segunda-feira, 6 de julho de 2020

"A minha vida é o mar o Abril a rua" - Poema de Sophia de Mello Breyner Andresen


Max Liebermann, Rapazes na praia, 1898, Nova Pinacoteca, Munique
 


Poema


A minha vida é o mar o Abril a rua
O meu interior é uma atenção voltada para fora
O meu viver escuta
A frase que de coisa em coisa silabada
Grava no espaço e no tempo a sua escrita

Não trago Deus em mim mas no mundo o procuro
Sabendo que o real o mostrará

Não tenho explicações
Olho e confronto
E por método é nu meu pensamento

O quadrado da janela
O brilho verde de Vésper
O arco de oiro de Agosto
O arco de ceifeira sobre o campo
A indecisa mão do pedinte
São minha biografia e tornam-se o meu rosto

Por isso não me peçam cartão de identidade
Pois nenhum outro senão o mundo tenho
Não me peçam opiniões nem entrevistas

Não me perguntem datas nem moradas
De tudo quanto vejo me acrescento
E a hora da minha morte aflora lentamente
Cada dia preparada 


Jules Breton (1827–1906), Fishermen at Menton, 1878


Quantas vezes as ondas se encresparam
com meus suspiros! Quantas com meu pranto
se pararam com mágoa e me escutaram!

Luís de Camões, Écloga

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