segunda-feira, 31 de julho de 2023

"Vila do Conde" - Poema de Ruy Belo

 

Armando Aguiar (Pintor português, n. 1964), Vila do Conde, Portugal
 


Vila do Conde


O lugar onde o coração se esconde
é onde o vento norte corta luas brancas no azul do mar
e o poeta solitário escolhe igreja para casar.

O lugar onde o coração se esconde
é em dezembro o sol cortado pelo frio
e à noite as luzes a alinhar o rio.

O lugar onde o coração se esconde
é onde contra a casa soa o sino
e dia a dia o homem soma o seu destino.

O lugar onde o coração se esconde
é sobretudo agosto vento música raparigas em cabelo
feira das sextas feiras gado pó e povo
é onde se consente que nasça de novo
àquele que foi jovem e belo
mas o tempo a pouco e pouco arrefeceu.

O lugar onde o coração se esconde
é o novo passado a ida para o liceu.

Mas onde fica e como é que se chama
a terra do crepúsculo de algodão em rama
das muitas procissões dos contra-luz no bar
da surpresa violenta desse sempre renovado mar?

O lugar onde o coração se esconde
e a mulher eterna tem luz na fronte
fica no norte e é Vila do Conde.


Ruy Belo
, in Homem de Palavra(s), 1969 
 
 
Ruy Belo - "Vila do Conde"
Voz: Luís Miguel Cintra



“Aquilo que está escrito no coração não necessita de agendas, porque a gente não esquece. O que a memória ama fica eterno.”

Rubem Alves, "O Retorno e Terno", Editora Papirus.


Rubem Alves, "O Retorno e Terno", Papirus Editora, 
1ª Edição em 2013


Sinopse

A ideia para uma crónica me vem sempre como uma experiência de alegria, mesmo que o assunto seja triste. Ela aparece repentinamente, nos momentos mais inesperados, como a visão de uma imagem. O que tento fazer é simplesmente pintar com palavras a cena que se configurou na minha imaginação.
Sou psicanalista. Meu trabalho se baseia na escuta. Cada cliente fala e, ao fazer isso, me permite andar nas paisagens da sua alma. Ao escrever uma crónica faço o contrário: sou eu que ofereço as paisagens da minha alma aos olhos dos meus leitores. E eles, sem o saber, são os meus psicanalistas...
O escritor não é alguém que vê coisas que ninguém mais vê. O que ele faz é simplesmente iluminar com os seus olhos aquilo que todos vêem sem se dar conta disso. E o que se espera é que as pessoas tenham aquela experiência a que os filósofos Zen dão o nome de "satori": a abertura de um terceiro olho, para que o mundo já conhecido seja de novo conhecido como nunca o foi. (daqui)
 
 
Rubem Alves
 
Rubem Alves, pedagogo, educador, professor, psicanalista e escritor brasileiro, nasceu a 15 de setembro de 1933, em Boa Esperança, no estado de Minas Gerais e faleceu em Campinas a 19 de julho de 2014.
Aos doze anos mudou-se para o Rio de Janeiro. Estudou Teologia num seminário presbiteriano entre 1953 e 1957 e, no ano seguinte, tornou-se pastor em Lavras, no interior de Minas Gerais.
Com trinta anos, foi estudar para Nova Iorque, onde fez um mestrado em Teologia. Regressou ao Brasil em 1964 e, quatro anos mais tarde, foi considerado subversivo pela Igreja Presbiteriana. Decidiu abandonar esta igreja e ir viver para os Estados Unidos da América, onde continuou a estudar, concluindo um doutoramento em Filosofia. Já neste país publicou, em 1969, a sua tese A Theology of Human Hope, que entende ser um dos primeiros documentos da Teoria da Libertação.
Regressou, entretanto, ao Brasil para dar aulas de Filosofia na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Rio Claro, em São Paulo, e, mais tarde, na Universidade Estadual de Campinas, onde viria também a ocupar ao longo dos anos diversos cargos de relevo.
Já na década de 80, tornou-se psicanalista ao fazer o curso na Sociedade Paulista de Psicanálise. Paralelamente, foi docente convidado na Universidade de Birmingham, em Inglaterra, e no Bellagio Study Center, em Itália.
Passou posteriormente, ainda nos anos 80, por uma fase difícil na sua vida pessoal e resolveu começar a escrever para recuperar a alegria de viver, dividindo-se entre poesia, contos, romances, histórias para crianças e ensaios.
Várias das obras de Rubem Alves foram editadas em Portugal, nomeadamente A Escola com que sempre sonhei sem imaginar que pudesse existir, A Alegria de ensinar, As Cores do Crepúsculo - A Estética do Envelhecer, Conversas com quem gosta de ensinar, As Mais Belas Histórias de Rubem Alves (para crianças) e Se Eu Pudesse Viver a Minha Vida Novamente...
A Escola com que sempre sonhei sem imaginar que pudesse existir é uma obra sobre a Escola da Ponte, em Vila das Aves, em Portugal, onde o autor encontrou, no ano 2000, o modelo de ensino que considera ideal.
Quando deixou de lecionar, abriu um restaurante em Campinas onde pôde exercer o seu gosto pela culinária. No mesmo espaço, organizou cursos de cinema, pintura e literatura.
A cidade de Campinas reconheceu o mérito do trabalho de Rubem Alves fazendo-o membro da Academia Campinense de Letras, cidadão-honorário, e entregando-lhe a medalha Carlos Gomes pela sua contribuição para a cultura. (daqui)
 

domingo, 30 de julho de 2023

"O mundo, pião de Deus" - Poema de João Braz


 
Elizabeth Forbes (Canadian painter, 1859–1912), The half holiday, 
Alec home from school, 1909


 
O mundo, pião de Deus


Outro dia, na escola,
O professor deu à gente
Uma bizarra lição:
Disse que o mundo é uma bola
E anda à roda, eternamente,
A girar como um pião…

- Nunca em tal tinha pensado!
E fiquei muito admirado
Com a lição que aprendi...
Roda o mundo, e o caso é
Que eu ando a rodar em pé
E ainda não entonteci!

