sexta-feira, 31 de maio de 2024

"Memorando" - Poema de Miguel Torga


Jakub Schikaneder (Bohemian painter, 1855–1924), Murder in the House, 1890,



Memorando


Senhor,
Se o meu tempo é de campos de concentração,
De bombas de hidrogénio e de maldição,
E de cruéis tiranos
Com pelos nos ouvidos e no coração,
Que ando eu a fazer aqui,
Funâmbulo de angústia
Com miragens de esperança?
Pois que não há lugar neste universo imundo
Para bucólicos prados de trigo e calhandras,
E foguetes festivos,
E chefes que eu eleja e destitua,
Corta lá no canhenho do destino
A humana condição de ser poeta!
Sinto em nome de todos que se calam
As vergastadas de absurdo e medo
Que consentes na alma dos mortais.
E como nada posso, senão isto:
Protestar, protestar,
Desta maneira inútil que tu vês
E o rebanho pressente,
Risco na ardósia dos obreiros laicos,
Que procuram sentido à tua obra,
O sagrado condão de dedilhar
Nas grades da gaiola que fizeste
Quando eras rapaz
E mal sonhavas quanto mal fazias.
Jovem deus criador,
Assombrado de cada imperfeição
Do barro da olaria,
Ias doirando esses desenganos
Com milagres gratuitos e originais.
Saía-te das mãos, cercada de incertezas,
A redonda amargura deste mundo;
Que remédio senão alguns harpistas
A entoar harmonias ideais!
Mas o tempo passou. Envelheceste.
Morreu-te a fantasia.
E queres a repressão dos que te negam
Ou te corrigem.
Eu e outros, perdidos neste inferno
Onde nenhum Plutão nos ouve ou nos tolera,
Somos a consciência atormentada
Pelos anjos da guarda que te servem,
A trair os irmãos, tão condenados
Como eles.
Por caridade, pois,
E divina lisura,
Apaga lá no céu
A luz que representa
A vida destas pobres criaturas
Cuja missão traíste, por decrepitude.
Bardos da luz que punham nos teus olhos
E da graça do mágico universo
Que generosamente
Como um pomo irreal viam na tua mão,
Rangem agora os dentes de revolta
A falar de justiça,
De igualdade,
E de amor,
Coisas que já nem tu
Sabes que valores são.
Risca! Risca no livro etéreo
O infeliz e belo
Nome de Orfeu!

Coimbra, 16 de dezembro de 1952 

Miguel Torga
, Diário VI (1953) 
 

quinta-feira, 30 de maio de 2024

"Não há fronteira" - Poema de Eduarda Chiote


Edgar Degas (French Impressionist artist, 1834–1917), Interior, also known as The Rape, 1868-1869,
 

O Poeta diz: a vida
é uma «merda» que precisa ser vista com o máximo
requinte.
O requinte do olhar. Olhar que o obrigue a pecar.
Porque a vida
tal como o olhar
exerce-se fora da inocência dos sentidos
numa mesma intenção
e cumplicidade: a da boca
cega
que procura já, da morte, o peito recém-nascido
e canibal.
Porque é nesse altar
onde o pavio aceso toda a noite fulgura
que os lábios se entreabrem: flagelados de jejum
e castidade — céu despedaçado pela
águia fracionando
o espaço
das cidades.
Não há intimidade no mal — escreve o poeta exilado.
Vinda de onde, então,
Poesia,
a poderosa luz da tua absurda
generosidade?
Do «animal que se sente no mundo como a água
na água?» — Não se sabe.
Escreve-se por nada, Arnaldo, para ninguém,
para nada.
Por isso, implacável, a ti mesma
eu me ofereço — um osso duro de roer
mas que ácido floresce
no aroma que mistura o oiro à merda e o mar
ao sal. 
A Frágil Reparação da Minha Morte -
Antologia (1974-2023)
 
 
 
A frágil reparação da minha morte : antologia (1974-2023) -
  Eduarda Chiote; org. Maria F. Roldão. - Porto:
Officium Lectionis, 2023. - 229, [6] p. ; 24 cm.
(daqui)
 

Com organização de Maria F. Roldão, a editora Officium Lectionis acaba de publicar a Antologia (1974-2023) de Eduarda Chiote. Com um lúcido e estruturado texto de abertura, foram selecionados poemas de nove dos treze livros de poemas escritos pela autora entre 1974 e 2022, aos quais se acrescentam dois conjuntos de inéditos. (daqui)
 

Descrição

 
Concedeste-me a liberdade
sabendo que não queria (não podia) soltar-me:
que, deste modo, te pertenceria
– prisioneira para sempre
da minha escravidão.
Transformaste-me (com o meu acordo)
numa adúltera shakespear(iana)
e romântica.
Sim, deste-me a possibilidade de pecar em paz,
privando-me do teatral jogo sem jogo das crianças,
em verdade brincando de brincar
ao brincar.
Mas não se pode viver sem omissão
– faz parte da natural privacidade,
tal como o indizível
da poesia.
Porque, muito pelo contrário
e ao contrário do que é suposto pensar,
as regras poéticas são algemas a que se oferece o pulso.
Acaso te ocorreu simples?
Meu amor, meu pobre amor, entre a convenção
e a veneração nos movemos: foi então,
essa, a frágil reparação da minha Morte? – o teres inventado
o perdão, para quem culpa
não tinha?
 

