domingo, 29 de abril de 2012

"A implosão da mentira" - Poema de Affonso Romano de Sant'Anna


Obra de Cristina Bertuzzi, pintora italiana



A implosão da mentira 

Fragmento 1 


Mentiram-me. Mentiram-me ontem 
e hoje mentem novamente. Mentem 
de corpo e alma, completamente. 
E mentem de maneira tão pungente 
que acho que mentem sinceramente. 

Mentem, sobretudo, impune/mente. 
Não mentem tristes. Alegremente 
mentem. Mentem tão nacional/mente 
que acham que mentindo história afora 
vão enganar a morte eterna/mente. 

Mentem. Mentem e calam. Mas suas frases 
falam. E desfilam de tal modo nuas 
que mesmo um cego pode ver 
a verdade em trapos pelas ruas. 

Sei que a verdade é difícil 
e para alguns é cara e escura. 
Mas não se chega à verdade 
pela mentira, nem à democracia 
pela ditadura.


Pintura de Cristina Bertuzzi


Fragmento 2 

Evidente/mente a crer 
nos que me mentem 
uma flor nasceu em Hiroshima 
e em Auschwitz havia um circo 
permanente. 

Mentem. Mentem caricatural- 
mente. 
Mentem como a careca 
mente ao pente, 
mentem como a dentadura 
mente ao dente, 
mentem como a carroça 
à besta em frente, 
mentem como a doença 
ao doente, 
mentem clara/mente 
como o espelho transparente. 

Mentem deslavadamente, 
como nenhuma lavadeira mente 
ao ver a nódoa sobre o linho. Mentem 
com a cara limpa e nas mãos 
o sangue quente. Mentem 
ardente/mente como um doente 
em seus instantes de febre. Mentem 
fabulosa/mente como o caçador que quer passar 
gato por lebre. E nessa trilha de mentiras 
a caça é que caça o caçador 
com a armadilha. 

E assim cada qual 
mente industrial?mente, 
mente partidária?mente, 
mente incivil?mente, 
mente tropical?mente, 
mente incontinente?mente, 
mente hereditária?mente, 
mente, mente, mente. 

E de tanto mentir tão brava/mente 
constroem um país 
de mentira 
—diária/mente.


Pintura de Cristina Bertuzzi


Fragmento 3 

Mentem no passado. E no presente 
passam a mentira a limpo. E no futuro 
mentem novamente. 

Mentem fazendo o sol girar 
em torno à terra medieval/mente. 

Por isto, desta vez, não é Galileu 
quem mente,
mas o tribunal que o julga 
herege/mente. 

Mentem como se Colombo partindo 
do Ocidente para o Oriente 
pudesse descobrir de mentira 
um continente. 

Mentem desde Cabral, em calmaria, 
viajando pelo avesso, iludindo a corrente 
em curso, transformando a história do país 
num acidente de percurso. 


Pintura de Cristina Bertuzzi 


Fragmento 4 

Tanta mentira assim industriada 
me faz partir para o deserto 
penitente/mente, ou me exilar 
com Mozart musical/mente em harpas 
e oboés, como um solista vegetal 
que absorve a vida indiferente. 

Penso nos animais que nunca mentem. 
mesmo se têm um caçador à sua frente. 
Penso nos pássaros 
cuja verdade do canto nos toca 
matinalmente. 

Penso nas flores 
cuja verdade das cores escorre no mel 
silvestremente. 

Penso no sol que morre diariamente 
jorrando luz, embora 
tenha a noite pela frente. 


Pintura de Cristina Bertuzzi


Fragmento 5 

Página branca onde escrevo. Único espaço 
de verdade que me resta. Onde transcrevo 
o arroubo, a esperança, e onde tarde 
ou cedo deposito meu espanto e medo. 

Para tanta mentira só mesmo um poema 
explosivo-conotativo 
onde o advérbio e o adjetivo não mentem 
ao substantivo 
e a rima rebenta a frase 
numa explosão da verdade. 

E a mentira repulsiva 
se não explode pra fora 
pra dentro explode 
implosiva. 



[Este poema foi publicado em diversos jornais em 1980 e também em várias antologias, como "A Poesia Possível", Editora Rocco - Rio de Janeiro, 1987. Apesar do tempo decorrido, face aos acontecimentos políticos que vimos assistindo nesses últimos tempos, ele permanece atualíssimo.]


