol doente... Nostalgia...

Tudo seco pelas hortas,
Grandes lágrimas no chão
Nem uma flor pelos montes,
Tudo numa quietação
Soluça numa oração
O triste cantar das fontes.

Fim de outono... Folhas mortas...
Sol doente... Nostalgia...

A terra fechou as portas
Aos beijos do sol ardente,
E agora está na agonia...
Valha à terra agonizante
A Santa Virgem Maria!

Fim de Outono... Folhas mortas...
Sol doente... Nostalgia...

sexta-feira, 13 de dezembro de 2024

"Vivo na esperança de um gesto" - Poema de Reinaldo Ferreira

 


Raoul Dufy (French Fauvist painter, 1877-1953), Les trois ombrelles (The Three Umbrellas), 1906.
 
 

Vivo na esperança de um gesto


Vivo na esperança de um gesto
Que hás de fazer.
Gesto, claro, é maneira de dizer,
Pois o que importa é o resto
Que esse gesto tem de ter.
Tem que ter sinceridade
Sem parecer premeditado;
E tem que ser convincente,
Mas de maneira diferente
Do discurso preparado.
Sem me alargar, não resisto
À tentação de dizer
Que o gesto não é só isto...
Quando tu, em confusão,
Sabendo que estou à espera,
Me mostras que só hesitas
Por não saber começar,
Que tentações de falar!
Porque enfim, como adivinhas,
Esse gesto eu sei qual é,
Mas se o disser, já não é...


Reinaldo Ferreira
in 'Um Voo Cego a Nada'
 

"A Janela e o Sol" - Poema de Alberto de Oliveira

 
Martinus Rørbye (Danish painter, 1803–1848), View from the Artist's Window, 1825.
 


A Janela e o Sol


“Deixa-me entrar, - dizia o sol - suspende
A cortina, soabre-te! Preciso
O íris trémulo ver que o sonho acende
Em seu sereno virginal sorriso.

Dá-me uma fresta só do paraíso
Vedado, se o ser nele inteiro ofende...
E eu, como o eunuco, estúpido, indeciso,
Ver-lhe-ei o rosto que na sombra esplende.”

E, fechando-se mais, zelosa e firme,
Respondia a janela: “Tem-te, ousado!
Não te deixo passar! Eu, néscia, abrir-me!

E esta que dorme, sol, que não diria
Ao ver-te o olhar por trás do cortinado,
E ao ver-se a um tempo desnudada e fria?!” 


Alberto de Oliveira, Sonetos e poemas, 1886.