Ora um dia, em pequenino,
disseram-me que o destino
e mares, terras, e céus
eram fruto de labor
insano do Criador
e o Criador era Deus...

Mas ponho o caso em estudo,
Reparo que nisto tudo
Reina grande confusão,
Pois, no céu, seria asneira
Deus andar, por brincadeira,
Sempre a jogar ao pião…

E nem o meu professor
Decifra sem aranzel
Este segredo profundo:
- Onde é que Nosso Senhor
Foi arranjar um cordel
Pra fazer rodar o mundo?
 em "Esta riqueza que o Senhor me deu", 1953
 


Elizabeth Forbes (Canadian painter, 1859–1912), School is Out, 1889
Oil on canvas, 106 x 145 cm. Penlee House Gallery & Museum
 

"Educar a mente sem educar o coração não é educação." 
 
Aristóteles (Filósofo grego, 384 a.C - 322 a.C.)

 

sábado, 29 de julho de 2023

"Antes o voo da ave, que passa e não deixa rasto" - Poema de Alberto Caeiro / Fernando Pessoa


 Fortunato Anjos (Pintor português, 1908-2000), Montemor-o-Novo, Castelo, s.d.



Antes o voo da ave, que passa e não deixa rasto

XLIII

Antes o voo da ave, que passa e não deixa rasto,
Que a passagem do animal, que fica lembrada no chão.
A ave passa e esquece, e assim deve ser.
O animal, onde já não está e por isso de nada serve,
Mostra que já esteve, o que não serve para nada.

A recordação é uma traição à Natureza.
Porque a Natureza de ontem não é Natureza.
O que foi não é nada, e lembrar é não ver.

Passa, ave, passa, e ensina-me a passar!
 
7-5-1914 

Alberto Caeiro
, “O Guardador de Rebanhos”.
In Poemas de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa.




"Não o prazer, não a glória, não o poder: a liberdade, unicamente a liberdade."


Bernardo Soares
(Fernando Pessoa), in "Livro do Desassossego, Vol II."
 

sexta-feira, 28 de julho de 2023

"Entre as duas e as três" - Poema de Ana Luísa Amaral


Sir William Blake Richmond (British painter, sculptor and a designer of stained glass and
 mosaic, 1842-1921), Portrait of Anne Jemima Clough, 1882. (Anne Clough, 1820-1892).
Oil on canvas, 90 × 69.5 cm, Newnham College - University of Cambridge.




Entre as duas e as três


Queria falar do que não tem concerto:
as letras desenhadas e compostas
com que confundo o espaço do papel,
a angústia compassada no contar
e a súbita alegria de ser eu
penosamente, às duas da manhã.

Queria escrever do que não tem lugar:
a branca, doce e sonolenta estrada
onde espaçadas as palavras crescem,
suavizadas pelo lento sono
que devagar percorre as coisas todas
penosamente, às duas da manhã.

Queria dizer do que não tem conserto:
ou seja, eu; ou seja, o papel branco
sombrio agora por já ser demais,
as letras excedentes e sonoras
desmembrando o silêncio e a noite toda
penosamente, às duas da manhã.

Só então falarei do que ficou:
compassada alegria desenhada
na angústia de dizer sem me contar,
o papel confundido de impotente
e todavia prontas as palavras.
Quase às três da manhã. Penosamente.


Ana Luísa Amaral
, Poesia Reunida 1990-2005,
Quasi Edições, 2005
 

Sir William Blake Richmond, Portrait of Mrs Ernest Moon, 1888, Tate Britain.

[Emma Moon was a young Australian who married an English barrister. This portrait was commissioned to celebrate their marriage. She is shown here wearing a richly-decorated coat which she had embroidered herself. William Richmond was best known for his academic pictures but he was also a highly skilled portraitist. This picture is distinctly ‘aesthetic’: there are contrasting colours and textures in the opulent fabrics, and Emma Moon has a languid pose and expression.] (daqui)


(British anti-suffrage essayist, 1851-1916)

 
Sir William Blake Richmond, Portrait of the Countess of Airlie. Private Collection
 

Sir William Blake Richmond, Portrait of  Mrs Luke Ionides (Elfrida Ionides, 
1848-1929), 1882. Oil on canvas, 133 x 145.5 cm, Victoria and Albert Museum.

[The sitter, Elfrida Ionides, was married to Luke Ionides, of the famous British family of art patrons. She wears a loose, flowing dress and amber beads. In 1881 the ornate sofa was illustrated in a book on advanced interior decoration. The screen is made of embroidered Japanese kimono silk. This setting and her costume epitomise the ideals of the Aesthetic Movement.] (daqui)
 

quinta-feira, 27 de julho de 2023

"Misticismo humano" - Poema de António Gomes Leal


Ayres Ferreira (Pintor naturalista português, 1908-1997), Trecho do Vouga, 1960


Misticismo humano


A alma é como a noite escura, imensa e azul,
Tem o vago, o sinistro, e os cânticos do sul,
Como os cantos d’amor serenos das ceifeiras
Que cantam ao luar, à noite pelas eiras…
Às vezes vem a névoa à alma satisfeita,
E cai sombria, vaga, e miúda e desfeita…
E como a folha morta em lagos sonolentos
As nossas ilusões vão-se nos desalentos!

Tem um poder imenso as coisas na tristeza!
Homem! conheces tu o que é a natureza?…
– É tudo o que nos cerca – é o azul, o escuro,
É o cipreste esguio, a planta, o cedro duro,
A folha, o tronco, a flor, os ramos friorentos,
É a floresta espessa esguedelhada aos ventos;
Não entra o vício aqui com beijos dissolutos,
Nem as lendas do mal, nem os choros dos lutos!…

– E os que viram passar serenos os seus dias…
E curvados se vão, às longas ventanias,
Cheio o peito de sol, através das florestas,
À calma do meio-dia… e dormiam as sestas,
Tranquilos sobre a eira, entre as ervas nas leivas…
Vão cansados depois, entre os ramos e as seivas,
Outra vez sob o Sol – a sua eterna crença! –
Em frutos ressurgir à natureza imensa,
E, aos beijos do luar, descansarem felizes,
Da bem-amada ao pé, no meio das raízes!