Pintura de Cristina Bertuzzi



Affonso Romano de Sant'Anna


Affonso Romano de Sant'Anna (Belo Horizonte, 27 de março de 1937) é um caso raro de artista e intelectual que une a palavra à ação. Com uma produção diversificada e consistente, pensa o Brasil e a cultura do seu tempo, e se destaca como teórico, como poeta, como cronista, como professor, como administrador cultural e como jornalista.

Com mais de 40 livros publicados, professor em diversas universidades brasileiras - UFMG, PUC/RJ, URFJ, UFF, no exterior lecionou nas universidades da California (UCLA), Koln (Alemanha), Aix-en-Provence (França). Seu talento foi confirmado pelo estímulo recebido de várias fundações internacionais como a Ford Foundation, Guggenheim, Gulbenkian e o DAAD da Alemanha, que lhe concederam bolsas de estudo e pesquisa em diversos países.

Nascido em Belo Horizonte, desde os anos 60 teve participação ativa nos movimentos que transformaram a poesia brasileira, interagindo com os grupos de vanguarda e construindo sua própria linguagem e trajetória. Data desta época sua participação nos movimentos políticos e sociais que marcaram o país. Embora jovem, seu nome já aparece nas principais publicações culturais do país. Por isto, como poeta e cronista foi considerado pela revista “Imprensa”, em 1990, como um dos dez jornalistas que mais influenciam a opinião de seu país.

Nos anos 70, dirigindo o Departamento de Letras e Artes, PUC/RJ, estruturou a pós graduação em literatura brasileira do Brasil, considerada uma das melhores do país. Trouxe ao Brasil conferencistas estrangeiros como Michel Foucault e apesar das dificuldades impostas pela ditadura realizou uma série de encontros nacionais de professores, escritores e críticos literários além de promover a “ Expoesia” - evento que reuniu 600 poetas num balanço da poesia brasileira. 

Durante sua gestão, pela primeira vez no país a chamada literatura infanto-juvenil passou a ser estudada na universidade e a ser tema de teses de pós-graduação. Foram também abertos cursos de Criação Literária com a presença de importantes escritores nacionais.
Foi autor, dentro da universidade, de trabalhos pioneiros sobre música popular, como o livro "Música popular e moderna poesia brasileira".

Como jornalista trabalhou nos principais jornais e revistas do país: Jornal do Brasil (pesquisa e copydesk), Senhor (colaborador), Veja (critico), Isto É (Cronista), colaborador do jornal O Estado de São Paulo. Foi cronista da Manchete e do Jornal do Brasil e está n'O Globo desde 1988.

Considerado pelo crítico Wilson Martins como o sucessor de Carlos Drummond de Andrade, no sentido de desenvolver uma “linhagem poética” que vem de Gonçalves Dias, Bilac, Bandeira e Drummond, realmente substituiu este último como cronista no “Jornal do Brasil”, em 1984. E foi sobre Carlos Drummond de Andrade a sua tese de doutoramento (UFMJ), intitulada: "Drummond, o gauche no tempo", que mereceu quatro prémios nacionais.

Nos duros tempos da última ditadura militar, Affonso Romano de Sant'Anna publicou corajosos poemas nos principais jornais do país, não nos suplementos literários, mas nas páginas de política. Poemas como “Que país é este?” (traduzido para o espanhol, inglês, francês e alemão), foram transformados em “posters”, aos milhares, e colocados em escritórios, sindicatos, universidades e bares.
Nessa época produziu uma série de poemas para a televisão (Globo). Esses poemas eram transmitidos no horário nobre, no noticiário noturno e atingiam uma audiência de 60 milhões de pessoas.

Como presidente da Biblioteca Nacional — a oitava biblioteca do mundo, com oito milhões de volumes — realizou entre 1990 e 1996 a modernização tecnológica da instituição, informatizando-a, ampliando seus edifícios e lançando programas de alcance nacional e internacional.
Criou o Sistema Nacional de Bibliotecas, que reúne 3.000 instituições e o PROLER (Programa de Promoção da Leitura), que contou com mais de 30 mil voluntários e estabeleceu-se em 300 municípios em 1991 lançou o programa “Uma biblioteca em cada município”.
Criou na Biblioteca Nacional os programas de tradução de autores brasileiros, de bolsa para escritores jovens e encontros internacionais com agentes literários.
Seu trabalho à frente da Biblioteca Nacional possibilitou que o Brasil fosse o país-tema da Feira de Frankfurt ( 1994), o país-tema, na Feira de Bogotá (1995) e no Salão do Livro (Paris, 1998).

Lançou a revista “Poesia Sempre”, de circulação internacional, tendo organizado números especiais sobre a América Latina, Portugal, Espanha, Itália, França, Alemanha.
Foi Secretário Geral da Associação das Bibliotecas Nacionais Ibero-Americanas (1995-1996), que reúne 22 instituições desenvolvendo amplo programa de integração cultural no continente.
Foi Presidente do Conselho do Centro Regional para o Fomento do Livro na América Latina e no Caribe-CERLALC), 1993-1995. 

Como poeta participou do “International Writing Program” (1968-1969) em Iowa, USA, dedicado a jovens escritores de todo o mundo.
Tem participado de dezenas de encontros internacionais de poesia. Esteve no Festival Internacional de Poesia Pela Paz, na Coréia (2005), realizou uma série de leituras de poemas no Chile, por ocasião do centenário de Neruda (2004), esteve na Irlanda, no Festival Gerald Hopkins (1996), na Casa de Bertold Brecht, em Berlim (1994), no Encontro de Poetas de Língua Latina (1987), no México, no Encontro de Escritores Latino-americanos em Israel (1986).
Mereceu vários prémios nacionais destacando-se o da Associação Paulista de Críticos de Arte pelo "conjunto de obra".

Foi júri de uma série de prémios internacionais como o Prémio Camões (Portugal/Brasil), Prémio Rainha Sofia (Espanha), Prémio Peres Bonald (Venezuela), Prémio Pégaso/Mobil Oil (Colômbia/USA).
Diversos textos seus foram convertidos em teatro, balé e música e tem diversos CDs de literatura gravados com sua voz e na voz de atores diversos.
Sua obra tem sido objeto de teses de mestrado e doutorado no Brasil e no exterior.
Recebeu algumas das principais comendas brasileiras como Ordem Rio Branco, Medalha Tiradentes, Medalha da Inconfidência, Medalha Santos Dummont.
É casado com a escritora Marina Colasanti.

Obras:

Poesia
"Canto e Palavra"- 1965 - Imprensa Oficial de Minas Gerais
"Poesia sobre Poesia"- 1975 - Imago/RJ
"A Grande Fala do Índio Guarani"- 1978 - Summus Editorial/SP
"Que País é Este?"- 1980 - Civilização Brasileira - 1984 - Rocco/RJ 
"A Catedral de Colônia e Outros Poemas"- 1987 - Rocco/RJ 
"A Poesia Possível" (poesia reunida) - 1987 - Rocco/RJ
"O Lado Esquerdo do Meu Peito"- 1991 - Rocco/RJ 
"Epitáfio para o século XX" (antologia) - 1997 - Ediouro/SP
"Melhores poemas de Affonso Romano de Sant'Anna - Global/SP
"A grande fala e Catedral de Colônia" (ed. comemorativa) -1998 - Rocco, Rio
"O intervalo amoroso" (antologia). - 1999 - L&PM/Porto Alegre
"Textamentos" - 1999 - Rocco/RJ
"Vestígios" - 2005 - Rocco/RJ
"A cegueira e o saber" - 2006 - Rocco/RJ


Pintura de Cristina Bertuzzi 


"Às vezes, você perde vários poemas, porque sente uma frase, sente algo murmurado no seu espírito e não presta atenção porque está ocupado com os ruídos da vida. É necessário apurar o seu ouvido, ter a humildade de anotar a coisa mesmo quando ela não é muito boa. Pode, de repente, um texto meio nebuloso, meio esquisito, meio simplório demais, dar raiz a um poema posteriormente interessante." - Affonso Romano de Sant'Anna


Pintura de Cristina Bertuzzi


"Um público comprometido com a leitura é crítico, rebelde, inquieto, pouco manipulável e não crê em lemas que alguns fazem passar por ideias." - Mário Vargas Llosa


Pintura de Cristina Bertuzzi


''Não estou doente. Estou partida. Mas me sinto feliz por continuar viva enquanto puder pintar." - Frida Kahlo
 

Pintura de Cristina Bertuzzi


"Nós estamos no meio de uma corrida entre a habilidade humana quanto aos meios e tolice humana quanto aos fins." - Bertrand Russell


Pintura de Cristina Bertuzzi 


"A humanidade tem dupla moral: uma que prega mas não pratica, outra que prati­ca mas não prega." - Bertrand Russell



Entrevista com Affonso Romano de Sant'Anna

O escritor Affonso Romano de Sant'Anna relembra o início da carreira, fala sobre seu mais recente livro, "O enigma vazio", e a literatura contemporânea.

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