sábado, 19 de setembro de 2020

"Divórcio" - Poema de Pedro Homem de Mello


Anders Zorn (Swedish painter, sculptor, and etching artist, 1860–1920),
  Omnibus I, 1892, Nationalmuseum, Stockholm.


Divórcio



Cidade muda, rente a meu lado,
Como um fantasma sob a neblina...
Há cem mil rostos. Tanto soldado
E tanto abraço desesperado
Nesta cidade tão masculina!

Cidade muda como um soldado.

Cidade cega. Todos os dias,
A nossa vida fica mais breve,
As nossas mãos ficam mais frias...
Todos os dias, todos os dias,
A morte paga, paga a quem deve.

Cidade cega todos os dias.

Cidade oblíqua. Sexo pesado.
Rio de cinza, lúgubre e lento...
Bandeira negra, barco parado,
Nunca o teu nome foi batizado
Nem o teu beijo foi casamento!

Cidade minha, do meu pecado...

Cidade estranha, sabes que existo?
Os homens passam... Para onde vão?
Só tem amores quem não for visto.
Por isso canto, só porque insisto
Em dar combates à tentação.

Oh! a volúpia de não ser visto!


Pedro Homem de Mello,
in "Grande, Grande Era a Cidade..."


Anders Zorn, Self-Portrait with Model, 1896.


Prefácio


De nada sei
Como as rosas.

De nada sei
Como as nuvens.

De nada sei
Como as pedras
Que nada sabem de mim.


Pedro Homem de Melo 



Anders Zorn, Self-Portrait with Hat, 1907


"A visão torna o mundo uma janela, mas percebemos que há outras dimensões igualmente fulcrais do olhar. A começar pela dimensão de reflexividade: o nosso corpo, que olha todas as coisas, pode também olhar-se; ele é ao mesmo tempo vidente e visível." 
 
José Tolentino de Mendonça, A Mística do Instante, 2014


"Bilhete" - Poema de Miguel Torga


William McGregor Paxton (1869 – 1941), The white veranda, 1902


Bilhete


Nada me dês nem peças.
E não meças
O que podias dar e receber.
Fecha a própria riqueza do teu ser.

Um de nós era a mais
À lírica janela...
Olharam-se os zagais,
Mas não houve novela.

A vida assim o quis,
A vida sem amor.
Não regues a raiz
Do que não teve flor.


Miguel Torga, in 'Diário, 1943'


William McGregor Paxton (1869-1941), Woman with Book, ca. 1910.


"O moralismo é a antítese da Literatura. A Literatura começa precisamente quando recusamos ser moralistas e instintivamente somos perversos. Quem escreve não pode olhar para onde toda a gente está a olhar, mas para o outro lado."

Gonçalo M. Tavares, Jornal de Letras, Artes e Ideias (2005)



William McGregor Paxton, The house maid, 1910


"Perturba-me ser vencido pelo tempo. Nunca percebi o passatempo."

Gonçalo M. Tavares, Diário de Notícias (2004)


sexta-feira, 18 de setembro de 2020

"Lamento do poeta objetivo" - Poema de Jorge de Sena


Cyprien Eugène Boulet (1877–1927), Madame Jean Trentesaux,
née Yvonne Dewavrin (1896-1984), 1923



Lamento do poeta objetivo


Anda-me o amor tomando a própria vida,
como se, amando, eu existisse mais.
E leva-me o Destino em voz traída,
como se houvera encontros desiguais.

A multidão me cerca, e, renascida,
já dela terei fome de sinais.
E, mal a noite se demora ardida,
o medo e a solidão me esfriam tais

as cinzas desse amor que sacrifico.
Não é futura a só miséria. A queixa
também não é: e apenas acontece

no vácuo imenso que este amor me deixa,
quando maior, quando de si mais rico,
se dá de mundo em mundo, e lá me esquece.


Jorge de Sena, in 'Post-Scriptum' 
 
 

"Elegia para a Adolescência" - Poema de Carlos Pena Filho


Johannes Vermeer also known as Jan Vermeer (Dutch painter, 1632–1675),
Girl with a Pearl Earring, c. 1665, Mauritshuis, The Hague, Netherlands.



