segunda-feira, 13 de julho de 2020

"Qualquer caminho leva a toda a parte" - Poema de Fernando Pessoa


 
Charles Sprague Pearce (American, 1851–1914), On the path


Qualquer caminho leva a toda a parte



Qualquer caminho leva a toda a parte.
Qualquer ponto é o centro do infinito.
E por isso, qualquer que seja a arte
De ir ou ficar, do nosso corpo ou espírito,
Tudo é estático e morto. Só a ilusão
Tem passado e futuro, e nela erramos.
Não há estrada senão na sensação
É só através de nós que caminhamos.

Tenhamos para nós mesmos a verdade
De aceitar a ilusão como real
Sem dar crédito à sua realidade.
E, eternos viajantes, sem ideal
Salvo nunca parar, dentro de nós,
Consigamos a viagem sempre nada
Outros eternamente, e sempre sós;
Nossa própria viagem é viajante e estrada.

Que importa que a verdade da nossa alma
Seja ainda mentira, e nada seja
A sensação, e essa certeza calma
De nada haver, em nós ou fora, seja
Inutilmente a nossa consciência?
Faça-se a absurda viagem sem razão.
Porque a única verdade é a consciência
E a consciência é ainda uma ilusão.

E se há nisto um segredo e uma verdade
Os deuses ou destinos que a demonstrem
Do outro lado da realidade,
Ou nunca a mostrem, se nada há que mostrem.
O caminho é de âmbito maior
Que a aparência visível do que está fora,
Excede de todos nós o exterior
Não para como as coisas, nem tem hora.

Ciência? Consciência? Pó que a estrada deixa
E é a própria estrada, sem a estrada ser.
É absurda a oração, absurda a queixa.
Resignar(-se) é tão falso como ter.
Coexistir? Com quem, se estamos sós?
Quem sabe? Sabe [...] que são?
Quantos cabemos dentro em nós?
Ir é ser. Não parar é ter razão. 

11-10-1919

Charles Sprague Pearce, A Peasant Girl, Auvers-sur-oise, 1910


“Caminhante, não há caminho. Faz-se o caminho ao andar.”

(Antonio Machado)
(1875- 1939)


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