quarta-feira, 14 de março de 2012

"Préstito fúnebre" - Poema de Guerra Junqueiro


Robert Duncan (b.1952, Salt Lake City, Utah, United States



Préstito fúnebre 


Que alegrias virgens, campesinas, fremem 
Neste imaculado, límpido arrebol! 
Como os galos cantam!... como as noras gemem!... 
Nos olmeiros brancos, cujas folhas tremem, 
Refulgente e novo passarinha o sol!... 

Pela estrada, que entre cerejais ondeia, 
Uma pequerrucha, – tró-la-ró-la-rá – 
Vai cantando e guiando o carro para a aldeia... 
São os bois enormes, e a carrada cheia 
Com um castanheiro apodrecido já. 

Oh, que donairosa, linda boieirinha! 
Grandes olhos garços, sorrisinho arisco... 
D’aguilhada em punho lépida caminha, 
Com a graça aérea d’ave ribeirinha, 
Verdelhão, alvéola, toutinegra ou pisco. 

Loira, mas do loiro fulvo das abelhas; 
Fresca como os cravos pelo amanhecer; 
Brincos de cerejas presos nas orelhas, 
Na boquita rósea três canções vermelhas, 
Na aguilhada, ao alto, uma estrelinha a arder! 

Descalcinha e pobre, mas sem ar mendigo, 
Nada mais esbelto, mais encantador! 
Veste-a d’oiro a glória do bom sol amigo... 
O chapéu é palha que ainda há um mês deu trigo, 
A saíta é linho ainda há bem pouco em flor!... 

E os dois bois enormes, colossais, fleumáticos, 
Na aleluia imensa, triunfal, da aurora, 
Vão como bondosos monstros enigmáticos, 
Almas por ventura d’ermitões extáticos, 
Ruminando bíblias pelos campos fora!... 

Ao arado e ao carro presos noite e dia, 
Como dois grilhetas, quer de inverno ou verão! 
E, submissos, uma pequerrucha os guia! 
E nos sulcos que abrem canta a cotovia, 
As boninas riem-se e amadura o pão!... 

Levam as serenas frontes majestosas 
Enramalhetadas como dois altares 
Madressilvas, loiros, pâmpanos, mimosas, 
Abelhões ardentes desflorando rosas, 
Borboletas claras em noivado, aos pares... 

E eis no carro morto o castanheiro, enquanto 
Melros assobiam nos trigais além... 
Heras amortalham-no em seu verde manto... 
Deu-lhe a terra o leite, dá-lhe a aurora o pranto... 
Que feliz cadáver, que até cheira bem!... 

Musgos, líquenes, fetos – química incessante! – 
Fazem montões d’almas dessa podridão... 
Já nesse esqueleto seco de gigante, 
Sob a luz vermelha, num festim radiante, 
Mil milhões de vidas pululando estão!... 

Sempre à fortaleza casa-se a doçura 
Como o leão da Bíblia morto num vergel, 
Do seu tronco ainda na caverna escura 
Um enxame d’oiro rútilo murmura, 
Construindo um favo cândido de mel!... 

Oh, os bois enormes, mansos como arminhos, 
Meditando estranhas, incubas visões!... 
Pousam-lhes nas hastes, vede, os passarinhos, 
E por sobre os longos, tórridos caminhos 
Dos seus olhos caem bênçãos e perdões... 

Chorarão o velho castanheiro ingente, 
Sob o qual dormiram sestas estivais? 
Almas do arvoredo, o seu olhar plangente 
Saberá acaso misteriosamente 
Traduzir as línguas em que vós falais?!... 

Castanheiro morto! que é da vida estranha 
Que no ovário exíguo duma flor nasceu, 
E criou raízes, e se fez tamanha, 
Que trezentos anos sobre uma montanha 
Seus trezentos braços de colosso ergueu?!... 

Onde a alma, origem dessas formas belas? 
Em tão várias formas que sonhou dizer? 
Qual a ideia, ó alma, convertida nelas? 
E desfeito o encanto, que nos não revelas, 
Que aparências novas tomará teu ser?... 

Noite escura!... enigmas!... Ai, do que eu preciso, 
Boieirinha linda, linda d’encantar, 
É dessa inocência, desse paraíso, 
Da alegria d’oiro que há no teu sorriso, 
Da candura d’alva que há no teu olhar!... 

Grandes bois que adoro, p’ra fortuna minha, 
Quem me dera a vossa mansidão cristã! 
Arrotear os campos, fecundar a vinha, 
E nos olhos garços duma boieirinha, 
Ter duas estrelas virgens da manhã!... 

E também quisera, mortos castanheiros, 
Como vós erguer-me para o Sol a flux, 
Dar trezentos anos sombra aos pegureiros, 
E num lar de choça, em festivais braseiros, 
A aquecer velhinhos, desfazer-me em luz!...


Guerra Junqueiro, in 'Os Simples', 1889


Pintura de Robert Duncan 


Robert Duncan é um pintor nascido em 1952 em Salt Lake CityUtahUnited States. Iniciou sua carreira aos 11 anos quando ganhou de sua avó um estojo para pintura a óleo. Estudou na Universidade da Utah e trabalhou como artista comercial até poder se dedicar em tempo integral à pintura. Seu tema preferido sempre foi a vida no campo, os animais e a natureza que o cerca. Então, inspirou-se a pintar um quotidiano campestre, retratando paisagens e cenas onde sua própria família serviu de modelo. Suas pinturas são muito realistas, sóbrias, belas e inocentes. 


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"A nossa dignidade consiste no pensamento. Procuremos pois pensar bem. Nisto reside o princípio da moral." - Blaise Pascal


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