domingo, 25 de outubro de 2020

"Diário II (1943)" - 4 Poemas de Miguel Torga

 


Por uma papoila


Não a façam sofrer.
Não olhem a nudez da sua cor.
Se a quiserem ver
Adivinhem de longe o seu pudor.

Olhos nos olhos, não:
Cora, descora, agita-se de medo,
E é todo o desespero e a solidão
De ter na própria vida o seu degredo.

É uma donzela que não quer casar.
Veio ao mundo viver
A beleza gratuita de passar
Sem nenhuma paixão a conhecer.


Coimbra, 24 de Março de 1943

Miguel Torga, in 'Diário II (1943)'
 

Eugène Cauchois


 Voz


Era o céu que sorria nos seus olhos,
Eram junquilhos trémulos aos molhos,
As flores do rosto que eu beijava.
Fresca e gratuita como um hino à lua,
Nua,
Era um mundo de paz que se entregava.

Oh! perfume da Vida! - gritei eu.
Oh! seara de trigo por abrir,
Quem te fez todo o pão da minha fome?

Mas os seus braços, longos e contentes,
Só responderam, quentes:
- Come.


Coimbra, 6 de Abril de 1943

Miguel Torga, in 'Diário II (1943)'
 
 
Eugène Cauchois
 

Pedido


Ama-me sempre, como à flor do lírio
Bravo e sozinho, a quem a gente quer
Mesmo já seco na recordação.
Ama-me sempre, cheia da certeza
De que, lírio que sou da natureza,
Na minha altura eu brotarei do chão.
 

Coimbra, 12 de Abril de 1943
 
Miguel Torga, in 'Diário II (1943)'
 
 
Eugène Cauchois
 
 
Justificação

 
Faço o que posso, Sol: rendo-me à Vida.
O choupal abrolhou,
O laranjal floriu,
E eu, naturalmente, vou
Ver a folha espalmada e a flor que abriu.

Queria também um pâmpano no corpo,
Uma outra certeza na raiz,
E o sonho quente e cósmico dum fruto...
Mas bem sabes que não:
Bem sabes como trago o coração
De luto.
 
 
Coimbra, 16 de Abril de 1943
 
Miguel Torga, in 'Diário II (1943)'
 
 
Eugène Cauchois
 
 
Eugène Henri Cauchois

Eugène Henri Cauchois (1850-1911) nasceu na cidade de Rouen em 14 de fevereiro de 1850. Ele recebeu seu treinamento artístico com os mestres pintores Ferdinand Duboc e Alexandre Cabanel. Suas naturezas-mortas suaves, coloridas e brilhantes refletem uma forte influência dos renomados artistas impressionistas de sua época. Semelhante às técnicas dos impressionistas, as telas de Cauchois são criadas com camadas sobre camadas de pinceladas soltas e fluidas.
Cauchois exibiu frequentemente no Salão de Paris e recebeu vários prémios nas exposições, incluindo uma medalha de terceiro lugar em 1898, uma medalha de bronze em 1900, e uma medalha de 2 º lugar em 1904. Entre os trabalhos expostos foram Cultura de pavots (1891); Après la pluie (1893); Première sortie (1897); Rosas de Setembro (1898) e Chez l'horticulteur (1900). No final do século XIX, ele pintou vários painéis decorativos em grande escala. Essas obras foram renderizadas com pinceladas fortes, naturalismo brilhante e combinações de cores vibrantes.
Cauchois recebeu várias encomendas para estas obras maiores e foi encomendado pela Escola do 7º distrito para pintar quatro painéis decorativos representando as flores das quatro estações. Ele continuou a pintar até a sua morte em Paris, em 11 de outubro de 1911.
A obra de Henri Eugène Cauchois está representada em coleções de museus em Leuven (Bélgica) e Rouen (França).
 

Eugène Henri Cauchois, Roses, 1911

terça-feira, 20 de outubro de 2020

"Via-Láctea" - 7 Sonetos (XXIX a XXXV) de Olavo Bilac


William McGregor Paxton, The String of Pearls, 1908


Sonetos 

XXIX

Por tanto tempo, desvairado e aflito,
Fitei naquela noite o firmamento,
 Que inda hoje mesmo, quando acaso o fito, 
Tudo aquilo me vem ao pensamento.
 
 Saí, no peito o derradeiro grito
 Calcando a custo, sem chorar, violento... 
E o céu fulgia plácido e infinito,
 E havia um choro no rumor do vento...
 
 Piedoso céu, que a minha dor sentiste!
 A áurea esfera da lua o ocaso entrava,
 Rompendo as leves nuvens transparentes;
 
 E sobre mim, silenciosa e triste, 
 A via-láctea se desenrolava
 Como um jorro de lágrimas ardentes. 
 