Morrer é livramento! oh deve saber bem
Sentir-se dilatar na Natureza mãe!
Ser tronco, ramo ou flor, nuvem, erva ou alfombra,
A rosa que perfuma, a árvore que dá sombra!
Estremecer na encosta às noturnas geadas,
E recortar o azul das noites consteladas!

Oh pelo claro azul dessas noites serenas,
Que o segador trigueiro entoa as cantilenas,
Tristes como a lua e o espinho dos martírios,
E que através do azul parecem cair lírios!…
Quando a brisa levanta as folhas indiscretas,
Noivam os rouxinóis e se abrem as violetas…
E a Natureza tem como um sabor de beijos,
Que obriga a soluçar a alma de desejos!…

Que segredos dirão nas brisas mensageiras,
À doçura da lua, a flor das laranjeiras,
O lírio, a madressilva, os jasmins vacilantes,
Que foram já, talvez, seios fortes e amantes,
E que hoje à branca luz dos mirtos siderais,
Conversam sobre o amor e os gozos ideais
Do tempo, que a falar corriam breve as horas,
Que seus olhos leais tinham a cor d’amoras,
E debaixo do Céu teciam longas danças,
Ao pé da amante meiga e de compridas tranças!…

No lago sonolento a flor do nenúfar
Talvez é um coração que abre para chorar!
O lírio um seio bom, – e as violetas curvadas
São os olhos talvez das doces bem-amadas!…

Feliz o semeador que vive entre os arados,
O campo, os lentos bois, longe dos povoados,
Entre os rijos irmãos humildes e trigueiros,
Que vivem sob o sol, à chuva, aos nevoeiros,
E quando à noite finda os suarentos trabalhos,
Vem a doce mulher buscá-lo nos atalhos,
Cujo olhar como a lua é tranquilo e consola,
E descanta chorando à noite na viola!…

E os que andam pelo mar, alegres e contentes,
Entre as ondas e o Céu, saudosos, negligentes,
Entre os cantos do vento, olhos fitos nos céus,
Entre o azul, o escuro, e os frios escarcéus,
Ombro a ombro o abismo, – abismo sempre aos pés,
Que dormem à poesia, à lua das marés,
E morrem uma noite, ó mar, aos teus embalos,
Deixando uns olhos bons e meigos a chorá-los!

Eu por mim não terei um astro bom nos Céus,
Nem uns olhos leais que chorem pelos meus,
E que inda a fronte mal me obscureça a mágoa,
Como espelhos d’amor já sejam rasos d’água!…
Sozinho passarei, e não irei jamais,
Pelas murtas com ela às tardes outonais;
De inverno não terei os consolos do lar,
Nem do estio a doçura imensa do luar;
Meus filhos não irão jamais colher os ninhos;
Ninguém virá à tarde esperar-me nos caminhos!


António Gomes Leal, in Claridades do sul, 1875

 


Gomes Leal
(Album Republicano, 1908)


António Duarte Gomes Leal nasce em Lisboa em 1848. Filho ilegítimo de um funcionário público, vive com a mãe e a irmã, a sua principal fonte de inspiração. No ano da morte de sua irmã, em 1875, publica Claridades do Sul, a sua primeira obra poética. Quando a mãe morre, converte-se ao catolicismo, o que tem influência na sua obra. Poeta e jornalista, é escrevente de um notário e publica inúmeros textos panfletários de denúncia político-social. 

A sua poesia oscila entre os três grandes paradigmas literários do final do século XIX: romantismo, parnasianismo e simbolismo. De 1899 a 1910, compõe e publica quase diariamente. Termina os seus dias na miséria, primeiramente vivendo da caridade alheia, na rua, e depois sustentando-se com uma pensão anual do Estado português que lhe foi conseguida por um grupo de amigos, dos quais se destaca Teixeira de Pascoaes. Morre em 1921.

Gomes Leal é considerado um precursor do Modernismo Português, tendo sido referido por Fernando Pessoa como um dos seus mestres. Este dedica-lhe o soneto Gomes Leal, publicado pela Ática na edição das Obras Completas de Fernando Pessoa, em 1967. 

Apesar de se mover literária e pessoalmente nos círculos próximos da Geração de 70, não integra o grupo dos “Vencidos da Vida”, referindo, porém, o apreço que Eça de Queirós e Antero de Quental lhe dedicam, num comentário feito pelo próprio Gomes Leal na obra “A Morte do Rei Humberto” (1900), citado por Gomes Monteiro, em O Drama de Gomes Leal. Com inéditos do Poeta. Gomes Leal tem aliás o cuidado de se distanciar das correntes estéticas da altura, fazendo-o nomeadamente na Nota a Claridades do Sul, acrescentada e publicada na segunda edição, em 1901. Na Nota a “A Morte do Rei Humberto”, Gomes Leal afirma ter publicado antes de Fradique Mendes na Revolução de Setembro e assevera ter sido contactado por Antero de Quental para assinar textos daquele pseudónimo, o que recusou. Na referida Nota, menciona que Cesário Verde tece encómios à poesia de Claridades do Sul

Gomes Leal estreou-se aos dezoito anos, em 1866, publicando a poesia “Aquela Morta”, na Gazeta de Portugal. Em 1869, publica o folhetim "Trevas" na Revolução de Setembro.
O cariz interventivo da sua obra é marcado não só pelos folhetins publicados nos jornais, mas também pela fundação do jornal satírico O Espectro Juvenal, em 1872, em parceria com Magalhães Lima, Silva Pinto, Luciano Cordeiro e Guilherme de Azevedo. É também um dos fundadores do jornal O Século (1881). Aí publica, por exemplo, “A banalidade nacional irritada” (30 de janeiro de 1881). 

Poeta joco-satírico, são deste autor vários textos que vieram a lume na Revolução de Setembro, dos quais destacamos “A batalha dos astros” (20 de abril de 1870); “Descrença” (31 de agosto de 1870); “Flor de perdição” (2 de outubro de 1870); “No Calvário” (outubro de 1870). Em 1873, publica “O Tributo de Sangue” e “A Canalha”. Em 1874, um ano antes da primeira edição de Claridades do Sul, escreve para o Diário de Notícias (19 de maio) “Duas palavras sobre a poesia moderna”, onde reflete sobre a utilidade que a poesia deve ter face às atribulações morais do final do século. 

Em 1875 sai a primeira edição de Claridades do Sul, cuja segunda edição é de 1901. Para celebrar Camões e Bocage, publica “A Fome de Camões” (1880) e “A Morte de Bocage” (1881). Datam igualmente de 1881 os panfletos poéticos “A Traição” e “O Herege”, pondo em causa o trono na pessoa do rei D. Luís, as Instituições burguesas e a Igreja, o que gerou um verdadeiro escândalo literário e político. Aliás, o primeiro texto leva-o à prisão do Limoeiro, onde escreve uma carta publicada no número comemorativo da Tomada da Bastilha de O Século (14/7/1881). A edição do almanaque O António Maria de 7 de julho de 1881 é dedicada por Bordalo Pinheiro a Gomes Leal. 

Outros poemas da sua autoria são “O Renegado” (1881), "A Orgia" (1882), “História de Jesus para as criancinhas lerem” (1883), “O Anti-Cristo” (1884 e 1886), “Fim de Um Mundo” (1899), “Serenadas de Hilário no Céu” (1900), “A Mulher de Luto” (1902), "Mefistófeles em Lisboa" (1907) “A Senhora da Melancolia” (1910). Publica até tarde. Data de março de 1915 o poema “A Dama Branca” que vem a lume na Águia

Na sua obra poética e panfletária, este poeta finissecular manifesta apego a entidades históricas e religiosas, numa atitude por vezes pessimista e acusadora. Todavia, é através desse apelo à História que procura um sentido para a vida. Este tipo de poesia enquadra-se na estética parnasiana cujas preocupações, além das de ordem formal e plástica, se inscrevem na procura da pureza original dos tempos, da História. Como exemplo, surgem as poesias de Claridades do Sul “Os Santos”; “D. Quixote”; “O Publicano”; “A Lira de Nero”; “Caim”; “A Lenda das Rosas”; “O Triste Monge” e “A Senhora de Brabante”. Ainda em Claridades do Sul, muitos dos seus poemas refletem sentimentos de desalento e aflição relacionados com a temática da miséria e da pobreza, num tom neorromântico do poema “As Aldeias”, “Misticismo Humano” e “De Noite”; outros refletem sobre a imagética feminina romântica, como em “Romantismo”; “Idílio Triste” e “Senhora dos olhos verdes”

Por outro lado, a dimensão decadentista-simbolista dessa obra de Gomes Leal leva a que se considere este poeta como o “verdadeiro precursor do Decadentismo em Portugal”, nas palavras de Seabra Pereira. “Licantropia” e “Aquela Orgia” são dois poemas que se inscrevem nessa tendência marcadamente simbolista que assumem algumas composições deste autor. 

A filiação de Gomes Leal em Baudelaire é um dos tópicos mais tratados, porque o poeta português se inspirou no mestre das correspondências. De facto, Gomes Leal trabalha com mestria a ideia das “correspondances” do romântico francês nos quatro sonetos de Claridades do Sul intitulados “O Visionário ou Som e Cor”. 
 
A perspetiva do poeta enquanto ser incompreendido e infeliz surge em vários textos de Gomes Leal, composições poéticas em que o sujeito lírico se assume como alguém singularmente distante do comum dos mortais. Não se distanciando da visão romântica do poeta, Gomes Leal define-se como um génio inadaptado à sociedade, num misticismo visionário. Inúmeros são os exemplos desta perspetiva do “poeta proscrito e infeliz”, como “Soneto dum poeta morto”, “Aquele Sábio”, “El Desdichado” e “Noites de Chuva” de Claridades do Sul

Outra característica deste poeta finissecular prende-se com a preocupação que manifesta em relação aos seus leitores, nomeadamente na Nota à primeira edição e acrescentada na segunda edição de Claridades do Sul (1901). Aí debruça-se sobre a tarefa do escritor explicitando que a este compete “trabalhar a sua ideia, lapidá-la, poli-la, desenvolvê-la, facetá-la, de maneira que ela seja como um grande elo em que se vão encatenar um rosário luminoso doutras novas, e que ela saia transformada desse vasto laboratório intelectual, por um processo misterioso semelhante ao que dá a Natureza, transformando da lagarta a borboleta, do carvão o diamante, e da ostra doente a pérola.” 

Na poesia de Gomes Leal confluem o Ultra-Romantismo, o satanismo byroniano, as correspondências baudeleirianas, o Parnasianismo e o Simbolismo. Há ainda alguns elementos que deixam já adivinhar o Surrealismo. 

Respondendo ao Inquérito Literário organizado por Boavida Portugal (realizado entre setembro e dezembro de 1912 e publicado em 1915), Gomes Leal afirma: “Em mim há três coisas: o poeta popular e de combate, nas sátiras e panfletos; o poeta do sonho e do mistério, na Nevrose Nocturna, nas Claridades do Sul, na Lua morta e na Mulher de Luto; e o poeta místico, na História de Jesus, na Senhora da Melancolia e no segundo Anti-Cristo.” 

