Nictofagia
Se eu pudesse beber-te, ó noite,
Até encontrar o teu gosto,
Ou mordendo a ponta do açoite
Da tua treva no meu rosto,
Achasse a planície de lume
De que és uma aresta de estrelas
E sonhando sem peso e volume
Fosse um sonho de chão a tece-las
E na praia de um trilo sem flauta,
Instrumento das harpas do fundo
Duma água escorrida da pauta
Da manhã mais antiga do mundo,
Me estendesses, ó noite florida
Das sementes que trazes no punho,
Uma adolescência impelida
Pelo arco das brisas de junho!
Natália Correia, in Passaporte, 1958
SINOPSE
"Passaporte" é um dos primeiros livros de Natália Correia (1923–1993) ligado à "tendência surrealista da poesia portuguesa" que contém os poemas: Passaporte, Boletim Meteorológico, Discurso Directo, Biografia Encomendada pela Insónia, Êxodo, O Poema, Metamorfoses necessárias para a Reconquista do Mundo, A Demiurgia do Riso, Ricochete, Homenagem a Titus Lucretius Carus, Poema destinado a haver Domingo, Nictofagia, Projecto de Bodas, Elegia dos Amantes Lúcidos, Ultrabiográfico, Mar Uterino.
Em "Passaporte", Natália Correia explora temas como a identidade,
a viagem e a busca por um lugar no mundo, utilizando uma linguagem que
transita entre o surrealismo e o realismo, com um toque de irreverência e
paixão. A obra reflete a personalidade da autora, que, segundo críticos
da Universidade do Porto, era alguém que "chega adiantada no tempo" e
que não se encaixa em normas ou ideologias.


Sem comentários:
Enviar um comentário