segunda-feira, 30 de junho de 2025

“Prece no Mediterrâneo” - Poema de Ana Luísa Amaral



Quinto Cenni (Italian painter, engraver, lithographer and illustrator, 1845–1917),
 The port and fleet of Genoa in the early 14th century, 1909.
 
 

Prece no Mediterrâneo


Em vez de peixes, Senhor,
dai-nos a paz,
um mar que seja de ondas inocentes,
e, chegados à areia,
gente que veja com coração de ver,
vozes que nos aceitem.

É tão dura a viagem
e até a espuma fere e ferve,
e, de tão alta, cega
durante a travessia.

Fazei, Senhor, com que não haja
mortos desta vez,
que as rochas sejam longe,
que o vento se aquiete
e a vossa paz enfim
se multiplique.

Mas depois da jangada,
da guerra, do cansaço,
depois dos braços abertos e sonoros,
sabia bem, Senhor,
um pão macio,
e um peixe, pode ser?
do mar

que é também nosso


Ana Luísa Amaral, in Ágora,
Assírio & Alvim, 2019.

 

domingo, 29 de junho de 2025

"Adolescentes" - Poema de Pedro Homem de Mello

 

Venny Soldan-Brofeldt (Finnish painter, illustrator, graphic artist, wood sculptor 
and jewelry designer, 1863–1945), Antti, c. 1917.
 

Adolescentes 
 

Exaustos, mudos, sempre que os vejo,
Nos bancos tristes que há na cidade,
Sobe em mim próprio como um desejo
Ou um remorso da mocidade...

E até a brisa, perfidamente
Lhes roça os lábios pelos cabelos
Quando a cidade, na sua frente
Rindo e correndo, finge esquecê-los!

Eles, no entanto, sentem-na bela.
(Deram-lhe sangue, pranto e suor).
Quantos, mais tarde se vingam dela
Por tudo o que hoje sabem de cor!

E essas paragens nos bancos tristes
(Aquela estranha meditação!)
Traz-lhes, meu Deus, só porque existes,
A garantia do teu perdão! 


Pedro Homem de Melo
in "Eu Hei-de Voltar um Dia"
 


"Eu Hei-de Voltar um Dia" de Pedro Homem de Mello 
Lisboa: Edições Ática, 1966. 
 

"A adolescência é a idade dos anseios cósmicos e das paixões privadas, de preocupações sociais e agonias pessoais. É a idade da inconsistência e da ambivalência."

Haim Ginott, in "Between Parent and Teenager‎", 1967.
 

sábado, 28 de junho de 2025

"Depois de tudo, fica a lembrança dos lugares" - Poema de Maria do Rosário Pedreira

 


Karl Harald Alfred Broge (Danish painter, 1870–1955),
 Woman in the Light of a Candle, s.d.
 

 Depois de tudo, fica a lembrança dos lugares


Depois de tudo, fica a lembrança dos lugares e
dos seus nomes; dos quartos virados a poente
onde as imagens do rio nunca se repetem nas janelas
e todos os enredos são consentidos sobre as camas.

Ao fundo, havia um armário de madeira com espelho
onde as nossas roupas trocavam de perfume
para que os dias se vestissem sempre melhor.
E, sobre a cómoda, num espelho mais antigo,
a tarde refletia algumas das alegrias da infância.

Não era o quarto de nenhum de nós,
mas a ele regressávamos sempre com a pressa
de quem anseia os cheiros quentes e antigos
da casa conhecida; como quem espera ser aguardado.

Pressenti, porém, que não era eu quem aguardavas:
uma noite, pedi-te mais um cobertor em vez de um abraço.


Maria do Rosário Pedreira, in A Casa e o Cheiro dos Livros,
2ª. Ed. Lisboa: Gótica, 2007
 

 
Karl Harald Alfred Broge (Danish painter, 1870–1955),
Interior with Sunlight from an Open Window, 1907.



"Uma casa morre, se não é habitada com amor." 