Eduarda Chiote,
A Frágil Reparaçãoda Minha Morte -
Antologia (1974-2023) 

 

quarta-feira, 29 de maio de 2024

"Assim esqueço" - Poema de Pedro Paulo Sena Madureira


Oscar Pereira da Silva (Pintor, desenhista, decorador e professor brasileiro, 1867–1939),
 Retrato do Arquiteto Ramos de Azevedo (Engenheiro-arquiteto, professor e empreendedor
 paulista formado na Bélgica, 18511928), s.d.


Assim esqueço
 
Assim esqueço
e me renego. 

Assim me abro
me aperto
e renasço ou desespero. 

Assim me ergo
no cume deste lume
que não enxergo.

Assim me entrego
me prendo
reaprendo o que sonego.

Assim me transpasso
e integro o aço que me caça
com a brasa de sua acha.

Assim a hora e sua mora
assim do tempo os juros
que pago e não reclamo.

Assim — que não se apaga
— este fogo, cresce e lastra
o laivo túrgido

de um astro que me castra
e no chão fúlgido de minha queda
(urtiga que medra e me exaspera)

de era em era
de pedra em pedra
caído em meu mistério

assim de raiva
e sonho recomeço. 
 
in 'Rumor de Facas'
 

terça-feira, 28 de maio de 2024

"Qualquer Tempo" - Poema de Carlos Drummond de Andrade


Friedrich Wilhelm Schadow (German Romantic painter, 1789–1862), Self-portrait with his brother
Rudolph Schadow (German sculptor, 1786–1822) and Bertel Thorvaldsen (Danish sculptor, 1770–1844),
 1814, oil on canvas, 89 cm x114 cm, Alte Nationalgalerie



Qualquer Tempo
 
 
Qualquer tempo é tempo.
A hora mesma da morte
é hora de nascer.

Nenhum tempo é tempo
bastante para a ciência
de ver, rever.

Tempo, contratempo
anulam-se, mas o sonho
resta, de viver. 


Carlos Drummond de Andrade,
 in 'A Falta que Ama', 1968

segunda-feira, 27 de maio de 2024

"Procuro a palavra palavra" - Poema de Lindolf Bell



Gregorio Prieto (Pintor español asociado a la generación del 27, 1897-1992), Equus, 1952.
 
 

Procuro a palavra palavra


Não é a palavra fácil
que procuro.
Nem a difícil sentença,
aquela da morte,
a da fértil e definitiva solitude.
A que antecede este caminho sempre de repente.
Onde me esgueiro, me soletro,
em fantasias de pássaro, homem, serpente.

Procuro a palavra fóssil.
A palavra antes da palavra.

Procuro a palavra palavra.
Esta que me antecede
e se antecede na aurora
e na origem do homem.

Procuro desenhos
dentro da palavra.
Sonoros desenhos, táteis,
cheiros, desencantos e sombras.
Esquecidos traços. Laços.
Escritos, encantos reescritos.
Na área dos atritos.

Dos detritos.
Em ritos ardidos da carne
e ritmos do verbo.
Em becos metafísicos sem saída.

Sinais, vendavais, silêncios.
Na palavra enigmam restos, rastos de animais,
minerais da insensatez.
Distância, circunstâncias, soluços,
desterro.

Palavras são seda, aço.
Cinza onde faço poemas, me refaço.

Uso raciocínio
Procuro na razão.
Mas que se revela arcaico, pungente,
eterno e para sempre vivo,
vem do buril do coração.


Lindolf Bell, in ‘Código das Águas’ 
1ª ed., São Paulo: Global editora, 1984.

domingo, 26 de maio de 2024

"O Jogo" - Poema de Nuno Júdice


Leonard Campbell Taylor (British painter, 1874 – 1969), Patience, 1906.
 


O Jogo


Eu, sabendo que te amo,
e como as coisas de amor são difíceis,
preparo em silêncio a mesa
do jogo, estendo as peças
sobre o tabuleiro, disponho os lugares
necessários para que tudo
comece: as cadeiras
uma em frente da outra, embora saiba
que as mãos não se podem tocar,
e que para além das dificuldades,
hesitações, recuos
ou avanços possíveis, só os olhos
transportam, talvez, uma hipótese
de entendimento. É então que chegas,
e como se um vento do norte
entrasse por uma janela aberta,
o jogo inteiro voa pelos ares,
o frio enche-te os olhos de lágrimas,
e empurras-me para dentro, onde
o fogo consome o que resta
do nosso quebra-cabeças.


Nuno Júdice
, in "A Fonte da Vida", 1997
 

sábado, 25 de maio de 2024

"Montes e a paz que há neles" - Poema de Fernando Pessoa

 
Carlos de Haes (Pintor e gravador espanhol de origem belga, 1829–1898),
“Picos de Europa”, 1874. Óleo sobre papel, 32x42 cm.
 
 
 

Montes

 
Montes, e a paz que há neles, pois são longe...
Paisagens, isto é, ninguém...
Tenho a alma feita para ser de um monge
Mas não me sinto bem.

Se eu fosse outro, fora outro. Assim
Aceito o que me dão,
Como quem espreita para um jardim
Onde os outros estão.