Elegia para a Adolescência 

 
E enfim descansaremos sob a verde
resistência dos campos escondidos.
Nem pensaremos mais no que há de ser de
nós que então seremos definidos.

No mar que nos chamou, no mar ausente,
simples e prolongado que supomos
seremos atirados de repente,
puros e inúteis como sempre fomos.

Veremos que as vogais e as consoantes
não são mais que ornamentos coloridos,
fruto de nossas bocas inconstantes.

E em silêncio seremos transformados,
quando formos, serenos e perdidos,
além das coisas vãs precipitados.


Carlos Pena Filho
, in 'Livro Geral', 1959

"Eram ramos tufados, cheios" - Poema de Johann Wolfgang von Goethe


Sir Alfred East (1844 - 1913), Lake in autumn, Unknown date



Eram ramos tufados, cheios

 
Eram ramos tufados, cheios,
Olha, minha Amada, vê!
Deixa que te mostre os frutos
Dentro dos ouriços verdes.

Redondos, há muito pendem,
Calmos, fechados em si,
E um ramo a baloiçar
Os embala paciente.

Mas de dentro amadurece
E incha o fruto castanho;
Gostava de vir para o ar
E de poder ver o sol.

A casca rebenta, e cai
Alegre para o chão o fruto;
Tais minhas canções aos montes
Te vão cair no regaço. 


Johann Wolfgang von Goethe, 
 in "Divã Ocidental-Oriental"  
Tradução de Paulo Quintela



Sir Alfred East, View at Kettering


Sei que nada me é pertencente
Além do livre pensamento
Que da alma me quer brotar,
E cada amigável momento
Que um destino bem-querente
A fundo me deixa gozar. 


Johann Wolfgang von Goethe,
 in "Canções"
Tradução de Paulo Quintela



Sir Alfred East, by Philip de László, 1907


Se da Amada estás ausente
Como o Oriente do Ocidente,
O coração transpõe todo o deserto;
Só, por toda a parte acha o seu caminho certo.
Para quem ama Bagodá é aqui perto.


Johann Wolfgang von Goethe,
in "Divã Ocidental-Oriental"
Tradução de Paulo Quintela 
 
 

"Pequena Aldeia" - Poema de Cecília Meireles


Elin Danielson-Gambogi, Young Mother (Girl from Brittany), 1885


Pequena Aldeia


No canto do galo há uma pequena aldeia
de mulheres risonhas e pobres
que trabalham em casas de pedra
com belos braços brancos
e olhos cor de lágrima

São umas corajosas mulheres
que tecem em teares antigos,
são Penélopes obscuras
em suas casas de pedra
com fogões de pedra
nestes tempos de pedra.

Elas, porém, cantam com frescura,
a leveza, a graça, a alegria generosa
da água das cascatas,
que corre de dentro do mundo
pelo mundo
para fora do mundo.

No canto do galo há, de repente,
essa pequena aldeia,
com essas belas mulheres,
essas boas mulheres escondidas,
essas criaturas lendárias
que trabalham e cantam
e morrem.

O amor é uma roseira à sua porta,
o sonho é um barco no mar
a vida é uma brasa na lareira
um pano que nasce, fio a fio.
A morte é um dia santo
para sempre no céu.


"Escrever é procurar entender, é procurar reproduzir o irreproduzível, é sentir até o último fim o sentimento que permaneceria apenas vago e sufocador."

(Clarice LispectorÁgua viva)

 

Pascal Dagnan-Bouveret, The Pardon in Brittany, 1886


"Minha história é de uma escuridão tranquila, de raiz adormecida na sua força, de odor que não tem perfume. E em nada disso existe o abstrato. É o figurativo do inominável."

(Clarice LispectorÁgua viva)


quinta-feira, 17 de setembro de 2020

"Onde os deuses se encontram" - Poema de António Ramos Rosa




Onde os deuses se encontram


Não busques não esperes
Como procurar a nudez do simples?
Os deuses encontram-se no refúgio aberto sombreado
O círculo dilata-se e dilata-nos
O lugar revela-se no esplendor da luz
O mar levanta as suas lâmpadas brancas
Diz de novo a fascinante simplicidade
Diz agora as minúcias
deslumbrantes
arcos na areia insetos frutos
Tanta luz tanta sombra iluminada!