Mia Couto
, em O Outro Pé da Sereia
(1ª ed. da Caminho em 2006)
 

sexta-feira, 27 de junho de 2025

"Nenhuma música" e "As vozes" - Poemas de Manuel António Pina



Cecilia Beaux (American artist, 1855–1942), Man with the Cat –
Portrait of Henry Sturgis Drinker
(1850–1937), 1898.
Smithsonian American Art Museum



Nenhuma música


O gato olha-me
ou o meu olhar olhando-o?
E eu o que vejo senão
a mesma única solidão?

Chamo-o pelo nome,
pela oposição.
Em vão:
sou eu quem responde.

Virou-se e saltou
para o parapeito
real e perfeito,
sem nome e sem corpo.
(Também eu estou,
como ele, morto).


Manuel António Pina
, in Cuidados Intensivos
Assírio & Alvim, 1994
 
 
Cecilia Beaux, Les Derniers Jours d'Enfance, c. 1883-1885.
Oil on canvas, 46 x 54, Pennsylvania Academy of the Arts.


As vozes


A infância vem
pé ante pé
sobe as escadas
e bate à porta

— Quem é?
— É a mãe morta
— São coisas passadas
— Não é ninguém

Tantas vozes fora de nós!
E se somos nós quem está lá fora
e bate à porta? E se nos fomos embora?
E se ficámos sós?


Manuel António Pina,
in Nenhuma palavra e nenhuma lembrança
Assírio & Alvim, 1999

quinta-feira, 26 de junho de 2025

"Irmã cotovia" - Poema de A. M. Pires Cabral

 
 
Pál Szinyei Merse (Hungarian painter and art educator, 1845–1920), Skylark, 1882.
Hungarian National Gallery
 

Irmã cotovia


Vive rente ao solo e é no solo
que faz ninho e sacia a fome
com as coisas do chão e em silêncio.

Porém, quando precisa de cantar,
muda de elemento: deixa a terra,
sobe altíssimo, até onde
nenhum outro pássaro se arrisca.

Dir-se-ia
que precisa de um palco.

Então dos limites do voo, quase imóvel,
vai derramando breves, repetidos
jorros de júbilo, assim como quem diz:
vejam como estou alto, sustentada
por tão frágeis asas.

Depois que desafogou o peito
das inadiáveis premências da voz,
apeia-se, torna ao solo,
dissimula-se na cor parda da terra,

como se nunca tivesse voado. 


A. M. Pires Cabral, in Arado, 2009


 
[A laverca, laverca-eurasiática ou laverca-comum (Alauda arvensis) é uma ave passeriforme da família dos Alaudídeos, presente em Portugal, assumindo-se como o tipo de cotovia mais comum na Europa.]
 

Cotovia
 
Na floresta fria,
Sem apego a nada,
Canta a cotovia.


Haicai de Matsuo Bashō
Tradução livre de R. D. Diéguez e Bernardo Souto.
(daqui)

quarta-feira, 25 de junho de 2025

"Labirinto" - Poema de José Saramago

 

 
Rafał Olbiński (Polish illustrator, painter, and educator, living in the 
United States, b. 1943), A labyrinth of hearts.
 

Labirinto


Em mim te perco, aparição noturna,
Neste bosque de enganos, nesta ausência,
Na cinza nevoenta da distância,
No longo corredor de portas falsas.

De tudo se faz nada, e esse nada
De um corpo vivo logo se povoa,
Como as ilhas do sonho que flutuam,
Brumosas, na memória regressada.

Em mim te perco, digo, quando a noite
Vem sobre a boca colocar o selo
Do enigma que, dito, ressuscita
E se envolve nos fumos do segredo.

Nas voltas e revoltas que me ensombram,
No cego tatear de olhos abertos,
Qual é do labirinto a porta máxima,
Onde a réstia de sol, os passos certos?

Em mim te perco, insisto, em mim te fujo,
Em mim cristais se fundem, se estilhaçam,
Mas quando o corpo quebra de cansado
Em ti me venço e salvo, me encontro em ti.


José Saramago
, in Os Poemas Possíveis.
Portugália Ed., 1966.
 

terça-feira, 24 de junho de 2025

"Mestre, são plácidas" - Poema de Ricardo Reis / Fernando Pessoa



Sir Arthur Streeton (Australian landscape painter and a leading member
of the Heidelberg School, 1867-1943), "
Narcissi". Oil on canvas.


Mestre, são plácidas


Mestre, são plácidas 
Todas as horas 
Que nós perdemos. 
Se no perdê-las, 
Qual numa jarra, 
Nós pomos flores.

Não há tristezas 
Nem alegrias 
Na nossa vida. 
Assim saibamos, 
Sábios incautos, 
Não a viver,

Mas decorrê-la, 
Tranquilos, plácidos, 
Tendo as crianças 
Por nossas mestras, 
E os olhos cheios 
De Natureza...

À beira-rio, 
À beira-estrada, 
Conforme calha, 
Sempre no mesmo 
Leve descanso 
De estar vivendo.

O tempo passa, 
Não nos diz nada. 
Envelhecemos. 
Saibamos, quase 
Maliciosos, 
Sentir-nos ir.

Não vale a pena 
Fazer um gesto. 
Não se resiste 
Ao deus atroz 
Que os próprios filhos 
Devora sempre.

Colhamos flores. 
Molhemos leves 
As nossas mãos 
Nos rios calmos, 
Para aprendermos 
Calma também.

Girassóis sempre 
Fitando o Sol, 
Da vida iremos 
Tranquilos, tendo 
Nem o remorso 
De ter vivido. 

12-6-1914 

Odes de Ricardo Reis. Fernando Pessoa
(Notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.)
Lisboa: Ática, 1946 (imp.1994). - 13. 
 

"Junho" - Poema de Olavo Bilac

 


Alberto da Veiga Guignard (Pintor e professor brasileiro, 1896-1962), 
"Tarde de São João", 1959. Óleo sobre tela,  30 x 40 cm. 


Junho 
 

Coro de crianças:

Passem os meses desfilando!
Venha cada um por sua vez!
Dancemos todos, escutando
O que nos conta cada mês!

Junho:

Em chamas alvissareiras,
Ardem, crepitam fogueiras...
— E os balões de S. João
Vão luzir, entre as neblinas,
Como estrelas pequeninas,
Entre as outras, na amplidão.

Não há casinha modesta
Que não se atavie, em festa,
Nestas noites, a brilhar:
Não se recordam tristezas . . .
Estalam bichas chinesas,
Estouram foguetes no ar.

Fogos alegres, pistolas,
Bombas! ao som das violas,
Ardei! cantai! crepitai!
Num largo e claro sorriso.
Seja a terra um paraíso!
Folgai, crianças, folgai!

Coro de crianças:

Aí vem Julho, o mês do frio...
Vamos os corpos aquecer,
Acelerando o rodopio...
— Pode outro mês aparecer!


Olavo Bilac
, em Poesias infantis.
RJ: Francisco Alves. 1929.
 
 
 Óleo sobre tela, 61 x 46 cm. Museu de Arte da Pampulha


Quando vieste da festa


Quando vieste da festa,
Vinhas cansada e contente.
A minha pergunta é esta:
Foi da festa ou foi da gente?

s.d.

Fernando Pessoa, Quadras ao Gosto Popular.

(Texto estabelecido e prefaciado por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.)
Lisboa: Ática, 1965. (6ª ed., 1973). - 61.
 

segunda-feira, 23 de junho de 2025

"Que por ti perdi" - Poema de Joaquim Manuel Magalhães



Raphaelle Peale (American painter of still-life, 1774–1825), 
Strawberries, Nuts, and Citrus, 1822,

 

Que por ti perdi 


O mar dentro da árvore, as nuvens
dentro da terra sem fim,
a luz. A luz dentro doutra luz
que limitava as mãos e as abria
para outras mãos dentro de um olhar.

Batem na fornalha os ventos.
Um cálice de vidro grosso com o licor
de fermentação caseira. Um prato
com avelãs e nozes e folhas de medronho.
Nas margens as portadas corridas
ganham um halo de candeeiros de rua
que se difunde na fluorescência do televisor,
na palidez rubra das pequenas luzes do rádio.

A última claridade do dia mistura-se
à primeira da noite.
Este vento na auto-estrada onde rebenta a chuva
não me vai forçar o coração; nem estas sebes
ladeadas de cimento suspenderão o voo
do que sou até ao que não és. Mas será
a carícia que no cinto treme, o calor do pescoço
descoberto, os vimes da cadeira donde te levantas
quando estou quase para me sentar.

Entre veios de relva desigual,
valados por cuidar abrigam
máquinas de desolação.
Formações de patos atravessam
o vidro polido do postigo.
O dia bate no jornal pousado
sobre a manta castanha que prende
os joelhos no silêncio de interior.
Outras vezes, as persianas já corridas,
um globo de lona ilumina o livro
na pequena mesa, um arame de flores
pendurado numa trave e o armário
com os objetos de estanho e meditação.

A vida acumulou-se em roldanas ao redor de tudo,
um fumo que sobe durante a noite sobre os mapas
enrolados na parede despida, há tanto nos esquecemos
de os desdobrar, de por eles chegar aos confins
do nosso mundo. E já estamos a desaparecer. 


Joaquim Manuel Magalhães,
in 'As Escadas não têm Degraus', 1989.


Joaquim Manuel Magalhães (daqui)
 

Joaquim Manuel Magalhães é um ensaísta, poeta e professor na Faculdade de Letras de Lisboa.
Doutorou-se, em 1979, com uma tese sobre A Consequência da Literatura e do Real na Poesia de Dylan Thomas.
Codirigiu a revista As Escadas Não Têm Degraus (1989), organizou a edição da Obra Poética de Ruy Belo, da Antologia Poética de Ruy Cinatti e da Obra Poética de Bernardo de Passos. Traduziu, entre outros autores, Kavafis. Autor de duas obras críticas de referência para o estudo da poesia portuguesa contemporânea, Os Dois Crepúsculos e Um Pouco da Morte, a publicação das coletâneas de poesia, Os Dias, Pequenos Charcos e Segredos, Sebes, Aluviões, ambas de 1981, marcam uma nova etapa da poesia mais recente, permitindo a inflexão para um realismo que surpreende pelo seu ancoramento no concreto, por uma referencialidade que jazia, sobretudo na evocação da ruralidade, no imaginário coletivo, surpreendida em pequenos detalhes, em pequenos nadas da descrição. Extraordinariamente versátil e límpida, a poesia de Joaquim Manuel Magalhães impõe-se, assim, segundo David Mourão-Ferreira, "de livro para livro, pela convocação de inúmeros aspetos do mundo natural e do mundo social, através de um discurso que estabelece, entre ambos, os mais inesperados nexos de cumplicidade ou recíprocos processos de rejeição, em que "figuras" como a lítotes, a antífrase, a alusão e a catacrese desempenham papéis preponderantes, em contextos só talvez aparentemente regidos pelos princípios de uma livre associação de imagens ou de um suposto automatismo verbal (...)"(cf. MOURÃO-FERREIRA, David e SEIXO, Maria Alzira - Portugal, a Terra e o Homem, Antologia de Textos de Escritores do Século XX, II Série, Lisboa, F.C.G., 1980, p. 347).
O autor foi distinguido com o prémio 1999 para ensaio do PEN Clube Português. (daqui)

 


Raphaelle Peale, A Dessert, 1814, National Gallery of Art.
 
 
 Qual o melhor momento para o jantar? 
'Se alguém é rico, quando quiser, se é pobre, quando puder'.
  

domingo, 22 de junho de 2025

"Greve" - Poema de Nuno Júdice

 

 
Santiago Rusiñol (Spanish painter, poet, journalist, collector and playwright, 
1861-1931), Portrait of Miquel Utrillo (Spanish art critic, scenographer,
 painter and engineer, 1862-1934), c. 1890-1891.

Greve


Calma, diz o poema ao poeta
que quer fazer uma greve:
as rimas circulam na gaveta,
e o verso é de quem o escreve.

Pode esgotar-se a inspiração,
ou subir na bolsa a métrica,
que as metáforas têm mão
nesta fórmula geométrica.

É redonda a linguagem
no quadrado que elas inventam;
e nasce uma nova imagem
de cada vez que as acorrentam.