XXX 
 
Ao coração que sofre, separado
 Do teu, no exílio em que a chorar me vejo,
 Não basta o afeto simples e sagrado
 Com que das desventuras me protejo.
 
 Não me basta saber que sou amado, 
Nem só desejo o teu amor: desejo
 Ter nos braços teu corpo delicado, 
Ter na boca a doçura de teu beijo.
 
 E as justas ambições que me consomem
 Não me envergonham: pois maior baixeza
 Não há que a terra pelo céu trocar;
 
 E mais eleva o coração de um homem
 Ser de homem sempre e, na maior pureza,
 Ficar na terra e humanamente amar. 
 
XXXI
 
 Longe de ti, se escuto, porventura,
 Teu nome, que uma boca indiferente
 Entre outros nomes de mulher murmura,
 Sobe-me o pranto aos olhos, de repente... 
 
Tal aquele, que, mísero, a tortura
 Sofre de amargo exílio, e tristemente
 A linguagem natal, maviosa e pura,
 Ouve falada por estranha gente.
 
 Porque teu nome é para mim o nome
 De uma pátria distante e idolatrada,
 Cuja saudade ardente me consome:
 
 E ouvi-lo é ver a eterna primavera
 E a eterna luz da terra abençoada,
 Onde, entre flores, teu amor me espera. 
 
XXXII
 A um poeta
 
 Leio-te: - o pranto dos meus olhos rola:
 - Do seu cabelo o delicado cheiro,
 Da sua voz o timbre prazenteiro,
 Tudo do livro sinto que se evola...
 
 Todo o nosso romance: - a doce esmola
 Do seu primeiro olhar, o seu primeiro 
Sorriso, - neste poema verdadeiro, 
Tudo ao meu triste olhar se desenrola.
 
 Sinto animar-se todo o meu passado:
 E quanto mais as páginas folheio,
 Mais vejo em tudo aquele vulto amado.
 
 Ouço junto de mim bater-lhe o seio, 
E cuido vê-la, plácida, a meu lado,
 Lendo comigo a página que leio. 

XXXIII
 
 Como quisesse livre ser, deixando
 As paragens natais, espaço em fora,
 A ave, ao bafejo tépido da aurora,
 Abriu as asas e partiu cantando.
 
 Estranhos climas, longes céus, cortando
 Nuvens e nuvens, percorreu: e, agora
 Que morre o sol, suspende o voo, e chora,
 E chora, a vida antiga recordando...
 
 E logo, o olhar volvendo compungido 
Atrás, volta saudosa do carinho,
 Do calor da primeira habitação...
 
 Assim por largo tempo andei perdido:
 Ah! que alegria ver de novo o ninho,
 Ver-te, e beijar-te a pequenina mão! 

XXXIV
 
 Quando adivinha que vou vê-la, e à escada
 Ouve-me a voz e o meu andar conhece,
 Fica pálida, assusta-se, estremece,
 E não sei por que foge envergonhada.
 
 Volta depois. À porta, alvoroçada,
 Sorrindo, em fogo as faces, aparece:
 E talvez entendendo a muda prece
 De meus olhos, adianta-se apressada.
 
 Corre, delira, multiplica os passos; 
E o chão, sob os seus passos murmurando, 
Segue-a de um hino, de um rumor de festa...
 
 E ah! que desejo de a tomar nos braços,
 O movimento rápido sustando
 Das duas asas que a paixão lhe empresta. 

XXXV 
 
Pouco me pesa que mofeis sorrindo
 Destes versos puríssimos e santos:
 Porque, nisto de amor e íntimos prantos,
 Dos louvores do público prescindo. 
 
Homens de bronze! um haverá, de tantos,
 (Talvez um só) que, esta paixão sentindo,
 Aqui demore o olhar, vendo e medindo
 O alcance e o sentimento destes cantos.
 
 Será esse o meu público. E, decerto, 
Esse dirá: "Pode viver tranquilo
 Quem assim ama, sendo assim amado!
 
"E, trémulo, de lágrimas coberto,
 Há de estimar quem lhe contou aquilo
 Que nunca ouviu com tanto ardor contado.


Olavo Bilac
in "Via-Láctea", 1888
 
 
Olavo Bilac
 
 
Olavo Braz Martins dos Guimarães Bilac, jornalista, poeta, inspetor de ensino, nasceu no Rio de Janeiro, em 16 de dezembro de 1865, e faleceu, na mesma cidade, em 28 de dezembro de 1918, com apenas 53 anos.
 