Sandro BotticelliPrimavera (c. 1482), icon of the springtime renewal of the Florentine Renaissance.
Left to right: Mercury, the Three Graces, Venus, Flora, Chloris, Zephyrus
 

Queixa do editor de poesia
 
 
"Poesia não se vende,
ninguém a entende!"
-- suspira o editor.
Poesia! Poesia!
Ninguém te entende.
És como a morte e o amor. 


Lêdo Ivo

In "Antologia poética", org. de Albano Martins. 
Afrontamento (Edições), 2012
 

 
Probable self-portrait of Sandro Botticelli,
 in his Adoration of the Magi (1475)


Sandro Botticelli
 
 
Pintor do Renascimento italiano, Alessandro di Mariano Filipepi nasceu em 1445, em Florença, e aí morreu em 1510. Muito provavelmente, foi discípulo do pintor Fra Filippo Lippi. Em 1470 possuía já um atelier e tinha recebido a encomenda da Alegoria da Coragem. Quanto ao aperfeiçoamento do seu estilo, exprimindo-se na preocupação pelo sentido da forma e do traço mais do que pelo volume, sofreu posteriormente a influência de Pollaiuolo e de Verrocchio. 
Protegido pela família Medicis, para quem executou vários trabalhos, ficou impregnado pelo ambiente artístico e mental que se vivia na corte de Lourenço "o Magnífico" - A Alegoria da Primavera (cerca de 1478) e O Nascimento de Vénus (1486), sem dúvida os seus quadros mais famosos, pretendem recriar certas conceções da Antiguidade clássica à luz da filosofia cristã. 
Pintou igualmente retratos dos Medicis e quadros de temas religiosos, que incluem a representação de várias "Madonnas". Entre 1481 e 1482 executou três frescos da Capela Sistina no Vaticano. Nos últimos anos o seu estilo tornou-se mais obscuro. 
Depois de os Medicis terem sido expulsos de Florença, Botticelli teria sofrido uma crise de ordem espiritual, como resultado dos discursos do dominicano Savonarola. Embora esta influência não esteja comprovada, o certo é que os últimos trabalhos refletem uma certa melancolia e uma extrema devoção: A Natividade Mística (cerca de 1500), sobretudo, comunica uma atmosfera intensamente religiosa. (Daqui)
 
Sandro Botticelli, The Mystic Nativity (c. de 1500-1501),
National Gallery, London


"Inflama-me, poente: faz-me perfume e chama;
que o meu coração seja igual a ti, poente!
descobre em mim o eterno, o que arde, o que ama,
...e o vento do esquecimento arraste o que é doente!"

Juan Ramón Jiménez


"Crepúsculo de Outono" e "Canção de Outono" - Poemas de Manuel Bandeira e Paul Verlaine


Alfred Sisley, A Road in Seine et Marne, 1875


Crepúsculo de Outono


O crepúsculo cai, manso como uma bênção.
Dir-se-á que o rio chora a prisão de seu leito...
As grandes mãos da sombra evangélicas pensam
As feridas que a vida abriu em cada peito.

O outono amarelece e despoja os lariços.
Um corvo passa e grasna, e deixa esparso no ar
O terror augural de encantos e feitiços.
As flores morrem. Toda a relva entra a murchar.

Os pinheiros porém viçam, e serão breve
Todo o verde que a vista espairecendo vejas,
Mais negros sobre a alvura unânime da neve,
Altos e espirituais como flechas de igrejas.

Um sino plange. A sua voz ritma o murmúrio
Do rio, e isso parece a voz da solidão.
E essa voz enche o vale... o horizonte purpúreo...
Consoladora como um divino perdão.

O sol fundiu a neve. A folhagem vermelha
Reponta. Apenas há, nos barrancos retortos,
Flocos, que a luz do poente extática semelha
A um rebanho infeliz de cordeirinhos mortos.

A sombra casa os sons numa grave harmonia.
E tamanha esperança e uma tão grande paz
Avultam do clarão que cinge a serrania,
Como se houvesse aurora e o mar cantando atrás.


Manuel Bandeira
, 1886-1968
in  A Cinza das Horas, 1917


 


Canção de Outono


Os soluços graves
Dos violinos suaves
Do outono
Ferem a minh'alma
Num langor de calma
E sono.

