quinta-feira, 18 de junho de 2015

"Meditação" - Poema de Fernanda de Castro


Berthe MorisotPortrait de Mme Morisot et de sa fille Mme Pontillon ou La lecture
 (The Mother and Sister of the Artist - Marie-Joséphine & Edma) 1869/70



Meditação


Esta noite foi longa. Longa e vária
de segredo e mistério. Noite densa.
Invisível, tirânica presença
povoou a minha noite solitária.

Ah, a insónia com longas mãos de opala
e fundos olhos cegos!
E o pensamento à solta como o vento
- montes e vales, oceanos, pegos!...
e a cabeça que estala,
a cabeça que estala!

Pensar! Como se o humano entendimento
para tanto chegasse! Meditar
em sofás de ridículas saletas
no sábio movimento dos planetas.
Filosofar, oh irrisão,
enquanto mal ou bem
se faz a digestão,
sobre a morte, o devir,
o mistério do ser e do não ser,
e tudo isto a sério, sem sorrir,
como se enfim tudo estivesse dito:
o Caos, a Criação, Deus e o Infinito.
E nem sequer escondes por decoro,
triste mortal com asas de besouro,
ó depenado arcanjo,
que te crês Deus ou pelo menos anjo.

Esta noite foi longa. Longa em mim,
auroral e lunar, sem princípio nem fim.
Meditação
inútil sobre as grades da prisão.
Meditação sobre a existência,
(Existirá ou não?,
ou será tudo simples aparência,
coletiva ilusão?)

Esta noite foi longa. Longa e bela,
calma e branca vigília. 
Um fio de luar entrou pela janela
e um doce cheiro a tília.
Abstrações metafísicas, problemas?
O firmamento era um brocado azul bordado a ouro,
fabuloso tesouro
de incomparáveis gemas.
Tudo era silêncio, quietação.
Compreendi então
que o essencial não era compreender
mas sentir e aceitar
a vida e a morte, o bem e o mal,
a flor, o luar
e a ignorância total.
Não mais filosofias de vaidoso esteta
e não mais este orgulho: sou poeta.
Razão
tem-na, talvez, o louco sem razão,
tem-na o monge na cela,
o cego de nascença, a pedra, o sapo,
a boneca de trapo.
O mais é tudo igual: poetas, corifeus...

Esta noite foi longa. Longa e bela.
Encontrei Deus. 


Exílio (1952)

Sem comentários: