Strawberries, Nuts, and Citrus, 1822,
Que por ti perdi
O mar dentro da árvore, as nuvens
dentro da terra sem fim,
a luz. A luz dentro doutra luz
que limitava as mãos e as abria
para outras mãos dentro de um olhar.
Batem na fornalha os ventos.
Um cálice de vidro grosso com o licor
de fermentação caseira. Um prato
com avelãs e nozes e folhas de medronho.
Nas margens as portadas corridas
ganham um halo de candeeiros de rua
que se difunde na fluorescência do televisor,
na palidez rubra das pequenas luzes do rádio.
A última claridade do dia mistura-se
à primeira da noite.
Este vento na auto-estrada onde rebenta a chuva
não me vai forçar o coração; nem estas sebes
ladeadas de cimento suspenderão o voo
do que sou até ao que não és. Mas será
a carícia que no cinto treme, o calor do pescoço
descoberto, os vimes da cadeira donde te levantas
quando estou quase para me sentar.
Entre veios de relva desigual,
valados por cuidar abrigam
máquinas de desolação.
Formações de patos atravessam
o vidro polido do postigo.
O dia bate no jornal pousado
sobre a manta castanha que prende
os joelhos no silêncio de interior.
Outras vezes, as persianas já corridas,
um globo de lona ilumina o livro
na pequena mesa, um arame de flores
pendurado numa trave e o armário
com os objetos de estanho e meditação.
A vida acumulou-se em roldanas ao redor de tudo,
um fumo que sobe durante a noite sobre os mapas
enrolados na parede despida, há tanto nos esquecemos
de os desdobrar, de por eles chegar aos confins
do nosso mundo. E já estamos a desaparecer.
Joaquim Manuel Magalhães,
in 'As Escadas não têm Degraus', 1989.

Joaquim Manuel Magalhães é um ensaísta, poeta e professor na Faculdade de Letras de Lisboa.
Doutorou-se, em 1979, com uma tese sobre A Consequência da Literatura e do Real na Poesia de Dylan Thomas.
Codirigiu a revista As Escadas Não Têm Degraus (1989), organizou a edição da Obra Poética de Ruy Belo, da Antologia Poética de Ruy Cinatti e da Obra Poética
de Bernardo de Passos. Traduziu, entre outros autores, Kavafis. Autor
de duas obras críticas de referência para o estudo da poesia portuguesa
contemporânea, Os Dois Crepúsculos e Um Pouco da Morte, a publicação das coletâneas de poesia, Os Dias, Pequenos Charcos e Segredos, Sebes, Aluviões,
ambas de 1981, marcam uma nova etapa da poesia mais recente, permitindo
a inflexão para um realismo que surpreende pelo seu ancoramento no
concreto, por uma referencialidade que jazia, sobretudo na evocação da
ruralidade, no imaginário coletivo, surpreendida em pequenos detalhes,
em pequenos nadas da descrição. Extraordinariamente versátil e límpida, a
poesia de Joaquim Manuel Magalhães impõe-se, assim, segundo David Mourão-Ferreira,
"de livro para livro, pela convocação de inúmeros aspetos do mundo
natural e do mundo social, através de um discurso que estabelece, entre
ambos, os mais inesperados nexos de cumplicidade ou recíprocos processos
de rejeição, em que "figuras" como a lítotes, a antífrase, a alusão e a
catacrese desempenham papéis preponderantes, em contextos só talvez
aparentemente regidos pelos princípios de uma livre associação de
imagens ou de um suposto automatismo verbal (...)"(cf. MOURÃO-FERREIRA, David e SEIXO, Maria Alzira - Portugal, a Terra e o Homem, Antologia de Textos de Escritores do Século XX, II Série, Lisboa, F.C.G., 1980, p. 347).
O autor foi distinguido com o prémio 1999 para ensaio do PEN Clube Português. (daqui)
Qual o melhor momento para o jantar?
'Se alguém é rico, quando quiser, se é pobre, quando puder'.