Que outros? Não sei. Há no sossego incerto
Uma paz que não há,
E eu fito sem o ler o livro aberto
Que nunca mo dirá... 

9-5-1934 

Fernando Pessoa, Poesias.
(Nota explicativa de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.)
Lisboa: Ática, 1942 (15ª ed. 1995). - 194.
 

sexta-feira, 24 de maio de 2024

"Tosquia" - Poema de Francisco Bugalho


Tom Roberts (English-born Australian artist and a key member of the Heidelberg School art movement, 
1856 – 14 September 1931), Shearing the Rams, 1890,
National Gallery of Victoria, Melbourne



Tosquia


Rente, rente, rente
A tesoura corta.
E, na tarde quente,
Junho está à porta.

Vem do campo, em volta,
Mágico fulgor
De aroma, que solta
O feno, inda em flor.

Aperna-se o gado,
P'ra tirar-lhe a lã.
Ficou encerrado
Desde esta manhã.

Rente, rente, rente
Que a tesoura corta,
E, na tarde quente,
Junho está à porta.

Um halo de neve,
Espuma ou algodão,
Envolve de leve
As reses no chão.

Na luz forte, em roda,
Zumbem as abelhas.
E há balidos soltos
E tristes de ovelhas.

E ao soltar aquelas,
Livres, já, dos velos,
Parecem gazelas,
Em saltos singelos.

Rente, rente, rente
A tesoura corta,
E, na tarde quente,
Junho está à porta.
 

Francisco Bugalho, Poesia
(Poeta português, 1905 - 1949)
 

quarta-feira, 22 de maio de 2024

"O gato" - Poema de Guillaume Apollinaire

 

 
Elin Danielson-Gambogi (Finnish painter, 1861-1919),
 Girl with Cats in a Summer Landscape, 1892.
 

O gato


Na minha casa desejo ter
uma mulher que imponha a sua razão
um gato passeando por entre os livros
e porque sem eles não posso viver
amigos seja qual for a estação


Guillaume Apollinaire,
in O século das nuvens, Hiena Editora, 1989, página 20.
 (Versão para português de Jorge de Sousa Braga)
 
 
Guillaume Apollinaire (1880-1918), Setembro, 1911
 
 
Biografia de Guillaume Apollinaire


Poeta e homem de letras naturalizado francês, de nome verdadeiro Wilhelm Apollinaris de Kostrowitzky, nasceu a 26 de agosto de 1880 na cidade de Roma. Fruto ilegítimo do encontro de dois aventureiros da alta aristocracia, uma jovem polaca viciada no jogo, Angelica de Kostrovitzky, e de um suiço-italiano, Flugi d'Aspermont, Apollinaire cresceu nas cercanias dos sumptuosos casinos das estâncias blaneares onde os mais ricos se congregavam.

Aos sete anos de idade iniciou a sua escolaridade no Colégio de São Carlos, no Mónaco, transitando depois para as escolas de Cannes e Nice. Não chegou a terminar os estudos secundários. Em vez disso, empreendeu aos dezanove anos de idade uma viagem que o levou até às Ardenas, na Bélgica, fazendo-se passar por um príncipe russo.
No ano de 1900 estabeleceu-se em Paris onde, após ter trabalhado durante algum tempo na Bolsa de Valores, começou a colaborar com a imprensa, em especial com o Mercure de France e La Revue Blanche. No ano seguinte surgiu-lhe a oportunidade de acompanhar como precetor as crianças de uma família alemã, residente na bacia do Reno. Aceitando o cargo, aproveitou a deslocação para percorrer extensivamente o território alemão, bem como o do então Império Austro-Húngaro.

De regresso a França, empregou-se junto de um banco, prosseguindo simultaneamente no jornalismo, escrevendo regularmente para o L'Européen. Em 1902 publicou o seu primeiro livro, escrito em coautoria com Molina da Silva, La Grace et Le Mainties Français e, no ano seguinte, fundou uma revista intitulada Le Festin d'Esope. A partir de 1906 passou também a dedicar-se à literatura erótica, dando ao prelo, Les Onze Mille Verges (As Onze Mil Vergas), uma das suas obras mais célebres, e Les Memoires d'un Jeune Don Juan (1907, As Proezas Amorosas de um Jovem Don Juan).

Apollinaire estreou-se como poeta em 1909, com o aparecimento da sua primeira coletânea, L'Enchanteur Pourrissant, cuja temática aludia ao aprisionamento do mago Merlim dentro de uma gruta, pelas artes mágicas de Morgana. Seguiram-se, entre outras obras, Le Bestiaire ou Cortège d'Orphée (1911) e Alcools (1914, Mais Novembro do que Setembro), trabalho marcado pela supressão de todos os sinais de pontuação, o que na época constituiu uma inovação e revelou o seu espírito modernista, que veio estabelecer definitivamente Apollinaire como poeta.

No ano de 1914 deflagrou a Primeira Grande Guerra, pelo que Apollinaire, sentindo grandes afinidades com a nação que o acolhera, decidiu pedir a cidadania francesa e alistou-se no exército. Serviu num regimento de infantaria e, em 1915, foi promovido a primeiro-brigadeiro. Logo após ter-se declarado voluntário para a frente de combate, ascendeu a marechal.
Em 1916 o governo francês deferiu o seu requerimento de nacionalidade e, pouco tempo depois, o poeta foi ferido com gravidade na cabeça, por um obus, o que o levou a ser submetido a uma trepanação. Nesse ano apareceu um dos seus trabalhos mais importantes, Le Poète Assassiné (O Poeta Assassinado).

Em 1917 publica Les Mamelles de Tirésias (Os Seios de Tirésias, 1917), obra que anuncia o chegar do surrealismo. Apollinaire foi um grande divulgador da arte africana, da arte "naïve", do Fauvismo, e do Cubismo, correntes de vanguarda que revolucionaram o seu tempo.

A saúde de Apollinaire começou a degradar-se seriamente no ano de 1918. No dia de Ano Novo desse ano foi internado no hospital com uma congestão pulmonar e, receando a morte, casou-se no dia seguinte. Aparentemente restabelecido ao cabo de alguns meses, assistiu ao aparecimento da primeira edição da compilação de poemas Calligrammes (1918), mais uma obra modernista em que busca a associação entre a imagem e a sua expressão verbal.

Nos finais do ano, uma grande epidemia de gripe espanhola assolou a cidade de Paris e, entre as vítimas, contou-se Apollinaire, que faleceu a 9 de novembro de 1918.
Tido como o criador do termo 'surrealista', tinha apenas trinta e oito anos por altura da sua morte. (daqui)

 

terça-feira, 21 de maio de 2024

"O que é para ela a minha consciência?" - Poema de Rainer Maria Rilke


Christoffer Wilhelm Eckersberg (Danish painter, 1783 – 1853),
View north towards Kronborg Castle, Denmark, c. 1810.


O que é para ela a minha consciência?


Depois, quando souber já muitas coisas, quero ainda
simplesmente contemplar os animais, para que algo
da sua mutação se introduza nas minhas
articulações; quero ter uma existência breve
nos seus olhos que me seguram
e lentamente me soltam, serenamente,
 sem me julgarem.
Quero que os jardineiros me digam
muitas flores para que eu aos cacos
dos belos nomes próprios acrescente
um resto das centenas de perfumes.
E quero comprar frutos, frutos onde por dentro
se encontra de novo o país, até ao céu.
Pois isto tu compreendias: os frutos plenos.
Os que em taças punhas à tua frente
equilibrando com as cores todo o seu peso.
E, como os frutos também, vias as mulheres
e vias as crianças, de dentro
impelidas para as formas da sua existência.
E por fim viste-te a ti própria como um fruto,
despojaste-te dos teus vestidos, levaste-te
para diante do espelho, deixaste-te entrar
até ao teu olhar; isto ficou grande, à tua frente,
e não dizia: isto sou eu; não, antes: isto é.
Tão sem curiosidade era por último o teu olhar
e tão despossuído, tão verdadeiramente pobre,
que nem a ti te desejava: sagrado.
Assim te quero recordar, tal como te
colocavas dentro do espelho, a fundo
e longe de tudo. Porque vens diferente?
Porque te contradizes? Porque me queres
convencer de que naquelas contas de âmbar
que trazias ao pescoço ainda havia algum peso
daquele peso que no Além
nunca pertence a imagens apaziguadas? 
Porque me mostras
na tua atitude um mau pressentimento?
Quem te mandou ler os contornos
do teu corpo como as linhas da mão,
de modo que eu já não os possa ver sem destino?
Aproxima-te da luz da vela. Não tenho medo
de olhar os mortos. Quando vêm
têm direito a permanecer
no nosso olhar como as outras coisas.
Aproxima-te; fiquemos por momentos em silêncio.
Olha para esta rosa sobre a minha a mesa;
não é a luz que a rodeia tão tímida
como a que brilha sobre ti? Também ela não devia estar aqui.
No jardim lá fora, não misturada comigo,
devia ter ficado ou partir, -
agora dura assim: o que é para ela a minha consciência?

Rainer Maria Rilke (1875–1926), "Requiem por uma Amiga",
As Elegias de Duíno, Assírio & Alvim, 2002
Tradução de Maria Teresa Dias Furtado

 

segunda-feira, 20 de maio de 2024

"Cantigas" - Poema de João de Deus


Charles Joshua Chaplin (French painter, 1825 - 1891), Rêverie, s.d.
National Museum of Fine Arts
 

Cantigas


Quando vejo a minha amada
Parece que o Sol nasceu;
Cantai, cantai alvorada
Ó avezinhas do céu.

Nessas águas do Mondego
Se pode a gente mirar,
Elas procuram sossego...
E vão a caminho do mar.

A rosa que tu me deste
Peguei-lhe, mudou de cor;
Tornou-se de azul-celeste
Como o céu do nosso amor.

Não me fales da janela,
Que te não ouço da rua;
Fala-me de alguma estrela,
Que te vou ouvir da Lua.

Dizes que a letra não deve
Ser nunca miudinha;
Mas grada ou miúda escreve,
Que o coração adivinha.

Não digas que me não amas
A ver se tenho ciúme;
Os laços do amor são chamas,
E não se brinca com lume.

A virgem dos meus amores
Sobressai entre as mais belas:
É como a rosa entre flores,
É como o Sol entre estrelas.

Eu zombo de sol e chuva,
Noite e dia, terra e mar;
Ais de uma pobre viúva,
Se os ouço, dá-me em chorar.

A sombra da nuvem passa
depressa pela seara;
Mas a nuvem da desgraça
Já de mim se não separa.

Eu bem sei qual é a tinta
Que dás às faces mimosas;
E o carmim com que pinta
Deus nosso Senhor as rosas.

Quando eu era pequenino
Que chorava a bom chorar
A mãe beijava o menino,
No beijo se ia o pesar.

Nunca os beijos que te dei
Me venham ao pensamento...
Correi lágrimas, correi
Para o mar do sofrimento.

Faça Deus maior o mundo,
Terra, mar e céu maior,
Não faz nada tão profundo,
Tão vasto como este amor.

Se tua mãe te vigia,
Faz tua mãe muito bem;
Com joias de tal valia
Não há fiar em ninguém.

Na alma já não me assoma
Aquela antiga visão;
A rosa perdeu o aroma
A luz perdeu o clarão.


João de Deus (1830-1896),
in 'Campo de Flores'


domingo, 19 de maio de 2024

"Exílio" - Poema de Pedro Paulo de Sena Madureira


Ricardo Ruivo (Pintor português, 1877–1910), Retrato de velha, 1906.
 Óleo sobre tela, 61 x 50 cm.


Exílio 
 
 
Dentro de cada rosto vai-se
e perde o passo antes certo
que não se quisera passo, mas silêncio.

Se em vão caminha e nada encontra,
um rosto e cada ruga, cada cancro
conferem o périplo e o decretam
desde sempre, nas frias manhãs do tempo, nulo.

Mármores, fátua memória de um crime,
ou qualquer música degredada em pranto,
nada falta, mas fasta, imóvel, sucessiva
uma lua basta e sua lousa, desterro.

Letras, pedras, fomes, por entre grades paisagem
ou rosto informe no fundo de uma página,
vai a viagem ontem e esquece, urro ou simples erro. 


Pedro Paulo Sena Madureira, in 'Devastação'
 


Ricardo Ruivo, Retrato de mendigo, 1903
Casa-Museu Dr. Anastácio Gonçalves

"Entre nós é vergonhoso reconhecer a própria pobreza; mas pior do que isso é não esforçar-se para escapar dela."

Tucídides, A Guerra do Peloponeso 
 

Ricardo Ruivo, Cristãos Fugindo à Perseguição de Nero, c. 1906-7, Óleo sobre tela,
253,5 x 404 cm. Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa.
 
 
 
Sobre a obra e o autor

Christãos fugindo à perseguição de Nero, c. 1906-1907

Ricardo Ruivo Júnior (Coimbra, 1877 — Paris, 1910) foi uma destacada promessa da geração de alunos da Escola de Belas-Artes de Lisboa a formar-se logo à entrada do século XX, mas que não se cumpriu, tendo falecido prematuramente durante a sua estadia de bolseiro em Paris. Por esse mesmo motivo, o seu nome tem estado esquecido e muito pouco estudado. 
 
Registos escolares indicam-no como um dos alunos mais reconhecidos pelos professores. Ganhou o Prémio Anunciação em 1904, pintura de academia de base animalista e várias medalhas de bronze e de prata que eram atribuídas, em diversas cadeiras, às melhores notas. Em 1904 e 1905 recebeu o Prémio Ferreira Chaves para alunos de pintura com melhor classificação em Composição. Sabe-se que para o ano de 1905, então aluno do 4º ano de Pintura de História apresentara uma composição d’O Enterro de Cristo (reproduzida na Ilustração Portugueza em 1911). A FBAUL tem na sua coleção dois desenhos de Cabeça de Estátua e uma Academia de nu masculino.

Não se conhecem muitos trabalhos de Ricardo Ruivo fora do percurso escolar.
Sabe-se que trabalhou na decoração de azulejo do Sanatório de Sant’Anna na Parede (Cf. O Século, 9 Julho, 1904). Uma pequena crónica não assinada no jornal Resistência (10 Fevereiro, 1907) informava que o jovem pintor se encontrava a trabalhar num conjunto de 4 painéis para um «club de Lisboa». Ao mesmo tempo era apresentado como «um dos discípulos que mais promete», cujos primeiros passos «são seguidos carinhosamente pela crítica da capital que antevê» «o alvorecer de um grande talento», acrescentando ainda que «Columbano Bordalo Pinheiro tem pelo novo pintor, que foi seu discípulo, uma admiração que faz o máximo elogio ao sr. Ricardo Ruivo». Na sequência anunciava-se que «para complemento da sua educação» estava indicada uma viagem ao estrangeiro.

De facto, foi com este reconhecimento que, ainda em 1907, partiu para Paris com bolsa do legado Valmor – importante bolsa criada logo no início do século, que completava as tradicionais da Academia e que possibilitou o aumento considerável de artistas portugueses em Paris desde inícios do século XX até à I Guerra Mundial. Era ainda brevemente referido em artigo escrito por Aquilino Ribeiro em Março de 1909 sobre «Artistas Portugueses em Paris». Contudo, vítima de ataque de tuberculose (também se relatou apagamento da mente após «desequilíbrio nervoso»), Ricardo Ruivo falecia pouco depois, em meados de 1910, sem oportunidade de cumprir qualquer prova de bolseiro nem, muito menos, a devida maturidade de um percurso artístico.

