Pintura de Joseph Lorusso
À Flor da Pele
Acende o cigarro, rapariga. E olha para a
rua onde passam transeuntes desconhecidos.
A tarde vai avançando e nós morrendo nela
ou morrendo nela as nossas esperanças,
a ilusão de eternidade. A beleza o que é?
Braços nus, o ventre liso nu, os cabelos caídos
nos ombros. A desconhecida concentra em si
a atenção do homem desocupado. Para
distrair-se, ele olha para ela e recorda-se
da história antiga do amor, reconstrói
ficções que sabe serem apenas ficções. Assim
passa o tempo, depois irá para casa. Quem
sabe o segredo mais secreto da existência
de cada um? Todos nós temos uma
história. Uns calam-na, outros murmuram
entre dentes os episódios essenciais, outros
encontram palavras com que construir o
poema hermético. Que diferença é que faz?
De tudo se constrói a existência, se alimenta
o sentido. Camisa branca à flor da pele, a
rapariga levantou-se e foi lá dentro do café
comprar qualquer coisa. Palavras, deixai-me
celebrar o vão movimento dos ponteiros do
relógio, os episódios vãos, a nossa morte.
Poeta e ensaísta, de nome completo João Camilo dos Santos, nasceu em 1943. É licenciado em Filologia Românica pela Faculdade de Letras de Lisboa e doutorado pela Université de Haute Bretagne, com uma tese sobre a arte do romance em Carlos de Oliveira.
Leitor de Português nas universidades de Oslo, Rennes, Aix-en-Provence e professor convidado na Universidade de Grenoble, é atualmente professor catedrático de Português da Universidade da Califórnia, em Santa Bárbara, onde dirige um Centro de Estudos Portugueses.
A sua poesia fixa com discreta ironia pequenas micronarrativas e imagens do quotidiano, não hesitando em converter em tema e linguagem poética motivos comuns. (Daqui)
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