Sufocado, em ânsia,
Ai! quando à distância
Soa a hora,
Meu peito magoado
Relembra o passado
E chora.

Daqui, dali, pelo
Vento em atropelo
Seguido,
Vou de porta em porta,
Como a folha morta
Batido... 


Paul Verlaine

Tradução de Alphonsus de Guimaraens 
 
 

"Expiação" - Poema de Miguel Torga


Angelica Kauffman (1741–1807), Portrait of Lady Louisa Leveson Gower
(Goddess of Hope), 1767


Expiação


Nunca me respondeste, quando te chamei,
E só Deus sabe como era urgente e aflita
A minha voz!
Mas, desgraçadamente sós,
Morrem os que se afogam
No mar da sua própria condição.
O meu, sem margens, é um descampado
Desabrigado.
Vagas e vagas de solidão,
E a tua imagem, litoral sonhado,
Sempre evocada em vão.
Nunca me respondeste, e foi melhor assim.
Um náufrago perpétuo é um pesadelo.
Dizer-me o quê?
Que, de longe, me vias afogar,
Mas que nada podias.
Pois sabias
Que os poetas jurados,
Humanas heresias,
Nascem condenados
A morrer afogados
Todos os dias
No tormentoso mar dos seus pecados.
Angelica Kauffman, Self-portrait, 1770–75


"O homem só peca contra o homem e contra as suas criações. Só para olhos verdadeiramente impuros é que a nudez de Miguel Ângelo precisava de camisas."

Miguel Torga, in 'Diário, 1946'


"Despondency" - Poema de Antero de Quental



Józef Chełmoński (1849–1914),  Partridges in the Snow, 1891



Despondency


Deixá-la ir, a ave, a quem roubaram
Ninho e filhos e tudo, sem piedade...
Que a leve o ar sem fim da soledade
Onde as asas partidas a levaram...

Deixá-la ir a vela, que arrojaram
Os tufões pelo mar, na escuridade,
Quando a noite surgiu da imensidade,
Quando os ventos do sul se levantaram...

Deixá-la ir, a alma lastimosa,
Que perdeu fé e paz e confiança,
À morte queda, à morte silenciosa...

Deixá-la ir, a nota desprendida
Dum canto extremo... e a última esperança...
E a vida... e o amor... deixá-la ir, a vida!”


Antero de Quental



Despondency, ou seja, desesperança é um soneto de Primaveras Românticas que poderá ser inserido na fase noturna, pessimista de Antero. É um poema extremamente musical que apresenta um forte sentimento de tristeza e de abandono como indica o próprio título. O seu ritmo ligeiro sugerido pelo paralelismo, pela pontuação, pela repetição epanafórica exprime a fragilidade da vida e o consequente estado de abandono de quem a sente.

O poeta inicia o poema apresentando uma ave, por sinal um ser frágil “…a quem roubaram / Ninho e filhos e tudo,... ", que fica, por esse motivo, ao abandono e desprovida de tudo o que simbolizava a sua razão de viver. Atente-se na repetição da conjunção coordenativa copulativa, presente no exemplo acima transcrito como forma de reforçar a ideia de perda e consequente dor e carga emotiva sugeridas também pelas reticências.

A sensação de indiferença encontra-se patente ao longo de todo o poema, principalmente através de:

- repetição anafórica da expressão "Deixá-la ir";

- verbos de tom disfórico (roubar, levar, arrojar, perder);

- adjetivos ("lastimosa", "queda", "silenciosa" e "desprendida”);

- substantivos como, por exemplo, "noite", "morte", "escuridade", que mostram, por parte do autor, uma total indiferença perante a vida e, consequentemente, um nítido desejo de antecipar a morte, visível igualmente no verso 11 "A morte queda, a morte silenciosa... ", culminando no último verso do poema "E a vida... e o amor... deixá-la ir, a vida!", onde as reticências imprimem um ritmo soluçante como se de um moribundo se tratasse, acentuando-se ainda mais a ideia de abandono e de desprendimento face à vida.

Ao longo do soneto verifica-se uma gradação na forma como o poeta apresenta os vários elementos que estão inexoravelmente votados à morte: não só a ave, como já referimos, mas também a vela, a alma, a nota e a esperança. Esta sequência de imagens é usada para simbolizar a precariedade da vida. Note-se que a vela envolta pelos ventos do sul não terá qualquer hipótese de salvação, assim como "a alma lastimosa" que por ter perdido a "fé e paz e confiança" (pedras basilares que sustentam a vida) se entrega abnegadamente à morte como único refrigério.

No último terceto está subjacente, de forma mais acentuada, uma certa tendência romântica que espelha "o mal du siècle", a manifestação de cansaço, de desespero pelo presente, a angústia que produz o viver, encontrando-se na morte o estado final de perfeita e definitiva felicidade.


Cecília Sucena e Dalila Chumbinho, Sebenta de Português: Antero de Quental – introdução ao estudo da obra
 Estoril, Edição da papelaria Bonanza, [Edição: 2006]

Józef Chełmoński, Indian Summer / Babie lato, 1875, oil on canvas, The National Museum in Warsaw

(Painted in Warsaw shortly after return from Ukraine. It depicts a peasant woman in Ukrainian folk costume with a thread of gossamer in her hand.)



A aranha do meu destino


A aranha do meu destino
Faz teias de eu não pensar.
Não soube o que era em menino,
Sou adulto sem o achar.
É que a teia, de espalhada
Apanhou-me o querer ir...
Sou uma vida baloiçada
Na consciência de existir
A aranha da minha sorte
Faz teia de muro a muro...
Sou presa do meu suporte. 

10-8-1932

Fernando Pessoa
Poesias Inéditas (1930-1935)
 

"O talento na juventude e na velhice" - Texto de Júlio Dantas


 
Edith Martineau (British watercolour painter, 1842-1909), 'At the Well', 1890



O talento na juventude e na velhice


Nada menos exato do que supor que o talento constitui privilégio da mocidade. Não. Nem da mocidade, nem da velhice. Não se é talentoso por se ser moço, nem genial por se ser velho. A certidão de idade não confere superioridade de espírito a ninguém. Nunca compreendi a hostilidade tradicional entre velhos e moços (que aliás enche a história das literaturas); e não percebo a razão por que os homens se lançam tantas vezes reciprocamente em rosto, como um agravo, a sua velhice ou a sua juventude. 

Ser idoso não quer dizer que se seja necessariamente intolerante e retrógado; e engana-se quem supuser que a mocidade, por si só, constitui garantia de progresso ou de renovação mental. As grandes descobertas que ilustram a história da ciência e contribuiram para o progresso humano são, em geral, obra dos velhos sábios; e a mocidade literária, negando embora sistematicamente o passado, é nele que se inspira, até que o escritor adquire (quando adquire) personalidade própria.

(...) A mocidade, em geral, não cria; utiliza, transformando-o, o legado que recebeu. Juventude e velhice não se opõem; completam-se na harmonia universal dos seres e das coisas. A vida não é só o entusiasmo dos moços; nem só a reflexão dos velhos; não está apenas na audácia de uns, nem apenas na experiência dos outros; realiza-se pela magnífica integração das virtudes contrárias, sem a qual não seria possível, em todo o seu esplendor, a marcha da humanidade. Que se ganha em cavar um abismo entre mocidade e velhice, se uma é, fatalmente, o prolongamento da outra; se o que passa de mão em mão é, afinal, o mesmo facho aceso, como na corrida ritual da Grécia antiga; e se, bem vistas as coisas, não está de nenhum modo provado que os novos sejam intelectualmente os mais novos, e os velhos os mais velhos?

(...) Como admitir o divórcio entre novos e velhos - invenção antinatural dos conventículos literários de todos os tempos -, se os velhos têm nas novas gerações, penhor radioso do futuro, o instrumento de compreensão e de difusão da sua obra, e se os novos devem aos velhos a formação do seu espírito, a educação da sua sensibilidade e a opulenta capitalização de riquezas da língua em que se expressam? 

A paz entre idades sucederá um dia, decerto, à paz entre as nações - quando a velhice egoísta reconhecer, finalmente, que não deve menosprezar os moços, antes facilitar-lhe o caminho da vida, e quando, por seu turno, a juventude impaciente chegar à convicção de que não é atropelando nem injuriando que se vence, e de que, quando os jovens se instalaram no planeta - já os velhos o habitavam.


Júlio Dantas (1876-1962), in "Páginas de Memórias"


 Júlio Dantas

Escritor português, nasceu em 1876, em Lagos, e faleceu em 1962, em Lisboa. O polígrafo Júlio Dantas cultivou os mais variados géneros literários, como o romance, a poesia, o teatro e conto, tendo-se também dedicado ao ensaio. Alcançou os seus maiores êxitos no teatro, com obras como A Severa, A Ceia dos Cardeais, Rosas de Todo o Ano e O Reposteiro Verde. O facto de ter sido invetivado no conhecido Manifesto Anti-Dantas, de José de Almada-Negreiros, é sinal da sua notoriedade de homem público. (Daqui)




Edith Martineau,  In Rokeby Park, 1875


"Não há nada que valha a dignidade do silêncio."

(Júlio Dantas)


quarta-feira, 16 de setembro de 2020

"Porque descrês, mulher, do amor, da vida?" - Soneto de Antero de Quental


Wybrand Hendricks, Interior with Sewing Woman, c. 1800-1810


Soneto 
 
 Porque descrês, mulher, do amor, da vida?
Porque esse Hermon transformas em Calvário?
Porque deixas que, aos poucos, do sudário
Te aperte o seio a dobra humedecida?

Que visão te fugiu, que assim perdida
Buscas em vão neste ermo solitário?
Que signo obscuro de cruel fadário
Te faz trazer a fronte ao chão pendida?

Nenhum! Intacto o bem em ti assiste:
Deus, em penhor, te deu a formosura:
Bênçãos te manda o céu em cada hora.

E descrês do viver? ... E eu, pobre e triste,
Que só no teu olhar leio a ventura,
Se tu descrês, em que hei de eu crer agora?


Antero de Quental
, in 'Sonetos'


"Claridade" - Poema de Deborah Brennand



Patrick William Adam (British, 1854–1929), Wooded Landscape
under Snow (
also known as Under Heavy Sow)



Claridade


Afortunados são os bosques
onde sem bridas
a luz campeia
entre as folhagens
suas crinas douradas

Tão leve se lustra a água
na medida exata
que os rebanhos bebem
junto às raposas
sem temor selvagem.

Por que só a mim discrimina a claridade?


Deborah Brennand, em "Claridade".
Recife: Edições Bagaço, 1996.



Patrick William Adam, Winter Roslyn


Renga da noite


Noite cheia
lua minguante
meu quarto crescente


Alice Ruiz
(Renga
)



"A velhice" - Poema de Olavo Bilac


Ferdinand Georg Waldmüller (Austrian painter and writer, 1793–1865),
Grandma's Birthday, 1856.




A velhice


O neto:
Vovó, por que não tem dentes?
Por que anda rezando só.
E treme, como os doentes
Quando têm febre, vovó?
Por que é branco o seu cabelo?
Por que se apoia a um bordão?
Vovó, porque, como o gelo,
É tão fria a sua mão?
Por que é tão triste o seu rosto?
Tão trémula a sua voz?
Vovó, qual é seu desgosto?
Por que não ri como nós? 


A Avó:
Meu neto, que és meu encanto,
Tu acabas de nascer…
E eu, tenho vivido tanto
Que estou farta de viver!
Os anos, que vão passando,
Vão nos matando sem dó:
Só tu consegues, falando,
Dar-me alegria, tu só!
O teu sorriso, criança,
Cai sobre os martírios meus,
Como um clarão de esperança,
Como uma bênção de Deus!


Olavo Bilac



Gaetano Bellei (Italian painter, 1857–1922)


"Uma velhice ditosa é o fruto de uma mocidade regrada."

(Provérbio)

terça-feira, 15 de setembro de 2020

"Torpor" - Poema de Luís Adriano Carlos


Ado Malagoli, O gato preto, 1954


Torpor


Perturba-me a harmonia dos perfumes
no meu corpo entorpecido pelo torpor do tropo
subitamente absorto em torpe poliptoto.

Eu sou apenas um poeta triste
que se entristece para não entristecer,
tendo na melancolia a sua maior alegria;
mas é sempre triste a tristeza que não sabe entristecer
sem que se abrigue na mentira da poesia,
essa milenar tristeza que arde no lume dos perfumes
para incendiar o tropo do torpor e os costumes.