Nesta pintura, Christãos fugindo à perseguição de Nero, Ricardo Ruivo cruzava influências de Veloso Salgado, por quem recebia influências indiretas do pintor francês Fernand Cormon, e do seu mestre Columbano, ambos professores de pintura de história na Escola de Belas-Artes de Lisboa no seu tempo escolar. Veloso Salgado inspirava um simbolismo religioso. Columbano uma pincelada larga e de plural paleta castanha. Mas verificam-se marcas de Cormon, sobretudo da famosa pintura Caïn fuyant avec sa famille, grande sucesso no salon parisiense de 1880, que narra a marcha de Caim, castigado a caminhar perpetuamente com os seus filhos por ter matado o irmão Abel, cena diretamente inspirada em poema de Victor Hugo sobre a narrativa bíblica. Veloso Salgado fizera cópia reduzida desta obra em 1981, numa clara homenagem a Cormon de quem tinha tido lições nas Belas-Artes de Paris, cópia essa também da coleção da FBAUL. Por estas vias houve uma influência de Cormon na formação de jovens pintores na escola de Belas-Artes de Lisboa à entrada do século XX, assinalada ainda noutros pintores colegas de Ricardo Ruivo, como Adriano Sousa Lopes, companheiro de geração com quem Ricardo Ruivo se cruzaria tanto em Lisboa como em Paris na primeira década do século XX.

Esta obra de dimensões bem maiores que a referida cópia de Veloso Salgado, que Ricardo Ruivo pudera ver na Escola de Belas-Artes de Lisboa, apresenta menos figuras, aproximando-se mais da escala da peça de Cormon. A narrativa, também assente na questão da expulsão e fuga, é contudo outra, também religiosa, mas menos bíblica e mais histórica. O quadro surge reproduzido na Ilustração Portuguesa (3 Abril 1911), em artigo de homenagem à morte precoce do jovem pintor e por ocasião de uma exposição do seu espólio na Academia de Belas-Artes, sendo apresentado com o título: Christãos fugindo à perseguição de Nero. As figuras, de corpo inteiro e de escala imponente avançam da esquerda para a direita, onde o espaço se abre, sofrendo o impacto de forças da natureza pela força do vento que afeta cabelos e vestes em efeito de dramatização. O quadro revela uma clara ambição escolar de Ricardo Ruivo, o que ajuda a entender o reconhecimento que lhe foi consagrado e que certamente o terá ajudado na conquista da bolsa para Paris, sendo de supor que terá sido realizada pouco antes (c.1906-1907). 
  
 

sábado, 18 de maio de 2024

"A Palavra Destino " - Poema de Lindolf Bell


Albert Bierstadt (German American painter, 1830–1902), Emigrants Crossing the Plains, 
or The Oregon Trail, 1869. [This painting was likely inspired by the 1863 expedition.]
 

A Palavra Destino


Deixai vir a mim
a palavra destino.

Manhã de surpresas, lascívia e gema.
Acasos felizes, deslizes.
Ovo dentro da ave dentro do ovo.
Palavra folha e flor.

Deixai vir a mim palavra
e seus versos, reversos:
metamorfose,
metaformosa.

Deixai vir a mim
a palavra pão-de-consolo.
Livre de ataduras, esparadrapos,
choques elétricos
e subtis guardanapos em seco engolidos socos.

Deixai vir a mim
a palavra intumescida pelo desejo
a palavra em alvoroço subtil, ardil
e ave na folhagem da memória.
A palavra estremecida entre a palavra.
A palavra entre o som
mas entre o silêncio do som.

Deixai vir a mim
a palavra entre homem e homem.
E a palavra entre o homem
e seu coração posto à prova
na liberdade da palavra coração.

Deixai vir a mim
a palavra destino.


Lindolf Bell, in "O Código das Águas”.
 1ª ed., São Paulo: Global editora, 1984.
 
 
Lindolf Bell (daqui)


Biografia do Poeta
 
Lindolf Bell, filho de Theodoro e Amália Bell, nasceu na cidade de Timbó, Santa Catarina, em 2 de novembro de 1938.
Foi de seus pais que herdou a clareza dos poemas, que mesmo produzidos na urbanidade, conservaram elementos da vida agrária. Os pais do poeta eram lavradores, porém, com um grande sentimento e conhecimento de mundo, o que definitivamente ficou enraizado em sua vida e suas obras.
Lindolf Bell foi reconhecido nacional e internacionalmente através da sua liderança no Movimento Catequese Poética, que levou acesso à poesia e à arte a milhares de pessoas. 
Era um homem que abrigava o mundo no coração, que amava os girassóis, que via tudo como missão, encarando a palavra como uma dádiva e fazendo dela um instrumento de comunhão e solidariedade. Lindolf Bell é o maior, o mais constante e importante nome da poesia catarinense.
Bell casou-se com a reconhecida artista plástica Elke Hering, com quem teve três filhos: Pedro, Rafaela e Eduardo Bell.
Após difundir seu movimento pelo Brasil e no exterior, Bell fixou moradia em Blumenau (SC). Na cidade, juntamente com a esposa Elke Hering e os amigos Péricles e Arminda Prade, criou a Galeria Açu-Açu, a primeira do Estado de Santa Catarina.
Bell também foi contador, professor, crítico de artes, conselheiro estadual da cultura do Estado de Santa Catarina e marchand (promotor de eventos relacionados à arte).
Foi um nome ligado à invenção lógica, à ousadia, à uma capacidade mágica. Seguindo seus impulsos, rompeu as amarras que prendiam a poesia, tornando e exigindo o contacto direto com o leitor. Bell também difundiu suas ideias através de painéis-poemas, corpoemas.
Se o ofício do poeta é redescobrir a palavra, como dizia o autor de As Vivências Elementares, nosso ofício é o de redescobrir o poeta, através de suas palavras, tais como aquelas presentes na Metafísica Cotidiana: “procuro a palavra-palavra a palavra fóssil, a palavra antes da palavra”.
Bell amava a terra e tudo o que dela vinha. Mergulhando no drama da humanidade, a sua poesia mantinha-se vibrante. Tratava sempre da vida, da terra, da infância, do destino, da solidão, do efémero, do transcendente, do sonho e da esperança. 
“Todas as coisas que me rodeiam são raízes. A jabuticabeira que deve ter quase cem anos, a caramboleira, os baús, os móveis e todos os objetos antigos não são uma forma triste de memória mas uma afirmação de que, num crescimento espiritual, num crescimento humano não podemos jogar nada pela janela ou no lixo. Não podemos jogar fora as raízes - elas nos preservam e elas se preservam connosco, na memória ou dentro da terra, seja onde for, mas elas também nos projetam porque, à medida que elas se preservam na terra, elas crescem e fazem a gente crescer, como uma árvore. O homem é uma árvore que abriga amores, lembranças, outros seres, uma árvore que dá sombra e luz, e é para isso que a gente nasceu, fundamentalmente. Isso eu aprendi, é claro convivendo com meus pais e também com os vizinhos, que tinham maneiras semelhantes de viver e conviver, maneiras simples mas definitivas”, disse Bell em uma entrevista à Fundação Cultural Catarinense (FCC). E é isso que se pretende preservar e que busca-se vislumbrar na Casa do Poeta Lindolf Bell. 
Bell veio a falecer em 10 de dezembro de 1998. Mas um poeta não morre; pois a vida dos poetas é eterna. Bell colocou um pouco de si em cada palavra que escreveu e, embora seu corpo tenha ido, sua vida continuará espalhada eternamente pelas páginas dos seus livros, na magia de suas palavras e pelo legado cultural que deixou. (daqui)
 

sexta-feira, 17 de maio de 2024

"Tempo Revisitado" - Poema de Casimiro de Brito


Jakub Schikaneder (Bohemian painter, 1855–1924), All Souls' Day, 1888,
National Gallery Prague


Tempo Revisitado


O tempo a que sempre regressamos
e nos visita um instante

O tempo que depois destruímos
construímos e alimentamos se nos
alimenta

O tempo onde a luz buscamos e
a morte sempre
encontramos


Casimiro de Brito (1938 - 2024), 
in "Mesa do Amor", 1970 
 

quinta-feira, 16 de maio de 2024

"Correspondência" - Poema de Nuno Júdice


Winslow Homer (American landscape painter and illustrator, 1836 –1910), On the Beach, 1869,
Arkell Museum
 
 
 
Correspondência


Vejo as nuvens que avançam do Atlântico
para o continente. E, por trás delas, como um pastor
exigente, o vento que as empurra. Depois,
as nuvens passam e volta o sol, com o azul
imutável das manhãs de outono, monótono e distante
como quem o olha, ao sair de casa, sem
tempo para pensar no tempo.

As nuvens, no entanto, continuam
o seu caminho: umas, desfazem-se em água
sobre campos vazios, ou descem para as grandes
cidades para as abraçar com um tédio
enevoado. As que me interessam, porém,
são as que sobem para norte, e ficam
mais frias à medida que as pressões continentais
abrandam o seu curso, Então, param
em dias cinzentos; e, por fim, escurecem
a tua alma, quando as olhas, e te apercebes
de que se aproxima um inverno
de solidão.

A não ser que leias, nesse obscuro céu,
esta carta que te mando.
 

Nuno Júdice
, O Movimento do Mundo
Lisboa, Quetzal Editores, 1996
 

quarta-feira, 15 de maio de 2024

"Numa casa muito estranha" - Poema de António Mota


Ilustração de Valentin Rekunenko (Fantasy artist, b. 1955)
 


Numa casa muito estranha

 
Numa casa muito estranha
toda feita de chocolate
vivia uma bruxa castanha
que adorava o disparate.

Punha os copos no fogão
as panelas na banheira
os sapatos nas gavetas
as meias na frigideira.
 
Escrevia com fios de água
dormia sempre de pé
cozinhava numa cama
e comia no bidé.

Varria a casa com garfos
limpava o pó com farinha
deitava cem gatos na sala
e dormia na cozinha. 


António Mota, "Se tu visses o que eu vi", 2007
Editora: Edições Asa
 
 
Ilustração de Valentin Rekunenko
 

"Leitura é exercício da condição de pensar, é alimento para a imaginação, é refinamento do espírito. De nada servem normas de 'como' escrever, a quem não tem 'o que' dizer."
 
