quarta-feira, 2 de julho de 2025

"Enquanto longe divagas" - Poema de Sophia de Mello Breyner Andersen

 


Vittorio Matteo Corcos (Italian painter, 1859–1933), "Dreams" ("Sogni"), 1896.
Galleria Nazionale d'Arte Moderna e Contemporanea di Roma
 
 
 
Enquanto longe divagas

I

Enquanto longe divagas
E através de um mar desconhecido esqueces a palavra
— Enquanto vais à deriva das correntes
E fugitivo perseguido por inomeadas formas
A ti próprio te buscas devagar
— Enquanto percorres os labirintos da viagem
E no país de treva e gelo interrogas o mudo rosto das sombras
— Enquanto tateias e duvidas e te espantas
E apenas como um fio te guia a tua saudade da vida
Enquanto navegas em oceanos azuis de rochas negras
E as vozes da casa te invocam e te seguem
Enquanto regressas como a ti mesmo ao mar
E sujo de algas emerges entorpecido e como drogado
— Enquanto naufragas e te afundas e te esvais
E na praia que é teu leito como criança dormes
E devagar devagar a teu corpo regressas
Como jovem toiro espantado de se reconhecer
E como jovem toiro sacodes o teu cabelo sobre os olhos
E devagar recuperas tua mão teu gesto
E teu amor das coisas sílaba por sílaba

II

O meu amor da vida está paralisado pelo teu sono
É como ave no ar veloz detida
Tudo em mim se cala para escutar o chão do teu regresso

III

Pois no ar estremece tua alegria
— Tua jovem rijeza de arbusto —
A luz espera teu perfil teu gesto
Teu ímpeto tua fuga e desafio
Tua inteligência tua argúcia teu riso

Como ondas do mar dançam em mim os pés do teu regresso


Junho de 1974

Sophia de Mello Breyner Andersen,
em "O nome das coisas", 1977.


O Nome das Coisas é uma obra de Sophia de Mello Breyner Andersen publicada em 1977, em que a autora denuncia algumas situações específicas por ela inaceitáveis, como a guerra colonial ou erros políticos.


 
Vittorio Matteo Corcos, Stella and Piero,1889


"O amor, admito-o com um suspiro, é muito mais forte que a literatura, porém o amor na literatura é bem mais belo do que na própria vida. Ao menos de vez em quando permite iludirmo-nos."

Stefan Bollmann, in "Mulheres que lêem são perigosas"
 
[Stefan Bollmann nasceu em 1958 e estudou Germânicas, Teatro, História e Filosofia. Atualmente é leitor, autor e editor de livros em Munique.]

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