Eram seus pais o Dr. Braz Martins dos Guimarães Bilac e D. Delfina Belmira dos Guimarães Bilac. Após os estudos primários e secundários, matriculou-se na Faculdade de Medicina no Rio de Janeiro, mas desistiu no 4º. ano. Tentou, a seguir, o curso de Direito em São Paulo, mas não passou do primeiro ano. Dedicou-se desde cedo ao jornalismo e à literatura. Teve intensa participação na política e em campanhas cívicas, das quais a mais famosa foi em favor do serviço militar obrigatório. 
 
Um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras, criou a Cadeira nº. 15, que tem como patrono Gonçalves Dias. Fundou vários jornais, de vida mais ou menos efémera, como A Cigarra, O Meio, A Rua
Na seção “Semana” da Gazeta de Notícias, substituiu Machado de Assis, trabalhando ali durante anos. É o autor da letra do Hino à Bandeira
Fazendo jornalismo político nos começos da República, foi um dos perseguidos por Floriano Peixoto. Teve que se esconder em Minas Gerais, quando frequentou a casa de Afonso Arinos em Ouro Preto. 
 
No regresso ao Rio, foi preso. Em 1891, foi nomeado oficial da Secretaria do Interior do Estado do Rio e em 1898, inspetor escolar do Distrito Federal, cargo em que se aposentou, pouco antes de falecer. Foi também delegado em conferências diplomáticas e, em 1907, secretário do prefeito do Distrito Federal. Em 1916, fundou a Liga de Defesa Nacional.
 
Olavo Bilac não constituiu família, seu grande amor foi Amélia de Oliveira irmã do poeta Alberto de Oliveira. Chegaram a ficar noivos, mas por causa do outro irmão dela o noivado foi desfeito. (Com a morte do pai, o irmão de Amélia que assumiu o posto de patriarca da família, impediu o noivado com Bilac, alegando que o poeta era muito boémio para a sua irmã. Ambos sofreram com essa decisão, nenhum se casou posteriormente e continuaram trocando poemas de amor.) Essa paixão inspirou boa parte dos sonetos da Via Láctea, composto por 35 sonetos. 
 
A obra poética de Olavo Bilac enquadra-se no Parnasianismo, que teve na década de 1880 a fase mais fecunda. Embora não tenha sido o primeiro a caracterizar o movimento parnasiano, só em 1888 publicou Poesias, tornando-se o mais típico dos parnasianos brasileiros, ao lado de Alberto de Oliveira e Raimundo Correia.

Fundindo o Parnasianismo francês e a tradição lusitana, Olavo Bilac deu preferência às formas fixas do lirismo, especialmente ao soneto. Nas duas primeiras décadas do século XX, seus sonetos de chave de ouro eram decorados e declamados em toda parte, nos saraus e salões literários comuns na época.
 
Nas Poesias encontram-se os famosos sonetos de “Via-Láctea” e a “Profissão de Fé”, na qual codificou o seu credo estético, que se distingue pelo culto do estilo, pela pureza da forma e da linguagem e pela simplicidade como resultado do lavor. 

Ao lado do poeta lírico, há nele um poeta de tonalidade épica, de que é expressão o poema “O caçador de esmeraldas”, celebrando os feitos, a desilusão e morte do bandeirante Fernão Dias Pais. 

Bilac foi, no seu tempo, um dos poetas brasileiros mais populares e mais lidos do país, tendo sido eleito o “Príncipe dos Poetas Brasileiros”, no concurso que a revista Fon-fon lançou em 1º. de março de 1913.
 
Alguns anos mais tarde, os poetas parnasianos seriam o principal alvo do Modernismo. Apesar da reação modernista contra a sua poesia, Olavo Bilac tem lugar de destaque na literatura brasileira, como dos mais típicos e perfeitos dentro do Parnasianismo brasileiro. Foi notável conferencista, numa época de moda das conferências no Rio de Janeiro, e produziu também contos e crónicas. (Daqui)


"Via-Láctea" - 7 Sonetos (XXII a XXVIII) de Olavo Bilac


Hugues Merle (French, 1823-1881), Woman with blue bow
 

Sonetos

XXII
A Goethe
 
Quando te leio, as cenas animadas
 Por teu génio, as paisagens que imaginas,
 Cheias de vida, avultam repentinas,
 Claramente aos meus olhos desdobradas... 
 
Vejo o céu, vejo as serras coroadas
 De gelo, e o sol, que o manto das neblinas
 Rompe, aquecendo as frígidas campinas
 E iluminando os vales e as estradas.
 