Se não minto, se não faço humor,
sinto-me faminto de um ator, nesse lugar
onde a tristeza fica a repousar como um trapo abandonado,
com aquele desprezo que tanto se preza quando
toda a tristeza adoece e por fim se esquece.

Triste é perder o espanto e o recanto.
Essa perdição esvaziou-me o pensamento,
e nada mais lamento além do coração cheio de ardor e conceito
que me prensou o peito.

Sinto algures, longe de mim, mas mesmo assim
adentro em mim, esse coração pulsando a minha arritmia
da vida falida numa infinita glosa, que toda se me goza
com o claro dia mas que na folia me destroça
como quem falta e não volta, como quem morre e por fim se solta,
em todo o caso sentida, em todo o caso perdida.
Ado Malagoli, Autorretrato, 1941


"A melancolia alucina e destrói."

"Là-bas, je ne sais où..." - Poema de Álvaro de Campos




Là-bas, je ne sais où...



Véspera de viagem, campainha...
Não me sobreavisem estridentemente!

Quero gozar o repouso da gare da alma que tenho
Antes de ver avançar para mim a chegada de ferro
Do comboio definitivo,
Antes de sentir a partida verdadeira nas goelas do estômago,
Antes de pôr no estribo um pé
Que nunca aprendeu a não ter emoção sempre que teve que partir.

Quero, neste momento, fumando no apeadeiro de hoje,
Estar ainda um bocado agarrado à velha vida.
Vida inútil, que era melhor deixar, que é uma cela?
Que importa? Todo o universo é uma cela, e o estar preso não tem que ver com o tamanho da cela.
Sabe-me a náusea próxima o cigarro. O comboio já partiu da outra estação...
Adeus, adeus, adeus, toda a gente que não veio despedir-se de mim,
Minha família abstracta e impossível...
Adeus dia de hoje, adeus apeadeiro de hoje, adeus vida, adeus vida!
Ficar como um volume rotulado esquecido,
Ao canto do resguardo de passageiros do outro lado da linha.
Ser encontrado pelo guarda casual depois da partida —
«E esta? Então não houve um tipo que deixou isto aqui?» —

Ficar só a pensar em partir,
Ficar e ter razão,
Ficar e morrer menos...

Vou para o futuro como para um exame difícil.
Se o comboio nunca chegasse e Deus tivesse pena de mim?

Já me vejo na estação até aqui simples metáfora.
Sou uma pessoa perfeitamente apresentável.
Vê-se — dizem — que tenho vivido no estrangeiro.
Os meus modos são de homem educado, evidentemente.
Pego na mala, rejeitando o moço, como a um vício vil.

E a mão com que pego na mala treme-me e a ela.

Partir!
Nunca voltarei.
Nunca voltarei porque nunca se volta.
O lugar a que se volta é sempre outro,
A gare a que se volta é outra.
Já não está a mesma gente, nem a mesma luz, nem a mesma filosofia.

Partir! Meus Deus, partir! Tenho medo de partir!... 
Heterónimo de Fernando Pessoa.
 Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993) - 307


Augustus Leopold Egg (1816–1863), The Life of Buckingham, Unknown date, Yale Center for British Art


Augustus Leopold Egg, The Death of Buckingham, Unknown date, Yale Center for British Art  

The scene of his death derives from the exaggerated account in Alexander Pope's Epistle to Bathurst:


"In the worst inn’s room, with mat half-hung,
The floors of plaster, and the walls of dung,
On once a flock-bed, but repaired with straw,
With tape-tied curtains never meant to draw,
The George and Garter dangling from that bed
Where tawdry yellow strove with dirty red,
Great Villiers lies—alas! how changed from him,
That life of pleasure, and that soul of whim!
Gallant and gay, in Cliveden’s proud alcove,
The bower of wanton Shrewsbury and love;
Or just as gay at council, in a ring
Of mimic statesmen and their merry King,
No wit to flatter left of all his store!
No fool to laugh at, which he valued more.
There, victor of his health, of fortune, friends,
And fame, this lord of useless thousands ends."

(George Villiers, second Duke of Buckingham, was a prominent courtier in the reigns of Charles II and James II. He organized the ministry called the “Cabal,” and was satirized by  John Dryden in his “Absalom and Achitophel.” After squandering great wealth, died at the house of one of his tenants in Yorkshire under the circumstances described, on April 17, 1687.)