No número 2 da ABC – Revista portuguesa (22 de julho de 1920), sob o título “O grande poeta Gomes Leal faz a sua biografia ao A B C, publica o Soneto autobiográfico”, que transcrevemos, antecedido do seguinte texto:

Gomes Leal, o poeta ilustre, que é uma glória nacional, quis dar ao A B C uma impressão da sua vida, da sua ação, das suas lutas. Em vez duma entrevista foram aos seus versos lapidares que chegaram a explicar como se passou uma infância, uma velhice e como a velhice chegou com as suas dores a focar essa cabeça coroada de louros. Só Gomes Leal poderia definir o que A B C desejava saber: a vida do primeiro poeta português.

Outrora, outrora, em épocas passadas,
Tive uma santa Mãe de ideias maneiras,
Um reto Pai de barbas prateadas,
Tive prédios, jardins, fontes, roseiras.

Nos colégios, nas aulas, nas bancadas,
Não quebrei bancos, não parti carteiras;
Fiz bons exames, contas, tabuadas,
Mais tarde amei patrícias feiticeiras.

Fui amigo do Eça e do Ramalho,
João de Deus, mais do excêntrico Fialho,
E tive que emigrar para o estrangeiro.

Chorei, gemi! Qual Dante nas estradas!
E ao regressar, por causas avanças,
- fui por três vezes parar ao Limoeiro.

(daqui)


Luiz Costa
- 3 Peças p/ Piano, Op. 1
Bruno Belthoise
, piano 
[Imagem: "Trecho do Vouga" pintura de Ayres Ferreira]


Ayres Ferreira (1908?-1997) estudou desenho, pintura e gravura na Escola de Belas-Artes onde conheceu o grande mestre impressionista António Saúde (1875-1958) que exerceu nele profunda influência. O mestre tinha, de facto, regressado empolgado de Paris onde tinha observado as mais recentes criações impressionistas francesas. Esse entusiasmo passou-o ele a Ayres Ferreira. Grande amante da Natureza, António Saúde tinha no seu estudante, de quem ele se tornara amigo, uma espontânea e verdadeira aceitação das suas propostas. De conhecida intolerância, António Saúde foi o mais severo crítico do seu aluno e obrigava-o a destruir qualquer trabalho com um mínimo erro. Entretanto, Ayres Ferreira, decidiu dedicar-se à gravura na qual trabalhava há muitos anos. Contudo, nunca deixou de pintar sob as orientações do grande mestre. Só em 1952 realizou a sua primeira exposição. Desde então a carreira de Ayres Ferreira foi marcada por uma grande atividade nos círculos artísticos portugueses.
Foi durante vários anos membro dirigente da Sociedade Nacional de Belas-Artes. De 1957 a 1959 fez parte do júri dos Salões da Sociedade Nacional de Belas-Artes. Em 1958 foi presidente do júri de admissão e classificação do Salão de Inverno da Sociedade Nacional de Belas-Artes. De 1959 a 1969 foi diretor do Grupo dos Artistas Portugueses. Em 1960 foi membro do júri da Exposição de Pintura Contemporânea, em Lamego, patrocinada pela Fundação Calouste Gulbenkian. (daqui)
 
 
Luiz Costa
 

Luiz Costa (Barcelos, Monte de Fralães, 25 de setembro 1879 — Porto, 7 de janeiro de 1960) foi um dos mais proeminentes pianistas e compositores portugueses do seu tempo. Faz parte da primeira geração de professores de piano do Conservatório de Música do Porto e exerceu o cargo de diretor entre 1933 e 1934.
A sua intensa atividade pedagógica repartia-se pelo cargo que exerceu como professor de piano do Conservatório de Música do Porto desde a sua fundação (1917) até 1949 e pelas inúmeras aulas particulares que fornecia em sua casa, deixando uma marca indelével na formação de toda uma geração de pianistas portugueses com destaque para Berta Alves de Souza, Hélia Soveral e Helena Sá e Costa.
Formado na Alemanha entre 1905 e 1907, onde estudou com Vianna da Mota, Bernhard Stavenhagen, Conrad Ansorge e Ferrucio Busoni, representantes da Nova Escola Alemã de Piano, fundada por Franz Liszt, desenvolveu uma intensa carreira a solo e de música de câmara tendo-se apresentado ao lado de músicos como Casals, Guilhermina Suggia, Cortot, Enesco ou Friedman.
Salienta-se também a atividade como presidente da Sociedade de Concertos Orpheon Portuense, promovendo na cidade do Porto concertos com alguns dos maiores nomes da música como Ravel, Arrau, Backhaus, Landowska, Fischer, entre tantos outros. 
Luiz Costa é também um dos compositores mais representativos do modernismo português, colhendo influências múltiplas para as suas criações, como a poesia de Corrêa de Oliveira e de Teixeira de Pascoaes, a escultura de Teixeira Lopes, assim como a atmosfera campesina do Minho sua terra natal. (daqui)
 
 

 
Bruno Belthoise (Paris, n. 1964), pianista e improvisador,  foi distinguido pela Fundação Laurent-Vibert e recebeu o Prémio da Fondation de France em 1988. Obteve o “Diplôme Supérieur d’Exécution“ em Piano na École Normale de Musique de Paris em 1989 e foi “Révélation Classique ADAMI” em 1997. Aperfeiçoou a sua formação em França com Françoise Buffet-Arsenijevic, Bruno Rigutto e François-René Duchâble, em Portugal com Helena Sá e Costa. 
Solista e membro do Trio Pangea, estreou várias obras de compositores como Emmanuel Hieaux, Alexandre Delgado, Bernard de Vienne ou Sérgio Azevedo. A sua discografia inclui uma vintena de CDs que acompanham a sua carreira, tem sido também convidado a participar em numerosos recitais e formações de música de câmara pelo mundo. Na radiodifusão, participou em programações da France-Musique, da Saarländischer Rundfunk, e da Antena 2. 
Bruno Belthoise é também contador de histórias associadas, produziu para o público jovem diversos concertos narrados e gravou vários álbums. Descobridor de partituras, tem dado a conhecer a música de compositores portugueses através de recitais e conferências. Na sua carreira tem sido apoiado por instituições como a Fundação Calouste Gulbenkian, o Instituto Camões, a RDP-Antena 2 e a Fundação GDA. (daqui)
 

domingo, 23 de julho de 2023

"A Magnólia" - Poema de Luiza Neto Jorge


Eva Gonzalès (French Impressionist painter, 1849 –1883),
Portrait of a Woman in White, 1879, Private collection.
 