 Ouço o rumor soturno da charrua, 
E os rouxinóis que, no carvalho erguido, 
A voz modulam de ternuras cheia:
 
 E vejo, à luz tristíssima da lua,
 Hermann, que cisma, pálido, embebido
 No meigo olhar da loura Doroteia.
 
 XXIII
 
 De Calderón. Laura! dizes que Fábio anda ofendido 
E, apesar de ofendido, namorado, 
Buscando a extinta chama do passado
 Nas cinzas frias avivar do olvido.
 
 Vá que o faça, e que o faça por perdido
 De amor... Creio que o faz por despeitado:
 Porque o amor, uma vez abandonado, 
Não torna a ser o que já tinha sido.
 
Não lhe creias nos olhos nem na boca,
 Inda mesmo que os vejas, como pensas,
 Mentir carícias, desmentir tristezas...
 
 Porque finezas sobre arrufos, louca, 
Finezas podem ser; mas, sobre ofensas, 
 Mais parecem vinganças que finezas.
 
 XXIV 
A Luís Guimarães
 
Vejo-a, contemplo-a comovido... Aquela 
Que amaste, e, de teus braços arrancada,
 Desceu da morte a tenebrosa escada,
 Calma e pura aos meus olhos se revela. 
 
Vejo-lhe o riso plácido, a singela
 Feição, aquela graça delicada,
 Que uma divina mão deixou vazada
 No eterno bronze, eternamente bela.
 
 Só lhe não vejo o olhar sereno e triste:
 - Céu, poeta, onde as asas, suspirando, 
Chorando e rindo loucamente abriste... 
 
- Céu povoado de estrelas, onde as bordas
 Dos arcanjos cruzavam-se, pulsando
 Das liras de ouro as gemedoras cordas...
 
XXV
 A Bocage
 
 Tu, que no pego impuro das orgias
 Mergulhavas ansioso e descontente,
 E, quando à tona vinhas de repente,
 Cheias as mãos de pérolas trazias;
 
 Tu, que do amor e pelo amor vivias,
 E que, como de límpida nascente,
 Dos lábios e dos olhos a torrente
 Dos versos e das lágrimas vertias;
 
 Mestre querido! viverás, enquanto
 Houver quem pulse o mágico instrumento, 
E preze a língua que prezavas tanto:
 
 E enquanto houver num canto do universo
 Quem ame e sofra, e amor e sofrimento
 Saiba, chorando, traduzir no verso.
 
 XXVI
 
 Quando cantas, minh'alma desprezando
 O invólucro do corpo, ascende às belas
 Altas esferas de ouro, e, acima delas,
 Ouve arcanjos as citaras pulsando.
 
 Corre os países longes, que revelas
 Ao som divino do teu canto: e, quando
 Baixas a voz, ela também, chorando,
 Desce, entre os claros grupos das estrelas.
 
 E expira a tua voz. Do paraíso,
 A que subira ouvindo-te, caído,
 Fico a fitar-te pálido, indeciso...
 
 E enquanto cismas, sorridente e casta,
 A teus pés, como um pássaro ferido,
 Toda a minh'alma trémula se arrasta... 
 
XXVII
 
 Ontem - néscio que fui! - maliciosa
 Disse uma estrela, a rir, na imensa altura:
 "Amigo! uma de nós, a mais formosa
 De todas nós, a mais formosa e pura,
 
 Faz anos amanhã... Vamos! procura 
A rima de ouro mais brilhante, a rosa
 De cor mais viva e de maior frescura!
"E eu murmurei comigo: "Mentirosa!" 
 
E segui. Pois tão cego fui por elas,
 Que, enfim, curado pelos seus enganos,
 Já não creio em nenhuma das estrelas...
 
 E - mal de mim! - eis-me, a teus pés, em pranto...
 Olha: se nada fiz para os teus anos,
 Culpa as tuas irmãs que enganam tanto! 
 
XXVIII
 
 Pinta-me a curva destes céus... Agora, 
Ereta, ao fundo, a cordilheira apruma:
 Pinta as nuvens de fogo de uma em uma,
 E alto, entre as nuvens, o raiar da aurora.
 
 Solta, ondulando, os véus de espessa bruma,
 E o vale pinta, e, pelo vale em fora,
 A correnteza túrbida e sonora
 Do Paraíba, em torvelins de espuma. 
 
Pinta; mas vê de que maneira pintas...
 Antes busques as cores da tristeza, 
Poupando o escrínio das alegres tintas:
 
 - Tristeza singular, estranha mágoa
 De que vejo coberta a natureza,
 Porque a vejo com os olhos rasos d'água.
 

Olavo Bilac
in "Via-Láctea", 1888
 
 

"Via-Láctea" - 7 Sonetos (XV a XXI) de Olavo Bilac

 
 
Sonetos 

XV
 
 Inda hoje, o livro do passado abrindo,
 Lembro-as e punge-me a lembrança delas; 
Lembro-as, e vejo-as, como as vi partindo,
 Estas cantando, soluçando aquelas.
 
 Umas, de meigo olhar piedoso e lindo,
 Sob as rosas de neve das capelas;
 Outras, de lábios de coral, sorrindo,
  Desnudo o seio, lúbricas e belas...
 
 Todas, formosas como tu, chegaram,
 Partiram... e, ao partir, dentro em meu seio
 Todo o veneno da paixão deixaram.
 
 Mas, ah! nenhuma teve o teu encanto,
 Nem teve olhar como esse olhar, tão cheio
 De luz tão viva, que abrasasse tanto! 
 
XVI
 
 Lá fora, a voz do vento ulule rouca!
 Tu, a cabeça no meu ombro inclina,
 E essa boca vermelha e pequenina
 Aproxima, a sorrir, de minha boca!
 
 Que eu a fronte repouse ansiosa e louca
 Em teu seio, mais alvo que a neblina
 Que, nas manhãs hiemais, úmida e fina,
 Da serra as grimpas verdejantes touca!
 
 Solta as tranças agora, como um manto!
 Canta! Embala-me o sono com teu canto!
 E eu, aos raios tranquilos desse olhar,
 
 Possa dormir sereno, como o rio
 Que, em noites calmas, sossegado e frio,
 Dorme aos raios de prata do luar!... 
 
XVII
 
 Por estas noites frias e brumosas 
É que melhor se pode amar, querida!
 Nem uma estrela pálida, perdida
 Entre a névoa, abre as pálpebras medrosas...
 
 Mas um perfume cálido de rosas
 Corre a face da terra adormecida...
 E a névoa cresce, e, em grupos repartida,
 Enche os ares de sombras vaporosas:
 
 Sombras errantes, corpos nus, ardentes
 Carnes lascivas... um rumor vibrante
 De atritos longos e de beijos quentes...
 
 E os céus se estendem, palpitando, cheios
 Da tépida brancura fulgurante 
De um turbilhão de braços e de seios.
 
 XVIII
 
 Dormes... Mas que sussurro a umedecida 
Terra desperta? Que rumor enleva
 As estrelas, que no alto a Noite leva
 Presas, luzindo, à túnica estendida? 
 
São meus versos! Palpita a minha vida 
Neles, falenas que a saudade eleva
 De meu seio, e que vão, rompendo a treva,
 Encher teus sonhos, pomba adormecida!
 
 Dormes, com os seios nus, no travesseiro
 Solto o cabelo negro... e ei-los correndo,
 Doudejantes, subtis, teu corpo inteiro...
 
 Beijam-te a boca tépida e macia,
 Sobem, descem, teu hálito sorvendo... 
Por que surge tão cedo a luz do dia?!...
 
XIX
 
 Sai a passeio, mal o dia nasce,
 Bela, nas simples roupas vaporosas;
 E mostra às rosas do jardim as rosas
 Frescas e puras que possui na face.
 
 Passa. E todo o jardim, por que ela passe,
 Atavia-se. Há falas misteriosas
 Pelas moitas, saudando-a respeitosas...
 É como se uma sílfide passasse!
 
 E a luz cerca-a, beijando-a. O vento é um choro...
 Curvam-se as flores trémulas... O bando
 Das aves todas vem saudá-la em coro...
 
 E ela vai, dando ao sol o rosto brando,
 Às aves dando o olhar, ao vento o louro
 Cabelo, e às flores os sorrisos dando... 
 
XX 
 
Olha-me! O teu olhar sereno e brando
 Entra-me o peito, como um largo rio
 De ondas de ouro e de luz, límpido, entrando
 O ermo de um bosque tenebroso e frio.
 
 Fala-me! Em grupos doudejantes, quando
 Falas, por noites cálidas de estio,
 As estrelas acendem-se, radiando,
 Altas, semeadas pelo céu sombrio.
 
 Olha-me assim! Fala-me assim! De pranto
 Agora, agora de ternura cheia,
 Abre em chispas de fogo essa pupila...
 
 E enquanto eu ardo em sua luz, enquanto
 Em seu fulgor me abraso, uma sereia
 Soluce e cante nessa voz tranquila! 
 
XXI 
A minha mãe
 
 Sei que um dia não há (e isso é bastante
 A esta saudade, mãe!) em que a teu lado
 Sentir não julgues minha sombra errante,
 Passo a passo a seguir teu vulto amado.
 
 - Minha mãe! minha mãe! - a cada instante
 Ouves. Volves, em lágrimas banhado,
 O rosto, conhecendo soluçante
 Minha voz e meu passo costumado.
 
 E sentes alta noite no teu leito
 Minh'alma na tua alma repousando, 
Repousando meu peito no teu peito...
 
 E encho os teus sonhos, em teus sonhos brilho,
 E abres os braços trémulos, chorando,
 Para nos braços apertar teu filho!
 
 
 in "Via- Láctea", 1888

segunda-feira, 19 de outubro de 2020

"Via-Láctea" - 7 Sonetos (VIII a XIV) de Olavo Bilac


Guillaume Seignac (1870-1924), Young Woman of Pompeii on a Terrace,
 Private collection 


Sonetos

VIII

Em que céus mais azuis, mais puros ares,
Voa pomba mais pura? Em que sombria
Moita mais nívea flor acaricia,
A noite, a luz dos límpidos luares?

Vives assim, como a corrente fria,
 Que, intemerata, aos trémulos olhares
 Das estrelas e à sombra dos palmares,
 Corta o seio das matas, erradia.
 
 E envolvida de tua virgindade,
 De teu pudor na cândida armadura,
 Foges o amor, guardando a castidade,
 
 - Como as montanhas, nos espaços francos
 Erguendo os altos píncaros, a alvura
  Guardam da neve que lhes cobre os flancos.
 
 IX
 
 De outras sei que se mostram menos frias,
Amando menos do que amar pareces.
 Usam todas de lágrimas e preces:
 Tu de acerbas risadas e ironias.
 
 De modo tal minha atenção desvias,
 Com tal perícia meu engano teces,
 Que, se gelado o coração tivesses,
 Certo, querida, mais ardor terias.
 
 Olho-te: cega ao meu olhar te fazes...
 Falo-te - e com que fogo a voz levanto! - Em vão...
 Finges-te surda às minhas frases..
 
 Surda: e nem ouves meu amargo pranto!
 Cega: e nem vês a nova dor que trazes
 À dor antiga que doía tanto!
 
 X 
 
Deixa que o olhar do mundo enfim devasse
 Teu grande amor que e teu maior segredo!
 Que terias perdido, se, mais cedo,
 Todo o afeto que sentes se mostrasse?
 
 Basta de enganos! Mostra-me sem medo
 Aos homens, afrontando-os face a face:
 Quero que os homens todos, quando eu passe,
Invejosos, apontem-me com o dedo.
 
 Olha: não posso mais! Ando tão cheio
 Deste amor, que minh'alma se consome
 De te exaltar aos olhos do universo.
 
 Ouço em tudo teu nome, em tudo o leio:
 E, fatigado de calar teu nome,
 Quase o revelo no final de um verso.
 
 XI 
 
Todos esses louvores, bem o viste,
 Não conseguiram demudar-me o aspecto:
 Só me turbou esse louvor discreto
 Que no volver dos olhos traduziste...
 
Inda bem que entendeste o meu afeto
 E, através destas rimas, pressentiste
 Meu coração que palpitava, triste,
 E o mal que havia dentro em mim secreto.
 
 Ai de mim, se de lágrimas inúteis
 Estes versos banhasse, ambicionando
 Das néscias turbas os aplausos fúteis!
 
 Dou-me por pago, se um olhar lhes deres:
 Fi-los pensando em ti, fi-los pensando
 Na mais pura de todas as mulheres.
 
 XII
 
 Sonhei que me esperavas. E, sonhando,
 Saí, ansioso por te ver: corria... 
E tudo, ao ver-me tão depressa andando,
 Soube logo o lugar para onde eu ia. 
 
E tudo me falou, tudo! Escutando
 Meus passos, através da ramaria, 
Dos despertados pássaros o bando:
 "Vai mais depressa! Parabéns!" dizia.
 
 Disse o luar: "Espera! que eu te sigo:
 Quero também beijar as faces dela!"
 E disse o aroma: "Vai, que eu vou contigo!"
 
 E cheguei. E, ao chegar, disse uma estrela:
 "Como és feliz! como és feliz, amigo, 
Que de tão perto vais ouvi-la e vê-la!"
 
XIII
 
 "Ora (direis) ouvir estrelas! Certo
 Perdeste o senso!" E eu vos direi, no entanto,
 Que, para ouvi-las, muita vez desperto
 E abro as janelas, pálido de espanto...
 
 E conversamos toda a noite, enquanto
 A via-láctea, como um pálio aberto,
 Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto,
 Inda as procuro pelo céu deserto.
 