"O Andaime" - Poema de Fernando Pessoa


Frederick Walker (1840-1875), The Bathers, 1866–67


O Andaime


O tempo que eu hei sonhado
Quantos anos foi de vida!
Ah, quanto do meu passado
Foi só a vida mentida
De um futuro imaginado!

Aqui à beira do rio
Sossego sem ter razão.
Este seu correr vazio
Figura, anónimo e frio,
A vida vivida em vão.

A esperança que pouco alcança!
Que desejo vale o ensejo?
E uma bola de criança
Sobe mais que a minha esperança.
Rola mais que o meu desejo.

Ondas do rio, tão leves
Que não sois ondas sequer,
Horas, dias, anos, breves
Passam — verduras ou neves
Que o mesmo sol faz morrer.

Gastei tudo que não tinha
Sou mais velho do que sou.
A ilusão, que me mantinha,
Só no palco era rainha;
Despiu-se, e o reino acabou.

Leve som das águas lentas,
Gulosas da margem ida,
Que lembranças sonolentas
De esperanças nevoentas!
Que sonhos o sonho e a vida!

Que fiz de mim? Encontrei-me
Quando estava já perdido.
Impaciente deixei-me
Como a um louco que teime
No que lhe foi desmentido.

Som morto das águas mansas
Que correm por ter que ser,
Leva não só as lembranças,
Mas as mortas esperanças —
Mortas, porque hão de morrer.

Sou já o morto futuro.
Só um sonho me liga a mim —
O sonho atrasado e obscuro
Do que eu devera ser — muro
Do meu deserto jardim.

Ondas passadas, levai-me
Para o olvido do mar!
Ao que não serei legai-me,
Que cerquei com um andaime
A casa por fabricar.
 in "Cancioneiro"



Frederick Walker, Marlow Ferry

"Em pintura e poesia, não se admite mediania."


(Provérbio)


"O Amor é o Homem inacabado" - Poema de Paul Éluard


 


O Amor é o Homem inacabado



Todas as árvores com todos os ramos com todas as folhas
A erva na base dos rochedos e as casas amontoadas
Ao longe o mar que os teus olhos banham
Estas imagens de um dia e outro dia
Os vícios as virtudes tão imperfeitos
A transparência dos transeuntes nas ruas do acaso
E as mulheres exaladas pelas tuas pesquisas obstinadas
As tuas ideias fixas no coração de chumbo nos lábios virgens
Os vícios as virtudes tão imperfeitos
A semelhança dos olhares consentidos com os olhares conquistados
A confusão dos corpos das fadigas dos ardores
A imitação das palavras das atitudes das ideias
Os vícios as virtudes tão imperfeitos

O amor é o homem inacabado.


Paul Éluard (1895-1952), in "Algumas das Palavras"
Tradução de António Ramos Rosa


Jean-Marc Nattier (1685 - 1766), Princess Victoire of France, 1771
 


Um autêntico sonho de amor


"Orgulho, vaidade, despeito, rancor, tudo passa, se verdadeiramente o homem tem dentro de si um autêntico sonho de amor. Essas pequenas misérias são fatais apenas no começo, na puberdade, quando se olha uma janela e se desflora quem está lá dentro. Depois, não. Depois, sofre-se é pelo homem, é pela estupidez coletiva, é por não se poder continuar alegremente num mundo povoado, e se desejar um deserto de asceta. O ascetismo é a desumanização, é o adeus à vida, e é duro ser uma espécie de fantasma da cultura cercado de areias."

Miguel Torga, in "Diário (1948)"


 
Jean-Marc Nattier, Madame de Pompadour as Diana the Huntress, 1746


Confissão Social 


"Ninguém tem qualquer interesse em saber isto; mas se eu tivesse de me confessar socialmente, a síntese do meu desespero era esta: que cheguei, em matéria de descrença no homem, à saturação.
E, contudo, este perdido, este condenado, merece-me uma ternura tal, que não há tolice que faça, asneira que invente, mentira que diga que me deixem indiferente. Tenho por força de olhar, reparar, ouvir, e comentar com toda a paixão de que sou capaz."

Miguel Torga, in "Diário, 1942"