Nuno Júdice

(Ensaísta, poeta, ficcionista e professor universitário português, 1949–2024)
(daqui)

sábado, 21 de junho de 2025

"Chega o verão" - Poema de Cecília Meireles

 


Gustavo Dall'Ara (Pintor e desenhista italiano que imigrou para o Brasil, 1865-1923),
"Praia do Flamengo", 1917, Coleção José Carlos Bruzzi Castello.
 

Chega o verão


Vamos abrir as janelas ao vento salgado do mar.
Chega o verão, vagarosa nau, de um trémulo horizonte,
com seu andar de floresta e seus odores enevoados
de resinas espessas e tormentas no alto da tarde.

Nuvens de cupins jorram da sombra, girando em cegueira.
Asas sem peso chovem o arco-íris, semeiam nácar pelos meus dedos.
Oh, por que serão feitas estas mínimas vidas
com tanta perfeição para instantâneas se desfazerem?

Vamos fechar as janelas sobre a noite, com seu vento de fogo.
Aqui vêm, despojados, os cupins pelas mesas,
arrastando-se por entre as próprias asas caídas.
Aqui vêm, num cortejo de desvalidos, de sentenciados...

Oh, dizei-me, dizei-me, que anjos, que santos, que potências
se ocupam desse silêncio movediço, do apressado
itinerário dos moribundos frágeis que passam! 


Cecília Meireles

in Poesia Completa - Dispersos (1918-1964)




Gustavo Dall'Ara, Cais do mercado, Rio de Janeiro, 1901.


A poesia impossível


Inquietação de marinheiro
Que sente o mar e seu chamado...
Não poder embarcar!

Prisioneiro do nada,
Pássaro mutilado
Que a distância fascina...


Helena Kolody, in "Vida breve", 1964.

sexta-feira, 20 de junho de 2025

"Nota 4" - Poema de Adília Lopes



Robert James Gordon
 (English painter, 1845-1932), Woman Reading, s.d. 
 

Nota 4


Se tu amas por causa da beleza, então não me ames!
Ama o Sol que tem cabelos doirados!

Se tu amas por causa da juventude, então não me ames!
Ama a Primavera que fica nova todos os anos!

Se tu amas por causa dos tesouros, então não me ames!
Ama a Mulher do Mar: ela tem muitas pérolas claras!

Se tu amas por causa da inteligência, então não me ames!
Ama Isaac Newton: ele escreveu os Princípios Matemáticos da Filosofia Natural!

Mas se tu amas por causa do amor, então sim, ama-me!
Ama-me sempre: amo-te para sempre! 


Adília Lopes
, in "Dobra: Poesia reunida"
Assírio & Alvim
 

quinta-feira, 19 de junho de 2025

"O Menino Doente" - Poema de Manuel Bandeira


 
John Bond Francisco (American painter and violinist, 1863-1931), The Sick Child, 1893,
Smithsonian American Art Museum.



O Menino Doente



O menino dorme.

Para que o menino
Durma sossegado,
Sentada a seu lado
A mãezinha canta:

— "Dodói, vai-te embora!
"Deixa o meu filhinho.
"Dorme... dorme... meu..."

Morta de fadiga,
Ela adormeceu.

Então, no ombro dela,
Um vulto de santa,
Na mesma cantiga,
Na mesma voz dela,
Se debruça e canta:

— "Dorme, meu amor.
"Dorme, meu benzinho..."

E o menino dorme.


Manuel Bandeira,
in O Ritmo Dissoluto, 1924




O Ritmo Dissoluto de Manuel Bandeira 
Editora: GLOBAL



SINOPSE

Considerado o primeiro grande livro de poemas de Manuel Bandeira, O ritmo dissoluto representa o amadurecimento do poeta de Pasárgada, que, nesta composição, encontra e domina uma fala mais pessoal e mais intimista com os personagens e situações retratadas.

Publicada anteriormente como parte do volume Poesias, de 1924, acompanhada de dois livros anteriores (A cinza das horas, de 1917, e Carnaval, de 1919), a obra, lançada agora pela Global Editora, com apresentação de Alcides Villaça, traz alguns poemas célebres de Bandeira como “Na Rua do Sabão”, “Berimbau” e “Os sinos”, além de um caderno iconográfico com a capa da primeira edição do volume Poesias, fotos do poeta e uma resenha sobre o livro publicada em 1925 no jornal Correio da Manhã. O livro promove um feito definitivo de Bandeira: a apropriação do poético que o toma de súbito, na força insuspeitada de um momento significativo que passaria sem registo se não fosse a absorvente presença de quem o reconhece, o acolhe e o formaliza com fluência natural. (daqui)

 

"A agonia no jardim" - Poema de Ana Luísa Amaral

 

Vincent van Gogh (Dutch Post-Impressionist painter, 1853–1890), 
Olive Grove, Saint-Rémy, 1889, Gothenburg Museum of Art.


A agonia no jardim

 
A solidão avança como onda,
ausente
toda luz

Saísse eu deste quadro,
poderia tocar o tronco amargo,
os ramos mais esguios dessa oliveira,
libertar-me das mãos

Podia ainda, se quisesse,
inventar vento
aproveitando a chama que ele
ostenta

Devo ceder a quê?
À história que contaram
sobre mim?

Eles não sabem da história mais de dentro,
a que me fez chegar até aqui,
sabendo finalmente:

que dizer sim
era morrer por dentro

que dizer não
era afogar-me nessa longa chama,
numa Palavra –

em mim


Ana Luísa Amaral
, in Ágora
Assírio & Alvim, 2019
 
 

Ágora de Ana Luísa Amaral 
Editor: Assírio & Alvim 
Edição/reimpressão: 10-2019
 

SINOPSE

No mais recente livro de Ana Luísa Amaral, que conta com reproduções a cores de grandes obras de arte de todos os tempos, a poeta apresenta-nos um conjunto de poemas belos e terríveis, comoventes e violentos, em permanente diálogo com a Bíblia e com a arte, mas sobretudo com o nosso tempo.


A Leste do Paraíso

Antes ser tudo e livre
do que bom mas humilde

Assim pensara então
e agira

E o oriente lhe foi destinado:
terra de mil castigos
de difíceis colheitas; mais
suor

Só depois descobriu
que lá o sol nascia
e que podia falar das coisas
todas

Mas com quem?
 

quarta-feira, 18 de junho de 2025

"A Arrumadora" - Poema de Teresa Rita Lopes



William Henry Margetson (British painter and illustrator, 1861-1940),
'The lady of the house', oil on canvas.
 

A Arrumadora


Era uma mulher que tinha sempre pressa e nem sabia bem de quê
Não podia estar parada
dizia
e por isso tinha que estar sempre a arrumar
tudo à sua volta.
Do que mais gostava era de pôr coisas no lixo.
Depois de arrumar o que já estava arrumado e ela desarrumara
para poder arrumar
punha no lixo tudo o que podia
e não podia:
toda a sua casa se queixava que lhe desapareciam coisas.
Morreu nova:
o deus que a criara imitou-a
e pô-la rapidamente
no lixo.


Teresa Rita Lopes

 

 
Teresa Rita Lopes (daqui)

[Maria Teresa Rita Lopes (Faro, 12 de setembro de 1937 – Almada, 14 de junho de 2025) foi uma premiada escritora portuguesa, conhecida pelo trabalho de investigação em torno da obra de Fernando Pessoa.]

terça-feira, 17 de junho de 2025

"Talvez" e "A roseira da manhã" - Poemas de Maria Azenha

 


Armand Point (French painter, engraver and designer, 1861–1932),
La Joie des choses, 1884, Museum of Fine Arts of Nancy.



Talvez 


Talvez até a Vida seja simples
Os meus lábios são por exemplo
Feitos de vento
E a minha voz é uma cortina de fumo
Para me defender do frio

Lembrei-me um dia
De cortar os dedos
Para não mais escrever poesia.
(Nunca chorei tanto
em toda a minha Vida!…)
Hoje tenho a convicção das dunas.
E sei que os meus cabelos
Escrevem 365 livros por ano
E
Procuro sozinha o Infinito.




 
Armand Point, Reminiscing by the Pond, 1893


A roseira da manhã


a roseira da manhã
ou um pássaro azul
para o branco coração das mãos

ou ainda o lago dos teus olhos escuros
para os peixes cegos do meu amor
 

 
 
Maria Azenha (daqui)
 
Maria Azenha (Coimbra, dezembro de 1945) é uma poeta portuguesa. Licenciou-se em Ciências Matemáticas pela Universidade de Coimbra. Exerceu funções docentes nas Universidades de Coimbra, Évora e Lisboa. Desempenhou atividade docente no Quadro de Nomeação Definitiva na Escola de Ensino Artístico António Arroio. Membro da Associação Portuguesa de Escritores e Membro de Honra do Núcleo Académico de Letras e Artes de Lisboa. 
 

segunda-feira, 16 de junho de 2025

"Nalgum lugar em que eu nunca estive" - Poema de E. E. Cummings


 
Vittorio Matteo Corcos (Italian painter, 1859–1933), 
Portrait of a Young Woman, 1896.


Nalgum lugar em que eu nunca estive


nalgum lugar em que eu nunca estive, alegremente além
de qualquer experiência, teus olhos têm o seu silêncio:
no teu gesto mais frágil há coisas que me encerram,
ou que eu não ouso tocar porque estão demasiado perto
teu mais ligeiro olhar facilmente me descerra
embora eu tenha me fechado como dedos, nalgum lugar
me abres sempre pétala por pétala como a Primavera abre
(tocando subtilmente, misteriosamente) a sua primeira rosa
ou se quiseres me ver fechado, eu e
minha vida nos fecharemos belamente, de repente,
assim como o coração desta flor imagina
a neve cuidadosamente descendo em toda a parte;
nada que eu possa perceber neste universo iguala
o poder de tua imensa fragilidade: cuja textura
compele-me com a cor de seus continentes,
restituindo a morte e o sempre cada vez que respira
(não sei dizer o que há em ti que fecha
e abre; só uma parte de mim compreende que a
voz dos teus olhos é mais profunda que todas as rosas)
ninguém, nem mesmo a chuva, tem mãos tão pequenas


E. E. Cummings, Poemas
Organização, tradução e notas de Augusto de Campos.
Campinas: Editora Unicamp, 2011.

domingo, 15 de junho de 2025

"Em plena vida e violência" - Poema de Fernando Pessoa


 
Manuel Amado (Arquiteto e pintor português, 1938-2019),
Janela com grades, 1990. Óleo sobre tela, 146 x 97 cm.


Em plena vida e violência


Em plena vida e violência
De desejo e ambição,
De repente uma sonolência
Cai sobre a minha ausência.
Desce ao meu próprio coração.

Será que a mente, já desperta
Da noção falsa de viver,
Vê que, pela janela aberta,
Há uma paisagem toda incerta
E um sonho todo a apetecer?

s.d.

Fernando Pessoa
, Poesias Inéditas (1930-1935).
(Nota prévia de Jorge Nemésio)
Lisboa: Ática, 1955 (imp. 1990) - 40. 

 

sábado, 14 de junho de 2025

"O Grito" - Poema de José Fanha

 

O Grito


De ti que inventaste
a paz
a ternura
e a paixão
o beijo
o beijo fundo intenso e louco
e deixaste lá para trás
a côncava do medo
à hora entre cão e lobo
à hora entre lobo e cão.

De ti que em cada ano
cada dia cada mês
não paraste de acender
uma e outra vez
a flor elétrica
do mais desvairado
coração.

De ti que fugiste à estepe
e obrigaste
à ordem dos caminhos
o pastor
a cabra e o boi
e do fundo do tempo
me chamaste teu irmão.

De ti que ergueste a casa
sobre estacas
e pariste
deuses e linguagens
guerras
e paisagens sem alento.

De ti que domaste
o cavalo e os neutrões
e conquistaste
o lírico tropel
das águas e do vento.

De ti que traçaste
a régua e esquadro
uma abóboda inquieta
semeada de nuvens e tritões
santidades e tormentos.

De ti que levaste
a voluta da ambição
a trepar ereta
contra as leis do firmamento.