A Magnólia 


A exaltação do mínimo,
e o magnífico relâmpago
do acontecimento mestre
restituem-me a forma
o meu resplendor.

Um diminuto berço me recolhe
onde a palavra se elide
na matéria — na metáfora —
necessária, e leve, a cada um
onde se ecoa e resvala.

A magnólia,
o som que se desenvolve nela
quando pronunciada,
é um exaltado aroma
perdido na tempestade,

um mínimo ente magnífico
desfolhando relâmpagos
sobre mim. 


Luiza Neto Jorge
, in Poesia,
Assírio & Alvim, Lisboa, 2001.


Luiza Neto Jorge, Poesia. Editor: Assírio & Alvim
Edição/reimpressão: 04-2023 



SINOPSE
 
Com edição de Fernando Cabral Martins e colaboração de Manuele Masini, esta Poesia de Luiza Neto Jorge, revista e aumentando a recolha anterior, contém: «A primeira recolha da poesia de Luiza Neto Jorge é Os Sítios Sitiados, em 1973, preparada pela poeta, seguida de A Lume, em 1989, já concluída por Manuel João Gomes. A forma final dos poemas e a sua ordenação é a que é definida nessas recolhas. 
Esta edição de Poesia, a terceira, corrige e aumenta as duas anteriores (de 1993 e 2001). Reúne mais textos dispersos em diferentes publicações, e ainda poemas que aparecem nas edições originais de A Noite Vertebrada, Quarta Dimensão e Terra Imóvel, mas que não vêm integrados depois em Os Sítios Sitiados. Excluem-se um poema e alguns versos de outros dois, publicados em Terra Imóvel, dado aparecerem riscados pela poeta no seu exemplar de mão.» (daqui)
 

sábado, 22 de julho de 2023

"Na Praia lá da Boa Nova" - Poema de António Nobre


Praia da Boa Nova em Leça da Palmeira, Matosinhos, 1892



Na Praia lá da Boa Nova

 
Na praia lá da Boa Nova, um dia,
Edifiquei (foi esse o grande mal)
Alto Castelo, o que é a fantasia,
Todo de lápis-lazúli e coral!

Naquelas redondezas não havia
Quem se gabasse dum domínio igual:
Oh Castelo tão alto! parecia
O território dum Senhor feudal!

Um dia (não sei quando, nem sei donde)
Um vento seco de deserto e spleen
Deitou por terra, ao pó que tudo esconde,

O meu condado, o meu condado, sim!
Porque eu já fui um poderoso Conde.
Naquela idade em que se é conde assim…


António Nobre, in "Só", 1892
(Ouvir)

sexta-feira, 21 de julho de 2023

"Princesa do Sul" - Poema de João Braz

 
Rui Pinheiro (Pintor português, n. 1944), Ferragudo (Lagoa - Algarve),
Aguarela 53 x 32 cms.


Princesa do Sul


Tarde plena. A cidade, nesta hora,
Enche-se de luz. O sol aquece-a
E dá-lhe uns tons doirados, como outrora
Teixeira Gomes só achou na Grécia.

Daqui até à Rocha, ir de viagem,
A bem dizer, é como dar um salto
E embebedar os olhos de paisagem
Onde ela atinge o esplendor mais alto!

Ali, obra de Deus, que não de humano
Poder, é tanta a mágica beleza,
Que, diante dela, até o velho oceano
Humildemente se ajoelha e reza!...

E quando a noite vem, cobrindo tudo
Do negrume estrelado do seu manto,
Acende-se um presépio em Ferragudo,
Refletindo no rio um raro encanto...

Mas, dia ou noite, é sempre uma visão
Estranha e bela de país de sonho
A que se tem, aqui, em Portimão,
Donde, às vezes, me vem a inspiração
Para os humildes versos que componho!

Ó Princesa do Sul! Inutilmente
Me consumo no intuito de cantar-te!
- Senhor! Tanta beleza em minha frente,
E eu com tão pouca, ou sem nenhuma arte!...


João Braz
, em "Esta riqueza que o Senhor me deu", 1953


 
 
 
Rui Pinheiro nasceu em Sintra, a 8 de Agosto de 1944 e prefere a aguarela como forma de expressão. A paisagem, os recantos e o movimento da figura humana e as suas sombras e detalhes são elementos principais das suas composições realistas com ritmos e cores fiéis ao que existe e testemunha com uma suavidade e estilos muito próprios.
Do seu currículo constam vários prémios e Rui Pinheiro está representado em coleções em Portugal e no estrangeiro. Vem mencionado em livros como “Aspetos das Artes Plásticas em Portugal”, “Anuário das Artes Plásticas” e outras publicações, tendo editado a sua própria quando comemorou 35 anos de exposições.
Expõe regularmente desde 1987, tendo realizado 80 exposições individuais e mais de uma centena de coletivas. Em 2003 foi distinguido pela Câmara Municipal de Sintra com a Medalha de Prata de “Mérito Municipal” e em 2013 recebeu, pelo Rotary Club de Mafra, o diploma de Reconhecimento Profissional na Área das Artes Plásticas. (daqui) 


Rui Pinheiro, Ericeira (Mafra, Portugal)

Rui Pinheiro, Ericeira (Mafra, Portugal)


"A principal tarefa da educação moderna não é somente alfabetizar, mas humanizar criaturas."

Cecília Meireles
, em Entrevista
 
 

quinta-feira, 20 de julho de 2023

"Mar" - Poema de Sophia de Mello Breyner Andresen


Jaime Isidoro (Pintor português, 1924-2009), Praia da Póvoa de Varzim, Portugal
 
 
 
Mar

I

De todos os cantos do mundo
Amo com um amor mais forte e mais profundo
Aquela praia extasiada e nua,
Onde me uni ao mar, ao vento e à lua.

II

Cheiro a terra as árvores e o vento
Que a Primavera enche de perfumes
Mas neles só quero e só procuro
A selvagem exalação das ondas
Subindo para os astros como um grito puro. 
in Poesia, 1944 (daqui)
 

quarta-feira, 19 de julho de 2023

"As Palavras Interditas" - Poema de Eugénio de Andrade


George Henry Boughton (Anglo-American landscape and genre painter, 
illustrator and writer, 1833–1905), Sea Breeze, c.  

 
As Palavras Interditas 


Os Navios existem, e existe o teu rosto
encostado ao rosto dos navios.
Sem nenhum destino flutuam nas cidades,
Partem no vento, regressam nos rios.

Na areia branca, onde o tempo começa,
uma criança passa de costas para o mar.
Anoitece. Não há dúvida, anoitece.
É preciso partir, é preciso ficar.

Os hospitais cobrem-se de cinza.
Ondas de sombra quebram-se nas esquinas.
Amo-te… E entram pela janela
as primeiras luzes das colinas.

As palavras que te envio são interditas
até, meu amor, pelo halo das searas;
se alguma regressasse, nem já reconhecia
o teu nome nas suas curvas claras.

Dói-me esta água, este ar que se respira,
dói-me esta solidão de pedra escura,
estas mãos noturnas onde aperto
os meus dias quebrados na cintura.

E a noite cresce apaixonadamente.
Nas suas margens nuas, desoladas,
cada homem tem apenas para dar
um horizonte de cidades bombardeadas. 
 
in "As Palavras Interditas", 1951 (1.ª edição)
(Ouvir)

terça-feira, 18 de julho de 2023

"Romance de Vila do Conde" - Poema de José Régio

 
 
Jaime Isidoro (Pintor português, 1924-2009), Vila do Conde, s/d. Aguarela


Romance de Vila do Conde
 
 
 
Vila do Conde, espraiada
Entre pinhais, rio e mar!
- Lembra-me Vila do Conde,
Já me ponho a suspirar.

Vento Norte, ai vento norte,
Ventinho da beira-mar,
Vento de Vila do Conde,
Que é a minha terra natal!,
Nenhum remédio me vale
Se me não vens cá buscar,
Vento norte, ai vento norte,
Que em sonhos sinto assoprar...

Bom cheirinho dos pinheiros,
A que não sei outro igual,
Do pinheiral de Mindelo,
Que é um belo pinheiral
Que em Azurara começa
E ao Porto vai acabar...,
Se me não vens cá buscar,
Nenhum remédio me vale
Nenhum remédio me vale,
Se te não posso cheirar...

Vila do Conde espraiada
Entre pinhais, rio e mar!
- Lembra-me Vila do Conde,
Mais nada posso lembrar.

Bom cheirinho dos pinheiros...,
Sei de um que quase te vale:
É o cheiro da maresia,
- Sargaços, névoas e sal -
A que cheira toda a vila
Nas manhãs de temporal.
Ai mar de Vila do Conde,
Ai mar dos mares, meu mar!,
Se me não vens cá buscar,
Nenhum remédio me vale,
Nenhum remédio me vale,
Nem chega a remediar...

Abria, de manhãzinha,
As vidraças par em par.
Entrava o mar no meu quarto
Só pelo cheiro do ar.
Ia à praia, e via a espuma
Rolando pelo areal,
Espuma verde e amarela
Da noite de temporal!
Empurrada pelo vento,
Que em sonhos ouço ventar,
Ia à praia e via a espuma
Pelo areal a rolar...

Espuma verde e amarela
Das noites de temporal,
Quem te viu como eu te via,
Se te pudera olvidar!
E ai não me posso curar,
Nenhum remédio me vale,
Se te não tenho nos braços,
Se te não posso beijar...

Vila do Conde espraiada
Entre pinhais, rio e mar...
- Lembra-me Vila do Conde,
Passo a tarde a divagar...

Até Senhora da Guia
Me deixava ir devagar,
Até Senhora da Guia,
Que entra já dentro do mar,
Como uma pomba que as ondas
Receassem de levar;
Talvez como uma gaivota
Colhida num vendaval…
Ou rosa branca, trazida
Quem sabe de que lugar,
Que embaraçando nas pedras,
Ficasse ali, sem murchar,
O pé metido no rio,
A flor já n’água do mar.

Lá de cima do seu monte,
Sobre o fundo do pinhal,
Senhora Sant’Ana, ao longe,
Parece um lenço a acenar.
Convento de Santa Clara,
Que vulto fazes no ar,
Que aos marinheiros no mar
Deitas o «pelo sinal»!
E o sol desmaia na cal
Da capela a branquejar
Da Senhora do Socorro,
Onde sonhei me ir casar...

Da banda de lá do rio,
As gaivotas a voar
Sobre Azurara se esfolham
Como um grande roseiral!

Lembranças da minha terra,
Da minha terra natal,
Nenhum remédio me vale
Se me não vindes buscar!
Nenhum me pode salvar,
Morro em pecado mortal...

Vila do Conde, espraiada
entre pinhais, rio e mar...
- Lembra-me Vila do Conde,
Sinto os olhos a turvar...

Ia até Poça da Barca,
Meu muito amado local,
(E quem diz Poça da Barca
Diz Caxinas, sua igual)
E parava a olhar de longe,
Estátuas de bronze a andar,
As belas gentes do mar…
Parava a olhar o estendal
Das águas a rebrilhar,
E o arco-íris das cores,
Cada qual mais singular,
Que à tarde, pelos céus fora,
Se entornavam devagar...

Caía a noite, e eu, parado,
Via, subindo no ar,
A Lua juncar as ondas
De espadanas de luar...