 Direis agora: "Tresloucado amigo!
 Que conversas com elas? Que sentido
 Tem o que dizem, quando estão contigo?"
 
 E eu vos direi: "Amai para entendê-las!
 Pois só quem ama pode ter ouvido
 Capaz de ouvir e de entender estrelas".
 
 XIV
 
 Viver não pude sem que o fel provasse
 Desse outro amor que nos perverte e engana:
 Porque homem sou, e homem não há que passe
 Virgem de todo pela vida humana.
 
 Por que tanta serpente atra e profana
 Dentro d'alma deixei que se aninhasse?
 Por que, abrasado de uma sede insana,
 A impuros lábios entreguei a face?
 
 Depois dos lábios sôfregos e ardentes,
 Senti - duro castigo aos meus desejos
 - O gume fino de perversos dentes... 
 
E não posso das faces poluídas
 Apagar os vestígios desses beijos
 E os sangrentos sinais dessas feridas!  
 
 
 in "Via- Láctea", 1888


"Via-Láctea" - 7 Sonetos (I a VII) de Olavo Bilac


 

Sonetos

I

Talvez sonhasse, quando a vi. Mas via
Que, aos raios do luar iluminada
Entre as estrelas trémulas subia
Uma infinita e cintilante escada.

E eu olhava-a de baixo, olhava-a... Em cada
Degrau, que o ouro mais límpido vestia,
Mudo e sereno, um anjo a harpa doirada,
Ressoante de súplicas, feria...

Tu, mãe sagrada! Vós também, formosas
Ilusões! Sonhos meus! Íeis por ela
Como um bando de sombras vaporosas.

E, ó meu amor! Eu te buscava, quando
Vi que no alto surgias, calma e bela,
O olhar celeste para o meu baixando ...

II

Tudo ouvirás, pois que, bondosa e pura,
Me ouves agora com melhor ouvido:
 Toda a ansiedade, todo o mal sofrido
 Em silêncio, na antiga desventura...
 
 Hoje, quero, em teus braços acolhido,
 Rever a estrada pavorosa e escura
 Onde, ladeando o abismo da loucura,
 Andei de pesadelos perseguido.
 
 Olha-a: torce-se toda na infinita
 Volta dos sete círculos do inferno...
 E nota aquele vulto: as mãos eleva,
 
 Tropeça, cai, soluça, arqueja, grita,
 Buscando um coração que foge, e eterno
 Ouvindo-o perto palpitar na treva.
 
 III 
 
Tantos esparsos vi profusamente 
Pelo caminho que, a chorar, trilhava!
 Tantos havia, tantos! E eu passava
 Por todos eles frio e indiferente...
 
 Enfim! enfim! Pude com a mão tremente
 Achar na treva aquele que buscava...
 Por que fugias, quando eu te chamava,
 Cego e triste, tateando, ansiosamente?
 
 Vim de longe, seguindo de erro em erro,
 Teu fugitivo coração buscando
 E vendo apenas corações de ferro.
 
 Pude, porém, tocá-lo soluçando...
 E hoje, feliz, dentro do meu o encerro,
 E ouço-o, feliz, dentro do meu pulsando.
 
 IV
 
 Como a floresta secular, sombria,
 Virgem do passo humano e do machado,
 Onde apenas, horrendo, ecoa o brado
 Do tigre, e cuja agreste ramaria
 
 Não atravessa nunca a luz do dia,
 Assim também, da luz do amor privado,
 Tinhas o coração ermo e fechado,
 Como a floresta secular, sombria...
 
 Hoje, entre os ramos, a canção sonora
 Soltam festivamente os passarinhos.
 Tinge o cimo das árvores a aurora...
 
 Palpitam flores, estremecem ninhos...
 E o sol do amor, que não entrava outrora,
 Entra dourando a areia dos caminhos.
 
 V 
 
Dizem todos: "Outrora como as aves
 Inquieta, como as aves tagarela,
 E hoje... que tens? Que sisudez revela
 Teu ar! que ideias e que modos graves!
 
 Que tens, para que em pranto os olhos laves?
 Sê mais risonha, que serás mais bela!"
 Dizem. Mas no silêncio e na cautela
 Ficas firme e trancada a sete chaves...
 
 E um diz: "Tolices, nada mais!" Murmura
  Outro: "Caprichos de mulher faceira!
" E todos eles afinal: "Loucura!"
 
 Cegos que vos cansais a interrogá-la!
 Vê-la bastava; que a paixão primeira
 Não pela voz, mas pelos olhos fala.
 