Luzia de Maria, in Leitura & Colheita - Livros, leitura e formação de leitores, Editora Vozes, 2002. 
 
 

terça-feira, 14 de maio de 2024

"O Edital" - Poema de Augusto Gil



Karl Witkowski (Polish-American painter, 1860–1910), Boy with an Apple.
 
 

O Edital


Manuel era um petiz de palmo e meio
(Ou pouco mais teria, na verdade)
(De rosto moreninho e olhar cheio)
De inteligente e enérgica bondade.

Orgulhava-se dele o professor...
No porte e no saber era o primeiro.
Lia nos livros que nem um doutor.
Fazia contas que nem um banqueiro...

Ora uma vez ia o Manuel passando
Junto ao adro da igreja. Aproximou-se
E viu à porta principal um bando
De homens a olhar o que quer que fosse.

Empurravam-se todos em tropel
Ansiosos por saberem, cada qual,
O que vinha a dizer certo papel
Pregado com obreias no portal...

"Mais contribuições!" Supunha um.
"É pràs sortes, talvez"... outro volvia.
Quantas suposições! Porém nenhum
Sabia ao certo o que o papel dizia.

Nenhum (e eram vinte os assistentes)
Sabia ler aqueles riscos pretos.
Vinte homens, e talvez inteligentes,
Mas todos, que tristeza — analfabetos!...

Furou Manuel por entre aquela gente
Ansiosa, comprimida, amalgamada,
Como uma formiguinha diligente
Por um maciço de erva emaranhada.

Furou e conseguiu chegar adiante.
Ergueu-se nos pezitos para ver;
Mas o edital estava tão distante,
Lá tanto em cima, que o não pôde ler.

Um dos do bando agarrou-o então
E levantou-o com as mãos possantes
E calejadas de cavarem pão...
Houve um silêncio entre os circunstantes.

E numa clara voz melodiosa
A alegre e insinuante criancinha
Pôs-se a dizer àquela gente ansiosa,
Correntemente o que o edital continha.

Regressava o abade do passal,
A caminho da sua moradia.
Como já era idoso e via mal,
Acercou-se para ver o que haveria...

E deparou com esse quadro lindo
De uma criança a ler a homens feitos;
De um pequenino cérebro espargindo
Luz naqueles cérebros imperfeitos...

Transpareceu no rosto ao bom abade
Um doce e espiritual contentamento;
E a sua boca, fonte de verdade.
Disse estas frases com um brando acento:

Olhai amigos, quanto pode o ensino...
Sois homens; alguns, pais, e até avós,
Pois só por saber ler, este menino
— É já maior do que nenhum de vós!
 

Augusto Gil
, in "Versos", 1898
 
 
Karl Witkowski, Happy Days, 1909


"A alma das crianças é um espelho em que se retrata a natureza."

Cícero citado em "Cintilações" - página 56, Sabino Lino Conte - Editora F.T.D., 1966 - 158 páginas


Karl Witkowski, Guarding The Flower Basket.
Private Collection, New York.



"É vergonhoso insultar uma criança. Ela tem sentimentos, tem sua pequena dignidade e como não pode se defender com isso, é sem dúvida um ato ignóbil ferir tais sentimentos."

Mark Twain,
"Dicas uteis para uma vida futil: Um manual para a maldita raça humana" -
Página 128, Relume Dumará, 2005 - 224 páginas.
 
 
Mark Twain, "Dicas úteis para uma vida fútil:
Um manual para a maldita raça humana." 
 
 
RESUMO
 
"Dicas úteis para uma vida fútil: Um manual para a maldita raça humana." 

Irreverente, charmoso, com um texto adequado para ser muito citado, este manual (um excêntrico guia de etiqueta para a raça humana) contém sessenta e nove aforismos, casos, propostas esquisitas, máximas e advertências de Mark Twain tirados de seus escritos pessoais e publicados. O autor aconselha refletir sobre a vida familiar e as boas maneiras em público; opina sobre roupa, saúde, comida, educação de filhos e proteção da casa, além de temas mais específicos como a melhor maneira de lidar com vendedores e ladrões. Os textos foram selecionados das cartas de Twain, escritos autobiográficos, discursos, romances e diálogos e são deliciosamente novos, irónicos, muito pertinentes e plenos da efervescência característica do autor. Também nos mostram exatamente porque Mark Twain se tornou a mais conhecida voz literária americana no mundo. (daqui)
 

segunda-feira, 13 de maio de 2024

“Como um vento na floresta” - Poema de Fernando Pessoa


Victor Westerholm (Finnish landscape painter, 1860 - 1919),
 Cows in a Birch Forest, 1886, Önningeby.
 


Como um vento na floresta


Como um vento na floresta,
Minha emoção não tem fim.
Nada sou, nada me resta.
Não sei quem sou para mim.

E como entre os arvoredos
Há grandes sons de folhagem,
Também agito segredos
No fundo da minha imagem.

E o grande ruído do vento
Que as folhas cobrem de som
Despe-me do pensamento:
Sou ninguém, temo ser bom.

30-9-1930

Fernando Pessoa
, Poesias Inéditas (1919-1930).
(Nota prévia de Vitorino Nemésio e notas de Jorge Nemésio.)
 Lisboa: Ática, 1956 (imp. 1990). - 192.