Duma vez, estava eu triste,
Senti que o Anjo do Mal
Vinha para me tentar!
Caio de bruços na areia,
Ponho as mãos, e, sem rezar,
Aguardo que Deus me valha,
Me não deixe desgraçar…
Foi então que ouvi, distinta,
Distinta!, posso-o jurar,
Posto vagarosa, grave
Do seu repouso eternal,
A voz de Ana, que partira
Lá para melhor Lugar,
Do fundo do seu coval
Cantar-me o velho cantar:
«...Tomou-o um Anjo nos braços,
Não no deixou afogar»...

Nenhum remédio me vale,
Ou sou eu que não sei qual,
Se me não levam depressa
A ver o extenso areal
Onde se davam mistérios,
Que eu sabia decifrar...

Vila do Conde, espraiada
Entre pinhais, rio e mar...
- Lembra-me Vila do Conde,
Não me posso conformar...

Aquela funda toada,
Por toda a vila a toar,
Nas negras noites de inverno
Me vinha à cama acordar.
Vinha do cabo do mundo...?
Vinha do fundo do mar...?
Vinha do céu, ou do inferno?
Vinha de nenhum lugar...?

De olhos abertos no escuro
Me estarrecia a escutar...
E o meu gosto de a sondar
Que bem me fazia, ou mal!

Pela doçura outonal
Das tardinhas de Setembro,
Vai e vem, que bem me lembro!,
Como sabia embalar!
Vinha de longe, de longe,
Soturna e familiar,
Cada vez mais se achegando
Para se logo afastar...
Mas que viria dizer-me,
Que me diria, afinal,
Aquele canto fatal
Das ondas sempre a rolar...?

Fechava os olhos, sonhava...
Ai! Nem me quero lembrar!

Mas sei de um som quase igual
A que o posso comparar:
O som do vento rolando
Nas copas dum pinheiral...
Pinhal do Corgo, seguido
De outro mais longo pinhal,
E esse outro seguido de outro
Até onde a vista alcançar,
Como te posso olvidar
Se é na minh’alma, afinal,
Que chora, como num búzio,
Teu canto irmão do do mar...?

Fechava os olhos, sonhava...
Caía num meditar
Que era pairar noutros mundos...
Ai! Nem me quero lembrar!

Não quero, e nada mais lembro,
Nada me pode agradar,
Nada alcança distrair-me,
Nada me vem consolar,
Nenhum remédio me vale,
Nenhum me pode salvar,
Nenhum mitiga este mal
Que eu gosto de exacerbar,
Morro em pecado mortal,
Sem me poder confessar...,
Se me não levam depressa,
Depressa! Estou sem vagar,
A tomar ar! O meu ar
Da minha terra natal.

Vila do Conde, espraiada
Entre pinhais, rio e mar...


José Régio, Obra Completa - Poesia I,
Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2004
 
 


Sinopse

O Pe. Manuel Antunes (1918-1985) considerou Régio (1901-1969) "o escritor mais completo do século XX português". E de facto, o fundador da revista "Presença" (com João Gaspar Simões e Branquinho da Fonseca) escreveu uma obra diversa, da poesia à ficção narrativa (e nesta incluem-se contos, novelas e romances), ao teatro, à crítica (foi ele o primeiro a ver a grandiosidade de Pessoa), à literatura confessional.
Foi pela poesia que começou e o seu primeiro livro, publicado em 1925, "Poemas de Deus e do Diabo" revela já uma maturidade admirável e nele está incluído um dos poemas mais conhecidos de Régio, "Cântico Negro"
Neste 1º volume da sua Obra Completa, em curso na IN/CM, sob a direção de Eugénio Lisboa, estão ainda incluídos os livros "Biografia" (1929) e "As Encruzilhadas de Deus" (1936), com um ensaio de José Augusto Seabra, "José Régio, um poeta em estado místico", que o explica assim: "Tal como Claudel chamou a Rimbaud um místico em estado selvagem, de Régio diríamos que era, na sua religiosidade cristã heterodoxa, contraditória e torturada, um poeta em estado místico."
Os outros livros de poemas de Régio estão publicados no 2º volume da Obra Completa, que foi editada ao mesmo tempo. (daqui)
 
 

Jaime Isidoro nasceu a 21 de Março de 1924. Estudou desenho e pintura na Escola Soares dos Reis, no Porto, e a sua primeira exposição individual foi em 1945, na cidade do Porto, no então designado Salão Fantasia (na Rua 31 de Janeiro). 
O Porto foi o tema principal dos seus quadros, principalmente aguarelas.
Em paralelo com a sua carreira de pintor, manteve uma vasta ação de animador cultural, galerista e professor, estando ligado a momentos importantes das artes plásticas na cidade do Porto e no país.
 Promoveu os Encontros Internacionais de Arte na década de 1970 e editou a Revista de Artes Plásticas, que contou com a colaboração de críticos e artistas portugueses de relevo, demonstrando um interesse particular pela concretização de projetos culturais inovadores.
Em 1978, fundou a Bienal de Arte de Vila Nova de Cerveira, no Alto Minho, que viria a tornar-se na principal bienal de arte do país. 
Nos últimos anos da sua vida, Jaime Isidoro esteve ainda ligado à bienal, sendo presidente da mesa de assembleia geral do Projeto Núcleo de Desenvolvimento Cultural, que organiza a iniciativa de Cerveira. 
Recebeu os prémios Armando Basto (1954), António Carneiro (1955), Henrique Pousão (1957). Foi ainda distinguido com a Medalha de Mérito Cultural da Câmara de Cerveira (1982) e com as medalhas de ouro das câmaras do Porto, em 1988, e de Gaia, em 2002. Está representado em coleções públicas e privadas, entre as quais: Museu do Chiado; Museu Machado de Castro entre outras. 
Em 2006 apresentou uma exposição antológica da sua obra na Casa-Museu Teixeira Lopes, em Vila Nova. de Gaia
A 10 de Junho de 2006, foi feito Grande-Oficial da Ordem do Mérito. (daqui)