 VI
 
 Em mim também, que descuidado vistes,
 Encantado e aumentando o próprio encanto,
 Tereis notado que outras cousas  canto
 Muito diversas das que outrora ouvistes.
 
 Mas amastes, sem dúvida... Portanto,
 Meditais nas tristezas que sentistes:
 Que eu, por mim, não conheço cousas tristes,
 Que mais aflijam, que torturem tanto.
 
 Quem ama inventa as penas em que vive:
 E, em lugar de acalmar as penas, antes
 Busca novo pesar com que as avive.
 
 Pois sabei que é por isso que assim ando:
 Que é dos loucos somente e dos amantes
 Na maior alegria andar chorando.
 
 VII
 
 Não têm faltado bocas de serpentes,
 (Dessas que amam falar de todo o mundo,
 E a todo o mundo ferem, maldizentes)
 Que digam: "Mata o teu amor profundo!
 
 Abafa-o, que teus passos imprudentes
 Te vão levando a um pélago sem fundo...
 Vais te perder!" E, arreganhando os dentes,
 Movem para o teu lado o olhar imundo:
 
 "Se ela é tão pobre, se não tem beleza,
 Irás deixar a glória desprezada
 E os prazeres perdidos por tão pouco?
 
 Pensa mais no futuro e na riqueza!
"E eu penso que afinal... Não penso nada:
 Penso apenas que te amo como um louco! 
in "Via-Láctea", 1888
 
 

"Diz-me, amor, como te sou querida" - Poema de Florbela Espanca




Diz-me, amor, como te sou querida



Diz-me, Amor, como te sou querida,
Conta-me a glória do teu sonho eleito,
Aninha-me a sorrir junto ao teu peito,
Arranca-me dos pântanos da vida.

Embriagada numa estranha lida,
Trago nas mãos o coração desfeito,
Mostra-me a luz, ensina-me o preceito
Que me salve e levante redimida!

Nesta negra cisterna em que me afundo,
Sem quimeras, sem crenças, sem ternura,
Agonia sem fé dum moribundo,

Grito o teu nome numa sede estranha,
Como se fosse, Amor, toda a frescura
Das cristalinas águas da montanha! 


Florbela Espanca,
in "A Mensageira das Violetas"
 
 

terça-feira, 13 de outubro de 2020

"Urgente" - Poema de Fernanda de Castro

  
 
Dante Gabriel Rossetti (1828–1882), The Day Dream, 1880
(The sitter is Jane Morris), Victoria and Albert Museum



Urgente


Urgente é construir serenamente
seja o que for, choupana ou catedral,
é trabalhar a pedra, o barro, a cal,
é regressar às fontes, à nascente.

É não deixar perder-se uma semente,
é arrancar as urtigas do quintal,
é fazer duma rosa o roseiral,
sem perder tempo. Agora. Já. É urgente.

Urgente é respeitar o Amigo, o Irmão,
é perdoar, se alguém pede perdão,
é repartir o trigo do celeiro.

Urgente é respirar com alegria,
ouvir cantar a rola, a cotovia,
e plantar no pinhal mais um pinheiro.
in "Poesia II", 1969
 

Dante Gabriel Rossetti, Self-portrait, 1847
 
 
 Escritor e pintor inglês, nascido em 1828 e falecido em 1882, Dante Gabriel Rossetti foi educado numa atmosfera de ativismo cultural e político que muito influenciou o seu desenvolvimento artístico. Funda, juntamente com outros pintores, a irmandade dos Pré-rafaelitas.
Em 1850 foram publicados em The Germ alguns dos seus poemas, tais como: "The Blessed Damozel" e "My Sister's Sleep". Dezasseis sonetos, incluindo a sequência "The Willow wood", surgiram em 1869, no periódico The Fortnightly Review. Em 1872 escreveu o ensaio "The Stealthy School of Criticism; Poems", uma reorganização dos trabalhos iniciais, e "Ballads and Sonnets" surgiram em 1881. (Daqui)
 
 
Rossetti's eighth and final version of Proserpine, 1882,
 now in the Birmingham Museum and Art Gallery 


Dante Gabriel Rossetti começou a trabalhar nesta obra em 1871 e pintou pelo menos oito versões diferentes. A última versão (muito semelhante à da Tate, encomendada por Frederick Richards Leyland), concluída em 1882, apenas alguns dias antes da sua morte, encontra-se no Birmingham Museum and Art Gallery.
Leyland encomendou a Rossetti dezoito pinturas, sem contar com as encomendas não satisfeitas. Logo após a entrega da pintura, Leyland e Rossetti pensaram na hipótese de um tríptico de Rossetti, que acabou por ser formado com Mnemosine, The Blessed Damozel e Proserpina