De ti que deixaste um dia
que o teu corpo se cansassse
desta terra de amargura e alegria
e se espalhasse aos quatro cantos
diluído lentamente
no mais plácido
silente
e negro breu.

De ti
meu irmão
ainda ouço
o grito que deixaste
encerrado
em cada pétala do céu
cada pedra
cada flor.
O grito de revolta
que largaste à solta
e que ficou para sempre
em cada grão de areia
a ressoar
como um pálido rumor.

O grito que não cansa
de implorar
por amor
e mais amor
e mais amor.


José Fanha,
in "Breve tratado das coisas da arte e do amor"



Obras de José Fanha,
"Breve tratado das coisas da arte e do amor"
Lisboa: Ulmeiro, 1995
 
 
SINOPSE

"Breve tratado das coisas da arte e do amor" não passa de um único cântico repartido em vários poemas. Um cântico aos afetos mais profundos e por isso sempre urgentes. A terra, a casa, o filho, os amigos, as cores e as formas, os cheiros e os sons. E sempre o amor, a mulher amada, o amor.
 

sexta-feira, 13 de junho de 2025

"Fogo de Artifício" - Poema de Pedro Mexia



Raoul Dufy (French Fauvist painter, 1877-1953),
Feu d’artifice à Nice, le Casino de la Jetée-Promenade, 1947.


Fogo de Artifício


Regresso a casa, o céu verde e amarelo,
alguém em festa, descobriu com certeza
alguma razão para isso, o próprio trânsito

é escasso e perguntas se eu não sei
para onde ir, se sou de Lisboa ou estrangeiro,
se me perdi do meu grupo, porque estou

excessivamente vestido, que idade tenho
ao certo, e que importa ter o conforto
de dogmas e almofadas quando se parece

sempre um fugitivo, de cidade em cidade
mas sempre no mesmo sítio, sempre
saindo de casa e regressando depois

de hora e meia de celulóide, com autores
alemães que morreram cedo demais
debaixo do braço e em paperback,

porque tenho medo do Verão e da chuva
e saí do poema «Caranguejola» e tropeço
em aforismos para me justificar de ter bolsos

demasiado fundos para pouco guardar,
e porque fico assim vendo à meia-noite
tanto fogo-de-artifício e nenhum ruído


Pedro Mexia, in "Poemas Reunidos"
 
 
 
"Poemas Reunidos" de Pedro Mexia
Tinta da China, 2024
 
 
SINOPSE 

Grande antologia poética de Pedro Mexia, Poemas escolhidos pelo autor — agora revistos e reorganizados — a partir de vários livros, muitos já indisponíveis e incluindo também inéditos.

«Ao fim de alguns anos, noto que existe nestes versos uma insistente posição idealista, no sentido filosófico, e uma intermitente atitude idealista, no sentido vulgar do termo. Por um lado, acredito mais na consciência do que na matéria, por outro afastei-me de umas quantas hipóteses ingénuas, românticas ou inverosímeis.» - Pedro Mexia
 
«Muitas vezes dolente, muitas outras irónica, a sua carga de sentimento tende mais para o princípio de realidade do que para o princípio de sentimentalidade, sendo nítidos os seus esforços de afastamento quer de fortes cargas românticas, quer de quaisquer ecos expressionistas. Pode ser difícil, no modo em que se encontram hoje enlaçados os fios do novelo poético, perceber-lhe plenamente as suas seguras valias. Mas há autores, como este, que conseguem forçar a criação de um gosto a par de outros gostos, e nisso Mexia tem mostrado sempre que sabe quanto a poesia de um poeta não deve existir para impedir a poesia de qualquer outro poeta. Apenas lhe importa a qualidade de que é capaz.» - Joaquim Manuel Magalhães, Poesia Portuguesa Contemporânea, 2022
 


Raoul Dufy, Vue de la terrasse de Sainte-Adresse, soleil couchant, vers 1925.
Huile sur toile, 38,5 x 46 cm, Musée des Beaux-Arts de Nancy.


Olho a noite pela vidraça.
Um beijo, que passa,
Acende uma estrela.

Guilherme de Almeida
 
(Haicai)